“Um apaixonado pelos livros”. É assim que João Luiz de Souza gosta de se apresentar. O gonçalense é o idealizador do sarau “Corujão da Poesia”, único em formato de vigília semanal permanente no país, que há 20 anos reúne artistas e poetas em espaços pelo Rio de Janeiro, São Gonçalo e Niterói com o intuito de incentivar a leitura.
João do Corujão é um semeador da cultura literária por onde passa. Os primeiros passos começaram ainda na infância. Os livros foram seus companheiros durante as noites de insônia e, de lá para cá, Souza não os largou mais. Ao Brasil de Fato, o diretor da Sala Nelson Pereira dos Santos, em Niterói, na região metropolitana do Rio, disse “não imaginar até onde os livros o levariam”.
E realmente levaram João para longe e permitiram que, a partir da sua paixão pela leitura, transformasse a realidade de muitas pessoas. As ações partiram desde a criação de bibliotecas solidárias em presídios, unidades do Departamento Geral de Ações Socioeducativas (Degase) e hospitais, até a idealização dos “Pontos de Libertação de Livros”, um dos braços do “Corujão da Poesia” que atua na distribuição descentralizada de obras literárias.
Nesta conversa com o Brasil de Fato, João fala sobre os projetos literários e o poder da densidade afetiva, da escolha do Rio como capital mundial do livro pela Unesco, do desafio de atrair o público jovem para os livros diante da internet e do impacto das novas tecnologias no campo da literatura.
Confira a entrevista:
Brasil de Fato: João, o projeto “Pontos de Libertação de Livros” é um dos braços do “Corujão da Poesia” e nasce como uma estratégia de descentralização dos livros. Por que vocês decidiram substituir as bibliotecas solidárias por esta ação e qual o retorno que ela tem gerado?
João Luiz de Souza: As bibliotecas solidárias nasceram a partir de 2006. Fizemos muitas unidades de bibliotecas solidárias. Entramos em presídios. Tivemos apoio de Orlando Zaccone e Marcelo Yuca. Naquela época tinha carceragem nas delegacias. A delegacia de Nova Iguaçu, por exemplo, estava dividida entre dois comandos, entre duas facções. A biblioteca ficava no meio, no corredor.
A gente montava [bibliotecas] mesmo nas associações de moradores, mandávamos os livros e sempre tinha gente apaixonada por livros nos bairros periféricos, em tudo quanto é lugar. Só que tinha uma alternância de poder nas comunidades. E eu comecei a receber muito retorno de gente que dizia assim: “Olha, quando eu ‘tava’ lá cuidando, funcionava. Aí a pessoa que entrou é oposição a mim e fechou”. Eu fiz umas quatro visitas e observei que estavam fechadas.
Só que no Morro do Salgueiro, tinha uma mulher fantástica que pegava um carrinho de compras, enchia de livros e saía passando pelo morro emprestando para quem quisesse.
No Hospital Estadual Alberto Torres a gente mandava os livros e os livros saiam também no carrinho percorrendo os quartos e vendo quem é que queria livro. E observamos que isso funcionava muito.
Em vez da gente ficar montando mais estrutura, sala, a gente mandava os livros e pedia para que eles fossem entregues à população. Hoje estamos chegando a 950 mil livros porque são 20 anos. Nós mandamos livros para o Amazonas, Pará, Rio Grande do Sul e até para o Haiti.
E como estão funcionando os “Pontos de Libertação dos Livros” atualmente?
Hoje a pessoa faz o contato comigo, ou me manda mensagem, ou fala com alguém do “Corujão da Poesia”. Tenho um pequeno estoque de uns 800, 600 livros. Hoje a gente manda para quem tem o interesse a e o contato é a partir do Instagram.
A cidade do Rio foi escolhida como capital mundial do livro neste ano pela Unesco. O município inicia oficialmente a jornada no dia 23 de abril com uma série de eventos culturais. Qual a importância desta escolha e o que ela pode fomentar na capital?
Se o Rio conseguir neste um ano de capital mundial do livro fazer com que o número de leitores e leitoras aumente na cidade, já é um legado importantíssimo.
A população que é mais pobre e que precisa criar o prazer da leitura, ela tem que receber o livro. A quantidade de gente que nunca ganhou um livro de presente é assustadora. Outro dia eu dei um livro para uma funcionária aqui do complexo do Reserva Cultural, Marta. Ela disse: “Pode fazer uma foto, posso fazer um uma foto, você me dando um livro? O primeiro livro que a gente ganha tem que fotografar, né?” Eu desmanchei na hora, entendeu? Primeiro livro que ela ganha.
[O livro] tem que chegar de uma forma que essa entrega seja feita com densidade afetiva. Essa entrega tem que ser feita por gente que ama livro, que ama esse objeto que é transformador. Eu vi na delegacia, no presídio, nas unidades do Degase.
Eu pude acompanhar e continuo acompanhando o que o livro faz. Tem um supermercado aqui em Niterói chamado Real. Eu dei um livro para uma caixa do supermercado.
Ela leu o livro e um dia eu, no supermercado, passo por ela novamente e ela diz: “Eu quero agradecer ao senhor”. Eu disse: “Por quê?” Ela disse: “Eu descobri que eu sou preta”.
Qual livro que ela ganhou?
Na minha pele de Lázaro Ramos. Ela falou: “Eu descobri que eu sou preta e que eu já passei por tudo isso que ele fala”. Eu disse: “Mas quanto tempo você levou sem saber que você era preta”?
Ela disse: “A vida inteira, porque minha mãe alisava meu cabelo e me chamava de morena. E lá em casa ninguém falava preto, negro. Depois que terminei esse livro, eu estou falando”.
Então, por ela já justifica tudo [emocionado]. É por isso que acho que o Rio tem que aproveitar e tem que contaminar o Brasil. Porque o Rio é uma caixa de ressonância.
Uma das possíveis ações previstas pela prefeitura do Rio é a instalação de audiolivros nos BRTs. Qual a sua avaliação sobre a inserção destas novas plataformas no universo literário?
Eu defendo. Eu não sou romântico nesse aspecto, saudosista, porque quem ouve uma história bem contada se aproxima da leitura.
É como a contação de história na escola. A criança ouve um contador de história, uma contadora de história e se aproxima sempre do livro, porque ela vai saber que aquilo está num livro. Acho que tudo isso do TikTok, que é sobre literatura, tudo está funcionando.
Os clubes do livro que estão surgindo, como o do Felipe Netto, acho maravilhoso. Ele está usando o prestígio dele para falar de livro, para fazer clube do livro e as pessoas estão lendo.
Só de estar usando no seu cotidiano a expressão livro e leitura já é civilizatória. É claro que tem muita gente oportunista, mas prefiro contabilizar as iniciativas legais, os resultados que sejam bons. Uma história bem contada e que você ouça já vai te levar para um algum caminho. E vai dar num livro escrito em algum momento.
A 6° edição da pesquisa “Retratos da Leitura no Brasil”, de 2024, aponta que, pela primeira vez, 53% dos entrevistados não leram nem parte de uma obra. A que você atribui esta queda, João?
A ausência de um trabalho de sedução para leitura. Tem que ter um trabalho que seduza, que conquiste, que paquere o futuro leitor, seja na escola, na família, nos grupos religiosos, seja lá o que for. As rodas de hip-hop já fazem isso muito bem feito.
E o acesso. Tem que ter biblioteca que funcione até às 10 horas da noite. As pessoas saem do trabalho às 6 horas, às 7 horas, às vezes elas querem dar um tempo até o horário do rush dar uma abrandada, poderiam ir para a biblioteca, pode ter campanha nesse sentido.
Você pode ter a distribuição de livros. Você pode ter veículos que circulem pela cidade com livros, como Sesc [Serviço Social do Comércio] faz. Tem que ter mais gente fazendo isso. Não pode ser só o SESC.
Dentro do que essa pesquisa apresenta, a escola tem um peso cada vez menor na motivação dos jovens para a leitura. Neste contexto de disputa de atenção, como é possível reconectar a juventude com o mundo literário?
Acho que as escolas poderiam começar com os livros que fossem mais palatáveis, mais agradáveis para uma idade. Porque, por exemplo, eu li Machado de Assis com 11 anos na escola. Eu não sei se eu fosse uma criança de 11 anos hoje, eu leria Machado de Assis. Eu não sei. Mas eu sei que se eu lesse algum livro com 11 anos, aos 18 ou 19 [anos] eu leria Machado. Nem que fosse para me preparar para o Enem [Exame Nacional do Ensino Médio].
Então, eu acho que, por exemplo, o clube do Felipe Netto tem uma coisa interessante. São os livros que a garotada curte ler e que depois que você cria esse prazer, ou que chamem de hábito, que eu não gosto muito, mas você cria esse prazer de ter 15, 20 minutos, 30 minutos por dia com o livro na mão, manuseando o livro, já é fantástico.