Deu em todos os jornalões, em letras garrafais, pelo menos por algumas horas, pois esse é o tempo das coisas nos tempos atuais: “Gilmar Mendes suspende todos os processos que discutem pejotização”.
Em termos judiciais, isso significa que foi reconhecida a Repercussão Geral do tema pejotização pelo Supremo Tribunal Federal (STF), o que implica na suspensão de todos os processos que o discutem até uma decisão única, tomada pelo Plenário do STF (ou seja, pela unanimidade ou maioria de todos os 11 ministros da Corte Suprema brasileira), que vinculará todos os processos existentes e os processos que serão ajuizados a partir daí. Ou que não serão mais ajuizados, dependendo da decisão.
Então, a primeira coisa a saber é: o que se discute nesse tema de Repercussão Geral?
Um tema que a Justiça do Trabalho sempre tratou a contento
Muito resumidamente (porque os temas são complexos e cada um mereceria um artigo), três temas se colocam, não um só:
- A competência nos processos que discutem a existência de fraude no contrato civil/comercial de prestação de serviços;
- O ônus da prova em tais processos;
- A licitude da contratação de pessoa jurídica ou trabalhador autônomo para essa finalidade.
A solução “clássica” dessas três questões nunca foi realmente problemática na Justiça do Trabalho. A competência sempre foi trabalhista (art. 114, em seu caput até 2004, em seu inciso I a partir de 2004). O ônus da prova de que a relação havida não era de emprego sempre foi do tomador de serviços (art. 818 CLT, cabe ao réu provar fato extintivo, modificativo ou impeditivo de do direito do autor). E a licitude ou a ilicitude de contratação de pessoa jurídica ou trabalhador autônomo para prestar serviços dependia única e exclusivamente da natureza dos serviços prestados.
Se a natureza fosse efetivamente de prestação de serviços (pense em decoração de um escritório, manutenção dos computadores, personal stylist, coisas assim), a contratação era e seguirá sendo lícita. Se a natureza fosse de natureza empregatícia (um professor em uma escola, um enfermeiro em um hospital, um advogado em um escritório de advocacia, etc.), parece-nos óbvia a fraude ao contrato de trabalho, pois estar-se-ia escamoteando uma relação de emprego através de um “contrato de prestação de serviços” em que o “prestador de serviços” não seria em nada um autônomo, mas uma engrenagem na empresa.
Apenas, o “tomador de serviços”, em realidade o empregador de facto, não pagaria férias, 13º salários, INSS, horas extras, pisos salariais, reajustes convencionais, adicionais noturno, de insalubridade, etc. Ah, não pagaria nem mesmo acerto rescisório (aviso prévio, multa de 40% do FGTS). Extremamente vantajoso do ponto de vista financeiro. Uma relação de emprego irresponsável. Literalmente, a responsabilidade do “tomador” se aproxima de zero.
Assim a Justiça do Trabalho enquadrou juridicamente um fenômeno que não é novo e que nunca deixou de existir. Em realidade, quando se observa que, apesar da censura judicial, uma prática ilegal continua a ser praticada, é porque o risco econômico compensa. Vide o tráfico de drogas: se o lucro não fosse absurdo, ninguém se aventuraria num negócio tão perigoso.
No caso dos ilícitos trabalhistas, a prática reiterada escandaliza menos (também por questões ideológicas), mas segue a mesma lógica: se de tantos trabalhadores “pejotizados”, um percentual tal for à justiça, e conseguir um valor tal (que muitas das vezes não é o valor integral devido, porque há prescrição, há parcelas não deferidas, etc.), mas, ao contrário, um percentual não for à Justiça, a empresa terá um lucro tal a partir do não recolhimento de encargos sociais, nem tributos, nem previdência social, etc.
Ou seja, o descumprimento legal das normas trabalhistas (no caso, de formalização dos contratos de trabalho), além de gerar um lucro considerável, gera também concorrência desleal (com relação a empresas do mesmo nicho que cumprem a legislação) e gera sobretudo queda na arrecadação. Dito de outra forma, a pejotização não escandaliza porque não há explosões e assassinatos brutais, mas, no fim das contas, também é bem violenta.
A guerra entre STF e a Justiça do Trabalho
Então, por que é que agora, vinte anos ou mais após o aparecimento do fenômeno social da pejotização, o STF resolve conferir Repercussão Geral ao tema, para definir como a Justiça do Trabalho deve tratá-lo? De cima para baixo, de forma, poderíamos dizer, até mesmo autoritária, e que é totalmente contraditória com o papel de guardião da democracia que ele vem tentando emplacar nos últimos anos.
O fato é que existe uma guerra mais ou menos declarada entre o STF e a Justiça do Trabalho.
Contra todos os princípios, teorias e práticas de Direito do Trabalho, construídas há mais de cem anos no Brasil e há mais de 200 anos no mundo industrializado, o STF simplesmente se meteu a decidir reiteradamente contra os trabalhadores, em consonância com um ideário liberal incompatível com a Constituição que deveria proteger.
No caso específico da pejotização, a bronca do STF vem com relação a uma decisão errada que o próprio STF tomou, em 2018, acerca da terceirização (ADPF 324 e Tema 725 de Repercussão Geral). Outra forma de precarização ilegal de mão-de-obra, na terceirização, ao menos o trabalhador tem um contrato de trabalho (com uma empresa prestadora de serviços).
No caso da pejotização, não há empresa real, o trabalhador é obrigado a constituir uma empresa (geralmente uma MEI) para poder trabalhar como se empregado fosse. Ou, seja, é fraude ao contrato de trabalho. Como sempre decidiu a Justiça do Trabalho.
Mas o STF, nos debates que orientaram as decisões de 2018, de forma equivocada, “reconheceu a validade constitucional de diferentes formas de divisão do trabalho e a liberdade de organização produtiva dos cidadãos”, e que a CLT seria somente uma delas, entre tantas. Isso é proibido pela própria Constituição, no art. 7º, inciso I, que diz que “são direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, dentre outros, que visem à melhoria de sua condição social, relação de emprego”.
Ou seja, a relação de emprego é a forma típica de exploração do trabalho humano no Brasil. Todas as outras são excepcionais, e justificam tanto a competência da Justiça do Trabalho, quanto a inversão do ônus da prova, quanto a ilicitude da contratação de pejotizados para exercer funções de empregados.
O problema é que o STF, numa interpretação claramente neoliberal (quiçá pós-liberal) da sociedade, desconsiderou pura e simplesmente o texto literal da Constituição, que prevê que a forma por excelência de exploração do trabalho humano é a relação de emprego.
É óbvio que essa primazia da relação de emprego tem um motivo e um sentido não só político, mas também e sobretudo institucional.
Sentido político, porque é uma Constituição pós-ditatorial, de abertura política e de garantias individuais e coletivas de direitos. É uma Constituição Social-democrática, fundada sobre o trabalho humano. A dignidade da pessoa humana é pilar da República (Art. 1º, III, CF/88), logo depois da cidadania (Art. 1º, II). Os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa se equiparam (art. 1º, IV).
E nem se venha argumentar que a tecnologia seria fator suficiente para precarizar o trabalho. A própria Constituição ordena a proteção em face da automação, na forma da lei (art. 7º, XXVII). Se a lei ainda não existe, não pode o STF revogar artigos da própria Constituição por causa dessa ausência.
Exercício de autoridade
O fato é que o STF se sente abertamente ameaçado em sua autoridade quando o a Justiça do Trabalho decide com base em fatos e provas, e não pela interpretação equivocada dada pela visão neoliberal do próprio STF. Isso fica claro no despacho de segunda-feira, em que o ministro Gilmar Mendes diz textualmente:
“Conforme evidenciado, o descumprimento sistemático da orientação do Supremo Tribunal Federal pela Justiça do Trabalho tem contribuído para um cenário de grande insegurança jurídica, resultando na multiplicação de demandas que chegam ao STF, transformando-o, na prática, em instância revisora de decisões trabalhistas. Essa situação não apenas sobrecarrega o Tribunal, mas também perpetua a incerteza entre as partes envolvidas, afetando diretamente a estabilidade do ordenamento jurídico.”
Ao colocar a questão como uma afronta à orientação já existente do STF, pressente-se que há um esforço corporativista no sentido de se anular as decisões da Justiça do Trabalho, e definir, de cima para baixo, que situações que nem constavam da ADPF 324, e que não poderiam ser objeto de julgamento, pelo princípio da adstrição (o juiz somente pode julgar nos limites dos pedidos, para não haver abuso do Poder Judiciário) sejam definidas em tese, o que por si só, é um absurdo.
Absurdo, porque a caracterização da licitude ou da ilicitude de uma pejotização depende necessariamente da análise minuciosa das provas dos autos. Pois, como mencionado acima, somente se estiverem presentes os requisitos de uma relação de emprego e que será declarada a ilicitude do contrato. Se faltar um dos elementos, o contrato é válido.
Mas o STF não possui competência para analisar fatos e provas em processos trabalhistas. Então há aí um claro rompimento institucional gravíssimo ao se avocar para si a competência para julgar “a licitude da contratação de pessoa jurídica ou trabalhador autônomo” em contratos de prestação de serviços.
Ou seja, processualmente, também, é impossível que o STF se manifeste sobre matéria que demande análise de provas caso a caso, e pretender resolver todos os casos através de um precedente vinculante é medida violentíssima e autoritária, além de silenciar vários ilícitos trabalhistas, caso a decisão seja pela licitude por definição de um contrato que, pela experiência, encerra na esmagadora maioria dos casos uma fraude trabalhista.
Consequências desastrosas para a sociedade
Por fim, o desfecho esperado para a tragédia anunciada com a suspensão dos processos, qual seja a liberação geral da pejotização sem qualquer controle no Brasil, trará consequências desastrosas cuja mensuração total ainda é difícil, tão profundas serão. Podemos facilmente enumerar as seguintes:
- Queda brutal na taxa de ocupação formal;
- Queda brutal na arrecadação de INSS, com impactos imediatos no pagamento dos benefícios de hoje, e quebra inequívoca de todo o sistema em poucos anos;
- Queda brutal na arrecadação do FGTS, com impacto imediatos no financiamento de casa própria e outras políticas públicas que utilizam o fundo como órgão financiador;
- Queda brutal de arrecadação de IRPF, com efeitos imediato na arrecadação fiscal da União e risco de colapso do arcabouço fiscal;
- Queda brutal da massa salarial e do salário médio em todas as categorias profissionais, com queda da circulação de bens e serviços e riscos reais de recessão econômica;
- Destruição das entidades sindicais, já que os pejotizados não são representados pela maioria dos sindicatos de empregados.
- Fim das Convenções Coletivas de Trabalho e dos pisos salariais profissionais;
- Fim dos benefícios convencionais;
- Queda brutal do número de vidas assistidas pelos planos de saúde, com quebra de diversos deles;
- Pressão sobre o SUS, que, com menor arrecadação, poderá entrar em colapso.
O STF, com mais esse ataque ao Direito do Trabalho, assume o risco real de demolir um dos pilares da Constituição de 1988, sem qualquer debate público, sem mandato constituinte para revogar teto constitucional (e, mesmo que tivesse, não poderiam revogar o inciso I do art. 7º, por se configurar em cláusula pétrea).
Não qualquer pilar, mas o pilar mais importante, aquele que inclui o ser humano dentro do jogo político e cidadão. Sim, porque 99,9% da população do país é composta de gente que vive do trabalho, e o trabalho constitucionalmente previsto é a relação de emprego, protegida e dotada de direitos.
É por isso que devemos lutar. E devemos lutar agora. Amanhã pode ser tarde demais.
* Leonardo Fazito é advogado sindical e trabalhista, mestre em Direito pela Universidade de Paris III – Sorbonne Nouvelle e membro da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD).
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.