O “papa Francisco”, primeiro sul-americano da história a ocupar o cargo, tinha uma posição clara sobre as causas e as formas de combater a injustiça social e a crise climática que toma conta do mundo. Para ele, “a desigualdade social e a degradação ambiental andam de mãos dadas e têm a mesma raiz: a do pecado de querer possuir e dominar os irmãos e irmãs e a natureza”. E as soluções passam por políticas públicas conduzidas pelo Estado e pelo engajamento dos religiosos na atenção não apenas aos problemas espirituais, mas também às agruras materiais dos mais pobres.
Desde que ascendeu a posições de poder dentro da Igreja Católica, ainda nos anos 1970, foi nessa linha que Jorge Mario Bergoglio, o papa Francisco, se manifestou e agiu.
“Desde jovem ele era ligado à chamada Teologia do Povo”, disse à Agência Pública o escritor e frade dominicano Frei Betto. Intimamente conectada à Teologia da Libertação – que tem origem na América Latina, em um período de crescimento de governos autoritários na região, e tem em religiosos como Leonardo Boff e no próprio Frei Betto alguns de seus expoentes –, a Teologia do Povo prega a reaproximação da Igreja aos pobres, a valorização da religiosidade popular e um maior engajamento dos clérigos na luta pela justiça social. “Ao contrário da Teologia da Libertação, porém, a Teologia do Povo é pacifista e não admitiu a luta armada durante as ditaduras latino-americanas”, explica Frei Betto.
Na juventude, Bergoglio era apoiador das políticas trabalhistas e de distribuição de renda de Juan Domingo Perón, que governou a Argentina por três mandatos, os dois primeiros entre 1946 e 1952, quando foi deposto por um golpe militar, e o terceiro de 1973 a 1974. Perón faleceu antes de cumprir o último mandato e foi sucedido por sua vice – e esposa –, Isabel Perón, destituída por um novo golpe militar em 1976.
Durante as primeiras gestões peronistas, Bergoglio, nascido em Buenos Aires em 1936, era ainda um estudante de curso técnico em química, amante do tango e torcedor do San Lorenzo, time de futebol, aliás, fundado por um padre salesiano. Foi em 1969, antes do retorno de Perón à presidência, que ele foi ordenado padre jesuíta – na mesma época, nascia na Argentina o Movimento dos Sacerdotes para o Terceiro Mundo, ao qual Bergoglio nunca se associou, mas cujas críticas ao lucro a qualquer custo influenciaram sua carreira eclesiástica.

Padre e cardeal “villero”
Lançado em janeiro deste ano, Esperança: a autobiografia (Fontanar) traz detalhes sobre os primeiros anos de Bergoglio como padre. O livro reúne relatos do papa ao editor Carlos Musso, que assina a obra como coautor.
Embora tenha estudado filosofia e teologia, e depois lecionado psicologia e literatura em diferentes universidades, ele era crítico a certa tendência intelectualista do clero. Tinha o costume de frequentar hospitais, presídios e favelas, o que lhe valeu o apelido de padre “villero” (algo como “favelado”, em tradução livre). O termo é tomado como um elogio por Francisco. “Quando alguém me acusa de ser um papa ‘villero’, apenas rogo para que seja sempre digno disso”, escreveu.
Bergoglio manteve essa postura depois de ter se tornado arcebispo e cardeal, instruindo outros padres a fazer o mesmo, contou à Pública o doutor em ciências da religião Gabriel Marquim, que defendeu uma tese sobre o pensamento de Francisco na Universidade Católica de Pernambuco (Unicap).
“Como arcebispo de Buenos Aires, Bergoglio fez uma verdadeira inversão de prioridades, levando sacerdotes para viverem nas comunidades mais pobres. De fato, o cardeal Bergoglio era um homem de proximidade com os pobres, com catadores de lixo, e muitos cristãos que tinham uma forte inserção na questão dos direitos humanos. Para Francisco, não há cristianismo sem que ele se envolva verdadeiramente com as questões sociais. É uma consequência direta da fé cristã”, diz Marquim.
Por seu convívio com os pobres, além de ser chamado de “villero”, Bergoglio foi carimbado com outra pecha: a de marxista, ecoada ainda hoje nos ataques da extrema direita ao papa, que o acusam de “comunista”. Em uma entrevista ao jornal italiano La Stampa em janeiro de 2015, Francisco respondeu a essas críticas. “A atenção aos pobres está no Evangelho e na tradição da Igreja, não é uma invenção do comunismo e não devemos fazer dela uma ideologia”, disse. Ele citou também uma frase célebre do brasileiro dom Hélder Câmara, que foi arcebispo de Olinda e Recife: “Quando dou comida aos pobres, me chamam de santo. Quando pergunto por que eles são pobres, chamam-me de comunista”.
Para Frei Betto, as críticas que acompanham Bergoglio desde os anos 1970 apontam que ele está no caminho certo. “Constrangedor seria se o pessoal da extrema direita o elogiasse. Jesus também foi perseguido o tempo todo. Todos os cristãos são discípulos de um prisioneiro político”, disse à Pública.
Papa Francisco e a política
Em 1973, Bergoglio começa a ascender aos cargos diretivos na ordem jesuíta. Três anos depois, um golpe de Estado levou os militares ao poder na Argentina, num regime sanguinário que duraria até 1979 – estima-se em 30 mil pessoas o número de desaparecidos nas mãos de agentes do Estado. É nessa época que o futuro papa viu seu nome envolvido na principal polêmica de sua carreira: o sequestro seguido de tortura de dois padres jesuítas que atuavam sob a sua alçada, Orlando Yorio e Francisco Jalics.
A história permaneceu esquecida por décadas, voltando à tona pouco antes de o argentino ser proclamado papa. Segundo os críticos de Francisco, como Fortunato Mallimaci, professor de sociologia da Universidade de Buenos Aires, Bergoglio mantinha relações amistosas com os militares e pouco fez para evitar que Yorio e Jalics fossem presos. É o que ele acusa no artigo “Bergoglio antes de ser Francisco”, publicado em 2013 na Revista Temas de Cuba.
Personagens importantes na defesa dos direitos humanos, porém, divergem da crítica de Mallimaci. Em coletiva à imprensa argentina, Adolfo Pérez Esquivel, prêmio Nobel da Paz, afirmou que “de fato, alguns bispos foram cúmplices da ditadura. Bergoglio, na época, não era um bispo, apenas um superior provincial dos jesuítas na Argentina. Ele não teve nada a ver com a ditadura. Não colaborou com ela. Preferiu uma diplomacia silenciosa”.
O jornalista e ex-guerrilheiro Aldo Duzdevich, em seu livro Salvados por Francisco, publicado na Argentina em 2019, em que traz detalhes da atuação de Bergoglio durante a ditadura, vai além e diz que o então provincial dos jesuítas atuou não só para libertar Yorio e Jalics, que saíram em liberdade seis meses após a prisão, mas diversos outros perseguidos políticos. “Ele foi um padre que se arriscou para ajudar os perseguidos pela ditadura. Há provas, testemunhos, evidências de ex-militantes. Muitos, se hoje estão vivos, devem isso ao que Bergoglio fez por eles”, escreveu Duzdevich.
Mario Betiato, doutor em teologia pela PUC-Paraná, contou à Pública que Bergoglio, uma vez ordenado cardeal, distinguiu-se por sua maneira de vida austera. “Ele se recusou a morar no palácio episcopal, não tinha motorista particular e não usava roupas de luxo. No decorrer de sua história religiosa, nunca tirou os pés do chão: era arcebispo e andava de transporte público; morava num quartinho atrás da catedral de Buenos Aires e cozinhava sua própria comida.”
Nessa época, o cardeal tornou-se uma figura proeminente na política argentina por suas críticas ao estilo de gestão do peronista Néstor Kirchner, a quem, numa homilia em 2004, classificou de “exibicionista”. A relação com o mandatário não foi das melhores, sobretudo dada a resistência do cardeal às políticas de saúde relacionadas ao aborto defendidas pelo governo, e o então presidente chegou a afirmar que Bergoglio era o “chefe espiritual da oposição política”.
Quando Cristina Kirchner sucedeu o marido na presidência, permaneceu a turbulência com o líder da Igreja argentina. O ápice da tensão deu-se após a aprovação do casamento homoafetivo no país, criticada pelo então cardeal. Uma vez que Bergoglio foi eleito papa, Cristina lhe desejou sorte, e os dois ensaiaram uma aproximação pública.

Documento de Aparecida
Uma das principais realizações de Bergoglio antes de seu papado deu-se em 2007. Aconteceu naquele ano, em Aparecida, São Paulo, a V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe, que teve o cardeal argentino como relator. Da conferência, surgiu o “documento de Aparecida”, espécie de “carta de navegação” da Igreja no continente, explicou à Pública Bertioto.
A contundência do texto e as ideias nele contidas, com efeito, fizeram-se notar nos anos seguintes, quando Bergoglio se tornou o papa Francisco.
“O objeto da economia é a formação da riqueza e seu incremento progressivo, em termos não só quantitativos, mas qualitativos: tudo é moralmente correto se está orientado para o desenvolvimento global e solidário do homem e da sociedade na qual vive e trabalha. O desenvolvimento não se pode reduzir a mero processo de acumulação de bens e serviços”, diz um dos trechos do documento.
Mais à frente, o texto defende a aplicação de “políticas públicas nos campos da saúde, educação, seguridade alimentar, previdência social, acesso à terra e à moradia, promoção eficaz da economia para a criação de empregos e leis que favorecem as organizações solidárias”.
Noutro trecho, carregado da própria experiência de Bergoglio como sacerdote, é dito que “a santidade não é fuga para o intimismo ou para o individualismo religioso, tampouco abandono da realidade urgente dos grandes problemas econômicos, sociais e políticos da América Latina e do mundo”.
Por fim, os bispos reunidos sob a batuta de Bergoglio acatam a missão de “procurar um modo de desenvolvimento alternativo, integral e solidário baseado numa ética que inclua a responsabilidade por uma autêntica ecologia natural e humana que se fundamente no evangelho e na justiça; e empenhar esforços na implantação de políticas públicas e participações cidadãs que garantam proteção e restauração da natureza”.
O texto é tão central na trajetória do argentino, diz Marquim, que, após ter sido eleito papa, Francisco “costumava presentear as pessoas com o documento de Aparecida, inclusive presidentes. Ali está condensada a semente de seu pontificado: uma Igreja em saída, que procura e está perto sobretudo daqueles que sofrem”.
O papa buscado “no fim do mundo”, como o próprio Francisco disse após sua eleição, é o “único monarca absoluto do Ocidente”, lembra Frei Betto. Isso quer dizer que as decisões de Francisco não precisam passar por nenhuma instância para serem aprovadas. Ainda assim, o papa latino, num gesto que é também uma declaração, tem preferido a via democrática: em seu papado, já foram convocados seis sínodos (assembleias religiosas, termo grego que significa “caminhar juntos”). Para Frei Betto, embora Francisco possa tomar decisões unilaterais, “ele não quer usar esse poder, porque poderia provocar um racha na Igreja. É uma posição que ele assume – conduzir as coisas de maneira pedagógica, não na base do autoritarismo”.
Por tudo isso, diz Bertiato, “o papa foi bem mais longe do que seria previsível, mas, quando deixar o papado, sairá com algumas batalhas ganhas e com inúmeros desafios em aberto”. Frei Betto atribui esses desafios a uma questão política: os 34 anos que antecederam o pontificado de Francisco foram liderados por dois papas conservadores, João Paulo II e Bento XVI, responsáveis pela nomeação de dezenas de cardeais que seguem influentes no Vaticano. “Hoje a Igreja é um corpo conservador com a cabeça progressista”, conclui o frade.
Artigo original publicado em Pública.