As disputas por terra bateram recordes em 2024, com destaque para as fronteiras agrícolas, onde estão concentrados os casos de violência contra a vida, de acordo com dados do Relatório de Conflitos no Campo Brasil 2024, publicado nesta quarta-feira (23) pela Comissão Pastoral da Terra (CPT).
Seguindo a tendência nacional, Amacro (sigla para Amazonas, Acre e Rondônia) e Matopiba (Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia) tiveram os números mais altos de conflito em dez anos. Na Amacro, a CPT registrou 185 casos, dois a mais que o período anterior, em 2023. No Matopiba, os números são mais expressivos: foram 415 conflitos por terra no ano passado. O recorde anterior era de 253 casos em 2016.
Embora 2024 seja o ano com menor número de assassinatos da última década, 62% dos casos foram registrados nas áreas de expansão do agronegócio, onde os relatos de ameaças são constantes. Dos 13 assassinatos registrados no último ano, oito foram na Amazônia Legal, sendo três no Matopiba e um na Amacro. No relatório, a CPT classifica a Amazônia Legal como área de expansão da pecuária e das plantações de soja, com sobreposição das outras duas fronteiras agrícolas.
“O Matopiba é quase o dobro do tamanho da área da Amacro, tanto em número de quilômetros quadrados quanto de população, municípios, etc. Se tomarmos, no entanto, uma visão proporcional, a agressividade e a violência na Amacro tem maior expressividade”, explica Afonso Chagas, pesquisador da Universidade Federal de Rondônia (Unir) e assessor jurídico da CPT.
Embora sejam regiões distantes, o modo de agir dos agressores é semelhante. Homens que se intitulam donos da terra chegam de surpresa e bloqueiam vias usadas pelos antigos moradores. Para isso, usam cercas ou jagunços armados. Depois, incendeiam as casas de quem insiste em permanecer na área. Ameaças e agressões não são incomuns. Nos casos extremos, há tortura e assassinatos.

“Chegaram lá para arrancar nós com jagunço, policial, pegaram as coisas de dentro de casa e jogaram dentro do carro deles”, conta Matias*, agricultor morador do Seringal Entre Rios, no município de Lábrea (AM). “Jogaram lá do outro lado da estrada, deixaram numa casa do vizinho, mais para frente, assim, na lateral da estrada. Estragou todas as coisas”, conta.
No Seringal Entre Rios, a Pastoral registrou quatro conflitos no ano passado, envolvendo cerca de 180 famílias.
Matias foi expulso em 2019 e até hoje tenta reaver as terras. “Até hoje, nunca foi resolvido nada”, lamenta. O fazendeiro que tomou a área bloqueou a estrada de acesso à cidade de Boca do Acre (AM) e, ainda hoje, as famílias da região lutam para conseguir desobstruir a passagem. “Estão se batendo até hoje pra conseguir abrir o ramal pra entrar pra lá”, conta o agricultor. Ele abandonou a área e buscou abrigo na casa de um familiar.
A Amacro é alvo do avanço, principalmente, da pecuária. Na comunidade Irmã Dorothy, em Lábrea (AM), cerca de 30 extrativistas ocupam a área, onde colhem castanha e açaí. Em maio de 2024, eles trabalhavam na abertura de uma estrada na mata para facilitar a retirada dos produtos e levá-los até a rodovia BR-317, quando foram surpreendidos pelos jagunços armados, a mando de um conhecido fazendeiro da região.
Um homem foi atingido com dois tiros na perna e um na cabeça. Outros três homens foram alvejados pelos disparos. Todos foram socorrido, mas até hoje os extrativistas têm resquícios das balas alojados pelo corpo.
“Lá hoje eu não vejo mais uma comunidade Irmã Dorothy, igual nós colocamos o nome. Lá tá mais como uma zona de guerra”, diz o extrativista Mizael Magalhães de Araújo, um dos ocupantes da área.
A comunidade Irmã Dorothy fica na gleba Novo Natal, onde também está localizada a comunidade Marielle Franco. Lá, por dez anos, cerca de 200 famílias conviveram com ameaças, tortura e incêndio das casas, crimes praticados por um pecuarista. Em fevereiro de 2025, o Instituto Brasileiro de Colonização e Reforma Agrária (Incra) concluiu a arrecadação de uma parte da área para a criação do assentamento Marielle Franco. A conclusão do processo representa uma vitória para as famílias da área.
Agora, os ocupantes da comunidade Irmã Dorothy aguardam pela atuação do Incra para que tenham a mesma garantia de alguma segurança jurídica. “A comunidade está em terra pública (…) Vai dar certo, mas não tá fácil, não, para nós lá dentro”, diz Araújo.
As áreas de pastagem na Amacro mais do que dobraram nos últimos 20 anos, segundo dados da plataforma MapBiomas. Em 2003, os pastos ocupavam pouco mais de 3 milhões de hectares. Em 2023, a área destinada à pecuária era de mais de 7,5 milhões de hectares. A soja também marca presença na área, concentrada principalmente na parte norte do estado de Rondônia.
De cerca de um hectare de soja em 2003, a área destinada ao plantio do grão saltou para mais de 72 mil hectares em 2023 na Amacro.
Matopiba
No Matopiba, faixa de fronteira entre Amazônia e Cerrado, a soja domina cada vez mais áreas do território nos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, embora os pastos ocupem muitas terras na região.
Assim como na Amacro, uma das formas de intimidação constantes nessa região é o bloqueio de estradas usadas pelos moradores das comunidades tradicionais, conforme relata Altamiran Ribeiro, pesquisador da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos.
Ribeiro relata o caso da comunidade ribeirinha Chupé II, no município de Santa Filomena (PI), ameaçada por grileiros.
“Eles não aceitam a comunidade acessar a estrada”, conta o pesquisador, que acompanha há 13 anos os conflitos territoriais no Piauí. “A comunidade tem que dar uma volta de não sei quantos quilômetros para poder acessar a estrada para chegar num povoado que fica próximo ao povoado que tem as escolas, tem o postinho de saúde”, diz.
Em 2003, o Matopiba tinha pouco mais de 1 milhão de hectares ocupados por lavouras de soja. Em 2023, a área subiu para 4,7 milhões de hectares. Os pastos saltaram de 11 milhões em 2003 para 15,6 milhões em 2023, de acordo com dados da plataforma MapBiomas.
No movimento de busca por novas áreas para a prática da monocultura, como a soja, os latifundiários avançam sobre as comunidades.
“Em cima dos chapadões do Cerrado do Piauí não tem mais áreas novas para ser desmatadas para ser colocado monocultivo. Então, eles descem onde estão as comunidades para forçar a tomada das terras. As comunidades se recusam a qualquer negociata com as áreas e aí começa a sofrer todo tipo de violência”, explica Ribeiro.
Fazendeiros e PMs são responsáveis por assassinatos
Dos 13 assassinatos registrados pela CPT em 2024, seis foram comandados por fazendeiros, de acordo com o relatório. A indígena Maria de Fátima Muniz Pataxó, a Nega Pataxó, assassinada em janeiro do ano passado, no sul da Bahia, foi uma das vítimas dos ruralistas. A morte de Maria de Fátima foi resultado de uma mobilização do movimento ruralista Invasão Zero, que agiu com apoio das forças do Estado.
De acordo com testemunhas, a Polícia Militar (PM) abriu caminho para a milícia rural atirar contra indígenas – incluindo idosos e crianças, conforme noticiou o Brasil de Fato. Os próprios policiais também teriam efetuado disparos de arma de fogo, de acordo com as testemunhas.
O assassinato de Nega Pataxó não é um caso isolado. Em 31% dos assassinatos no campo em 2024, houve participação de policiais militares, segundo a CPT.
Os indígenas são as principais vítimas da violência extrema. Em 2024, 79% das vítimas de tentativa de assassinato eram indígenas. Dos 13 casos de assassinatos, cinco eram indígenas, três eram sem-terra, dois eram assentados, um quilombola, um posseiro e um pequeno proprietário.