“No outro mês, fizemos a primeira colheita do milho que consegui plantar depois da enchente de maio do ano passado, com a semente que ganhamos. É esse aqui o milho que a gente planta na lavoura. Ele cresce, dá espiga, depois amadurece e a gente colhe pra alimentar o gado – ou ele vai pra empresa fazer ração pros bichos. Dá pra fazer muita coisa com o milho que brota dessa terra. Eu só espero que não venha outra enchente levar tudo embora de novo. No ano passado, eu tinha cerca de 300 toneladas de silagem e o rio levou tudo. Não sobrou nada.”
Na madrugada de 2 de maio de 2024, Maria Dolores Camargo e o marido, Aladi Camargo, moradores do distrito de Arroio do Ouro, em Estrela (RS), viram a água subir numa velocidade que nunca imaginaram. A casa grande de dois andares, construída em frente ao caudaloso rio Taquari, resistiu, apesar das avarias. No quintal, restaram poucas árvores – entre elas, uma figueira centenária que envergou, mas não caiu e parece um símbolo de resistência. Quase tudo ao redor cedeu à força das águas.
O município de Estrela, localizado no Vale do Taquari, região central do Rio Grande do Sul, foi um dos mais afetados pelas inundações. Segundo a prefeitura, no auge da tragédia, 75% do território chegou a ficar submerso.

Produção rural
Antes do desastre, a rotina da família Camargo envolvia cuidar do gado, produzir silagem e verduras para consumo próprio, além de criar porcos e galinhas. Quando puderam voltar para a propriedade, dois meses depois, os dias se transformaram completamente. O Exército foi até lá ajudar a enterrar os animais mortos e os meses seguintes foram dedicados à limpeza dos entulhos e à reconstrução da casa.
Assim como Dolores e o marido, muitos produtores da região enfrentaram o mesmo drama. Conhecido por sua produção de leite, gado de corte e suínos, o Vale do Taquari viu seus rebanhos definhar com a falta de ração – os estoques de milho, silagem e alimentos para os animais foram varridos pelas águas. Faltava luz, água e até acesso às propriedades pelas estradas vicinais, impedindo a chegada de socorro. A Confederação Nacional de Municípios estima que o setor agropecuário do Rio Grande do Sul perdeu R$ 600 milhões.

Desde que vive na propriedade, Maria Dolores já presenciou outras enchentes. Ela conta que seu pai, sobrevivente da histórica cheia de 1941, lhe ensinou técnicas para proteger a casa e os equipamentos nesses períodos críticos. “Ele mostrou onde guardar as ferramentas, as máquinas, onde colocar cada coisa quando a água subia. Mas, dessa vez, não teve jeito. O rio levou tudo.”
A maior parte das famílias da região precisou subir nos telhados das casas e esperar por ajuda durante dois dias. “A gente só tá vivo por causa do nosso caico (pequena embarcação, que, nesse caso, era motorizada). Quando entramos nele pra fugir, os bois tentaram nadar atrás da gente, como se gritassem: ‘levem a gente junto!’. Éramos eu, meu marido, dois filhos e dois vizinhos. Só conseguimos levar uma ovelhinha filhote. Deixamos pra trás todos os outros bichos, nossa casa, nossa plantação, nossos móveis, tudo que juntamos numa vida inteira”, lembra Dolores.

Os prejuízos são incalculáveis. Aladi recorda ter visto máquinas de mais de cinco toneladas sendo arrastadas pela correnteza. Mas o mais doloroso foi ver os animais sendo levados: 227 bois, 56 ovelhas, sete cavalos e inúmeras galinhas. Também perderam o silo e cerca de 80 toneladas de casquinha de soja.
A solidariedade que fez a terra florescer de novo
Quase um ano após uma das maiores tragédias climáticas do país, Dolores segue tentando recomeçar. Entre a reconstrução da casa, o replantio dos alimentos e o cuidado com os novos animais, ela tenta não ceder ao medo de uma nova cheia. Ao olhar para o rio Taquari, com a voz embargada, dá uma bronca gentil nas águas e diz que é a família quem lhe dá força para continuar.
Ela destaca que a solidariedade foi essencial: “A ajuda que recebemos depois da enchente foi muito importante, mas não pode parar. Os desafios no campo são muitos.”

A família Camargo foi contemplada pelo projeto emergencial Missão Sementes de Solidariedade, iniciativa coordenada por movimentos sociais e populares como o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), a Cáritas e diversas pastorais, com foco no apoio a pequenos agricultores atingidos pelas enchentes de 2024. Ao todo, o projeto conseguiu beneficiar 5.162 famílias, em 278 comunidades, distribuídas por 77 municípios.
“Ganhamos semente de milho, ganhamos um pouco de insumo, como adubo e ureia. Esse ano conseguimos plantar um pouco, mas não sei como vai ser no próximo. Será que vamos ter dinheiro pra plantar de novo? A gente queria muito que o povo, o governo, alguém… viesse aqui, olhasse pra nós agricultores, doasse mais semente de milho, insumos, pra gente continuar trabalhando. Porque trator precisa de diesel, e com ajuda talvez a gente conseguisse tocar as máquinas e teria até mais ânimo pra plantar.”
*Essa é reportagem integra o especial que o Brasil de Fato RS, em parceria com o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), está desenvolvendo sobre um ano da enchente que atingiu o Rio Grande do Sul.
