Escolhida como sede da 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP-30), Belém do Pará é palco de mais de 30 obras realizadas a toque de caixa e enfrenta o dilema entre perpetuar velhos modelos que beneficiam a especulação imobiliária e o racismo ambiental e preparar de fato a cidade para os desafios do presente e do futuro.
Intitulada pelos governantes como a “COP da Floresta” e celebrada pela realização em um país democrático, a conferência – que poderia ser um marco na transformação da capital paraense em uma referência na redução de desigualdades sociais, resiliência e adaptação à emergência climática – pode frustrar as altas expectativas em torno da sua preparação como sede do evento climático.
Com problemas estruturais e orçamento municipal reduzido, os preparativos para o encontro, que irá ocorrer entre 10 e 21 de novembro, representam a injeção de cerca de 5 bilhões de reais destinados a obras de saneamento e a construção de parques e espaços destinados ao turismo na cidade. Segundo o governo federal, os recursos investidos em Belém são provenientes do Orçamento, do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e da Itaipu Binacional.
Mais de 40 mil visitantes são esperados, de acordo com o governo brasileiro, com base em estimativas da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Devido às pressões sobre a rede hoteleira, a cúpula de chefes de Estado será realizada nos dias 6 e 7 de novembro, antes do período inicialmente previsto para a conferência.
Enquanto veículos nacionais e internacionais destacam os preços exorbitantes das diárias e alugueis, que variam entre centenas de milhares aos milhões de reais por menos de um mês de hospedagem, a preparação da cidade tem sido marcada por diversos problemas.
Aumento da especulação imobiliária, violações do direito à moradia, mudanças arbitrárias no plano diretor e denúncias de trabalhadores submetidos a condições insalubres nos canteiros de obras foram alguns dos problemas encontrados nas áreas em torno dos projetos ligados aos preparativos da COP-30, como a Nova Doca, o Parque São Joaquim e a reforma da Feira do Ver-o-Peso, entre outros locais visitados pela reportagem.
Obras em Belém para a COP-30


Planos retirados da gaveta
“A COP e os bilhões que o governo federal traz com ela são uma coisa realmente excepcional. Havia aqui uma porção de projetos na gaveta há muito tempo. Algumas coisas legais, outras nem tão legais. E a gente tinha escapado até aqui da agenda do megaevento. Então ele bateu na nossa porta, para o bem e para o mal”, aponta a pesquisadora Ana Cláudia Duarte Cardoso, professora titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Pará (UFPA).
O volume de recursos mobilizados pela COP-30 é quase o mesmo que o orçamento médio anual da capital paraense entre os anos de 2015 e 2024, estimado em 4,8 bilhões de reais, valor bastante inferior ao de outras capitais com cerca de 1,4 milhão de habitantes, a exemplo de Goiânia (R$ 6,7 bi) e Recife (R$ 8 bilhões).
A baixa arrecadação própria costuma ser explicada por fatores como a alta informalidade da economia, bastante dependente dos setores de comércio e serviços, a infraestrutura deficitária, que dificulta a instalação de plantas industriais, assim como a dependência de transferências estaduais e federais.
Com 409 anos, Belém é a capital mais antiga do Norte, região em que se concentra a maior parte da Amazônia Legal. Porém, em 2023, as florestas ocupavam apenas 8,4 mil (ou 28,4%) da sua área urbana, estimada em 29,7 mil hectares, segundo o MapBiomas.
Considerando que a COP-30 exige do mundo e do Brasil, em particular, a necessidade de pensar o futuro de seus biomas e territórios, a tarefa de tornar Belém mais resiliente também se impõe diante da possibilidade de aumento entre 1,5 a 4,5 graus Celsius da temperatura até 2100, segundo as projeções mais ou menos otimistas do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC).
No entanto, na balança da tomada de decisões dos governantes, o direito ao futuro cede lugar às pressões do mercado. A expectativa é que investimentos serão atraídos e empregos criados com a oportunidade de receber dezenas de milhares de turistas em megaeventos como a própria COP-30 e a Copa do Mundo Feminina de 2027, para a qual Belém foi escolhida como uma das cidades-sede.
Alegando solucionar alguns dos problemas crônicos de mobilidade na Região Metropolitana de Belém, formada por oito municípios, o Governo do Pará está construindo ao menos duas grandes vias, a Avenida Liberdade e a nova Rua da Marinha.
Com a promessa de reduzir o tempo de viagem para quem circula e transporta mercadorias na região, as duas avenidas avançam sobre áreas verdes enquanto a capital paraense enfrenta, a cada ano, alterações nos padrões de chuva e aumento de temperaturas mais frequentes, de acordo com o Instituto Nacional de Metereologia (Inmet).
A Avenida Liberdade, que interligará a zona urbana de Belém à rodovia PA-483, no município de Marituba, corta parte da Área de Proteção Ambiental (APA) metropolitana de Belém. Já o projeto de duplicação da Rua da Marinha, que promete se tornar um grande corredor de mobilidade por interligar a Avenida Centenário à Rodovia Augusto Montenegro, atravessa o Parque Ambiental Gunnar Vingren. Ambas as obras são capitaneadas pelo governo estadual, mas apenas a segunda conta com recursos federais como parte do pacote de investimentos para a COP-30.
A professora da UFPA explica a importância das áreas de floresta mais abundantes, como as que compõem a APA de Belém para a regulação do microclima na capital. Dividida com a cidade vizinha de Ananindeua, a APA é uma unidade de uso sustentável, criada em 1993 pelo Governo do Pará. As suas principais funções envolvem proteger a biodiversidade e os mananciais de água responsáveis pelo abastecimento das duas cidades, como os lagos Água Preta e Bolonha.
A urbanista defende que, para adaptar a cidade às mudanças climáticas, é necessário criar uma malha de corredores verdes que ajudem a desacelerar e absorver a água das chuvas. Além disso, as áreas de florestas, assim como as de manguezais, abrigam alta diversidade de espécies de bichos e plantas.
Porém, na contramão do esperado quanto à arborização das ruas e bairros, o governo do Pará divulgou recentemente a instalação das chamadas “eco-árvores”, estruturas de material reaproveitado cobertas por trepadeiras, a fim de garantir sombra aos usuários de duas grandes obras previstas pela COP-30, os parques lineares da Nova Doca e da Avenida Tamandaré. Importada de Singapura, a tecnologia pretende suprir a falta de solo para o plantio em parte das áreas “revitalizadas” pelos governos estadual e federal.
Após receber inúmeras críticas nas mídias sociais pela adoção da tecnologia asiática em uma das regiões com maior diversidade de flora do planeta, o governo do Pará substituiu a expressão “árvores artificiais” por “jardins suspensos”.
Interesses de grandes empreendimentos
Não são apenas grandes intervenções sobre as áreas verdes que os megaeventos previstos para acontecer em Belém estão exigindo na preparação da cidade. Para viabilizar a construção do Parque da Cidade no espaço do antigo Aeroporto Brigadeiro Protásio de Oliveira, conhecido como Aeroclube, em abril de 2022, o então presidente da Câmara Municipal de Belém, Zeca Pirão (MDB-PA), submeteu à votação o projeto de lei n° 573, com o objetivo de mudar o plano diretor, publicado sob a forma de lei n° 8.655, de 2008.
O texto aprovado trocou o termo “ampliar” por “priorizar” a disponibilidade de equipamentos públicos, espaços verdes e de lazer na área do antigo aeroporto. As mudanças foram sancionadas pelo então prefeito Edmilson Rodrigues no mês seguinte. Apesar de impedir a instalação de empreendimentos imobiliários no local, a alteração na lei liberou a oferta de serviços “A” – o que inclui hotelaria, cultura, lazer, esportes, academia de ginástica, restaurantes, bares e lanchonetes – no polígono em que se encontra o Parque da Cidade, autorizando o uso e ocupação da área por agentes privados.
Na época, o promotor público Raimundo Moraes, em conjunto com o defensor público Adriano Souto Oliveira, recomendou ao prefeito Edmilson Rodrigues o veto integral do projeto de lei aprovado pelos vereadores, sob a alegação de que as mudanças seriam inconstitucionais.
O pesquisador Raul Ventura Neto, que é também professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFPA, demonstra preocupação com as escolhas que têm sido feitas em torno do planejamento da cidade. Segundo ele, ao invés de acionar instrumentos que permitiriam controlar o preço da terra e a especulação imobiliária, o plano diretor tem sido modificado para atender aos interesses de grandes empreendimentos, levando à perda de áreas verdes e ao aumento desenfreado da verticalização, sem considerar as consequências para a cidade.
Sem o devido controle do município sobre a venda ou cessão dos terrenos pertencentes às Forças Armadas no entorno do Parque da Cidade, o risco é que os novos empreendimentos imobiliários e comerciais gerem ainda mais impactos negativos sobre as áreas de florestas remanescentes, entre outros problemas.
Aos ribeirinhos e trabalhadores, o esgoto dos ricos
No começo da noite do dia 21 de março, uma sexta-feira chuvosa na capital paraense, cerca de 20 moradores do bairro do Telégrafo começaram a chegar ao pátio de uma das casas da rua Magno de Araújo para uma reunião. A rua asfaltada de casas populares dá acesso à Vila da Barca, área ocupada por palafitas que representa um dos maiores ícones das desigualdades sociais em Belém.
O motivo do encontro chamado às pressas foi a descoberta de que um terreno localizado a menos de 100 metros dali tem sido usado para o despejo de resíduos, ou bota-fora, de pelo menos uma das obras da COP-30 e uma Estação Elevatória de Esgoto será construída na mesma área.
Enquanto mulheres, homens e crianças das ruas afetadas pelo novo empreendimento se acomodavam para discuti-lo em uma primeira reunião, ao menos dois caminhões abastecidos com lama mal cheirosa passaram pela rua Magno de Araújo, tendo como destino o terreno localizado em uma das esquinas da rua Professor Nelson Ribeiro.

Os veículos seguiram com as caçambas carregadas de rejeitos das obras realizadas na Avenida Doca de Souza Franco, localizada no bairro do Umarizal, onde o projeto da Nova Doca, estimado em 310,8 milhões de reais, está sendo implementado pela parceria entre os governos federal e do Pará, com recursos da Itaipu Binacional.
Iniciado algumas semanas antes, o intenso tráfego de caminhões começou a despertar a atenção por depredar as vias de bloquetes de cimento de ruas como a Djalma Dutra e a Professor Nelson Ribeiro, assim como pelo odor fétido e a poeira levantada em todo o trajeto.
Retirada de canais onde o esgoto da Avenida Doca de Souza Franco é despejado sem tratamento, a lama trazida pelos caminhões tem sido descartada no terreno em que se encontram as carcaças de três barcos depositadas recentemente e as ruínas de um prédio conhecido como Curtume, onde uma fábrica de couro funcionou na primeira metade do século 20.
Nesse local, por muito tempo ocioso e usado por crianças e jovens do bairro como campo de futebol, o Governo do Pará pretende criar a Estação de Elevação de Esgoto do bairro do Umarizal, como parte do projeto da Nova Doca. Por meio do decreto nº 4.393, assinado pelo governador Helder Barbalho, o espaço foi desapropriado para esse fim desde o dia 17 de dezembro do ano passado.
“A gente está aqui por um motivo comum que é essa obra que vai chegar aqui, essa Estação de Esgoto, que não é nosso [da Vila da Barca ou do bairro do Telégrafo], vai ser da Doca, ou seja, a gente vai receber o cocô da Doca e é importante que a gente tenha isso em mente”, anunciou a ativista Suane Barreirinhas ao abrir a reunião. Moradora do bairro do Telégrafo desde a infância, Suane é cofundadora do Museu da Vila da Barca.
Para os moradores da área, a notícia sobre a construção da Estação de Esgoto chegou há poucas semanas, com a instalação da placa e de adesivos no local da obra, o que é exigido por lei. A mobilização dos moradores iniciou no boca a boca, já que nenhuma informação sobre estudos de impacto prévios ou do licenciamento ambiental foi dada pela Secretaria de Obras Públicas (SEOP) nem pela Prefeitura de Belém, atualmente comandada por Igor Normando (MDB-PA).
Na segunda-feira seguinte à reunião, após pressão popular nas mídias sociais e na imprensa nacional, representantes da secretaria de obras receberam representantes da Vila da Barca e das ruas adjacentes. No encontro, a engenheira sanitarista Lia Pereira destacou que a Estação terá a função de direcionar o esgoto à estação de tratamento localizada na Rua Artur Bernardes. Segundo Lia, o projeto envolve um sistema de filtração de gases e a vedação do poço.
As preocupações da comunidade da Vila da Barca convergem com o procedimento aberto por procuradores dedicados a monitorar e prevenir acidentes de trabalho nas obras da COP-30. Segundo documentos obtidos pela reportagem junto à Procuradoria Regional do Trabalho da 8ª Região, ligada ao Ministério Público do Trabalho (MPT), a lama retirada do canal da Nova Doca pode ser uma das causas das doenças na pele denunciadas por trabalhadores do projeto.
No dia 27 de fevereiro, a procuradora Cindi Ellou Lopes deferiu um pedido de apuração de possíveis irregularidades relacionadas às jornadas de trabalho, ao programa de gestão e vigilância da saúde dos trabalhadores, a desvios de função e ausência de capacitação pelo Consórcio Nova Doca.
O procedimento foi autorizado após cinco meses de diligências, audiências com representantes das empresas de construção e do governo do estado, assim como notificações das partes envolvidas com o projeto.
Em relatório elaborado após uma vistoria realizada no dia 17 de dezembro de 2024, consta que “durante a diligência, houve relatos de acometimento de trabalhadores por doenças na pele, coceiras intensas e até mesmo um suposto caso de cegueira, agravos estes que seriam decorrentes do contato dos obreiros com os agentes insalubres presentes no canal”. Segundo os documentos, depois de notificado pelo MPT, o Consórcio assegurou o pagamento dos adicionais de insalubridade e periculosidade aos trabalhadores diretamente envolvidos com atividades ou expostos às águas dos canais da Doca.
Porém, como o Programa de Controle Médico de Saúde Ocupacional (PCMSO) da obra não reconhece os riscos biológicos do contato com efluentes de esgoto doméstico despejados no canal, não há previsão de exames para o acompanhamento de doenças relacionadas a agentes biológicos existentes no ambiente de trabalho.
“A medida saneadora informada pela empresa limitou-se basicamente a reconhecer os riscos biológicos no documento-base do PCMSO. Não houve qualquer manifestação quanto aos casos de adoecimento relatados, nem demonstração de qualquer medida efetiva de gestão da saúde dos trabalhadores no tocante aos relatos de adoecimento”, analisa o procurador do trabalho Élcio de Sousa Araújo, em despacho assinado no dia 26 de fevereiro.
“Sobre esse ponto, cabe ainda registrar que este Procurador, recentemente, após a diligência, recebeu uma denúncia sigilosa nos seguintes termos: ‘que, por conta do trabalho no canal da Doca (onde há uma água fedorenta) alguns trabalhadores desenvolveram doenças na pele, chegando a ficar na ‘carne viva’; que não há proteção ao trabalhador; que a enfermeira da empresa teria dito que no canal há um micróbio e que a medida de prevenção seria ‘tirar a camisa e ficar no sol’”, diz o texto.
No mesmo documento, o procurador ressalta que foi identificado o excesso de jornada extraordinária, além das duas horas diárias permitidas por lei. Segundo os relatos, a jornada de trabalho nas obras da Nova Doca totalizam cerca de 11 horas diárias. Além disso, segundo denúncia sigilosa, o número de horas e dias trabalhados tem extrapolado as médias inicialmente registradas.
O alto preço das ilhas de luxo para a cidade
Os contrastes entre a chamada Doca e a Vila da Barca são gritantes e demonstram como especulação imobiliária e racismo ambiental costumam ser faces da mesma moeda nas cidades brasileiras. Resistindo há quase um século como uma comunidade ribeirinha cravada na orla da Baía do Guajará, a Vila da Barca possui cerca de 80 mil metros quadrados e tem sido pressionada pela construção de dezenas de condomínios erguidos nas avenidas ou por entre as ruelas de casas populares construídas no bairro do Telégrafo a partir do século 19.
A poucos minutos do bairro do Umarizal e do centro da cidade, a vila de palafitas foi alvo de um projeto de habitação e urbanização iniciado pela prefeitura de Belém em 2003. Interrompido diversas vezes nas gestões seguintes, mesmo sob a pressão de órgãos com o Ministério Público Federal, o projeto foi retomado com a eleição de Edmilson Rodrigues ao terceiro mandato como prefeito da capital, em 2020, mas continua inacabado até hoje.
Como principal resultado, a intervenção municipal na área criou uma ilha com blocos de alvenaria cercada, de um lado, por um emaranhado de palafitas não incluídas no projeto e, do outro, por uma faixa de casas para onde algumas famílias foram remanejadas, à espera das novas moradias.
Entre outros problemas, grande parte das famílias da Vila da Barca ainda enfrenta a ausência de água encanada, a vulnerabilidade a incêndios, a falta de coleta de lixo e esgotamento sanitário, assim como o empoçamento das águas represadas embaixo das casas de madeira suspensas sobre o rio, afetadas pelo aterramento previsto no projeto de habitação parcialmente executado.
A menos de três quilômetros da Vila, o bairro do Umarizal compreende o metro quadrado mais valorizado de Belém, com casos de apartamentos vendidos por valores acima dos 10 milhões de reais.
Os investimentos ligados à COP-30 devem fazer com que os preços dos imóveis da área aumentem ainda mais. “As obras da COP vão impactar exatamente os eixos imobiliários, alguns muito consolidados, que tem uma capacidade de controlar o preço de boa parte da cidade de forma muito intensa, como é o caso do eixo da Doca”, explica o professor Raul Ventura Neto.
De acordo com a Agência Pará, o projeto da Nova Doca envolve a construção de um parque linear com 1,2 quilômetros de canal, serviços de drenagem, paisagismo, urbanização e construção de passarelas, além da substituição das comportas para controle de água de maré, a fim de evitar inundações.
Alvo de outros projetos, como o Porto Futuro I, idealizado por Helder Barbalho ainda como ministro da Integração Nacional do governo Michel Temer, e Porto Futuro II, encampado como obra essencial para a COP-30, a antiga zona portuária localizada na região tem sido requalificada como espaço de lazer e turismo, com a instalação de parques, espaços de eventos e um hotel boutique do grupo internacional Vila Galé.
A pouco mais de dois quilômetros da Nova Doca, o Parque Linear da Tamandaré será implantado em torno da avenida de mesmo nome, com a promessa de “embelezamento de um novo espaço turístico, nova área de lazer, junto com o terminal hidroviário, que também está incluído no projeto”, segundo a agência do governo. Seus impactos devem alcançar outros bairros considerados nobres, como Nazaré, Batista Campos e o centro histórico de Belém.
Direta e indiretamente, os projetos de requalificação, liderados pelo setor público, beneficiam a expansão de empreendimentos privados, como o Boulevard Shopping, localizado na Doca de Souza Franco. Sob a promessa de criar milhares de novos empregos e impulsionar a economia local, o shopping center deve ser expandido para a área da antiga fábrica de sabonetes da Phebo, localizada no antigo bairro operário do Reduto, num projeto que envolve a construção de uma passarela privada sobre a rua.
No entorno do Parque da Tamandaré, no bairro da Cidade Velha, a previsão é que sejam instalados dois condomínios horizontais de alto padrão. Segundo as informações que circulam na imprensa de Belém, o primeiro terá 22 mil metros quadrados e 37 casas, em frente à Praça do Arsenal; e o outro, 71 mil metros quadrados, com 67 lotes urbanizados na orla acessada pela Avenida Bernardo Sayão, que possui ligação direta com a avenida do novo parque.
Na periferia da cidade, o clima é de preocupação
Com menos de 10 quilômetros de distância da Nova Doca, as preocupações com os impactos das obras da COP-30 sobre as periferias de Belém são compartilhadas por Manoel Fonseca e Jorge Oliveira, lideranças comunitárias e ativistas pelo direito à cidade.
A expectativa é que direitos assegurados nos bairros nobres, como saneamento adequado e espaços de lazer, cheguem a bairros historicamente excluídos da agenda de investimentos, como a Sacramenta, o Barreiro e o Telégrafo.
Ambas as lideranças acompanharam, desde os anos 1990, a chamada Macrodrenagem da Bacia do Una. O projeto envolveu a construção de canais de drenagem e infraestrutura básica, com a pavimentação de vias e instalação de galerias subterrâneas em diversos bairros periféricos que não possuíam sistema de drenagem.
Entre os problemas deixados por esse modelo de intervenção, está a alteração do curso natural do rio, com a destruição de matas ciliares e o aumento da erosão e do assoreamento. Além disso, a drenagem degradou igarapés, transformados em canais altamente contaminados com os efluentes de esgoto sem tratamento, sem eliminar os pontos de alagamentos que afetam vários bairros após chuvas fortes.
Com a escolha de Belém como sede da COP-30, a prefeitura da cidade optou por construir o Parque Urbano São Joaquim, cujo projeto foi elaborado após a realização de um concurso nacional na gestão de Edmilson Rodrigues. Com 150 milhões de reais assegurados pelo governo federal, por meio da Itaipu Binacional, o novo parque terá 4,6 quilômetros de extensão e 6,5 hectares de área. A mudança de gestão na prefeitura de Belém trouxe o temor de que o projeto, que contou com etapas de escuta da população dos bairros, seja drasticamente alterado.
“A gente não quer uma via de escoamento, a gente quer de fato um parque que traga lazer, que venha fazer o saneamento que é preciso, a mobilidade de forma adequada”, afirma o marceneiro Manoel Fonseca. Morador da área há mais de 40 anos, o ativista também destaca que a eficácia da intervenção urbana depende da valorização da cultura, apoio à juventude e garantia de segurança a partir da melhoria da qualidade de vida e das condições de trabalho nos bairros envolvidos.
Apesar do governo do estado prometer a construção de uma estação de tratamento de esgoto na Rodovia Arthur Bernardes, as lideranças se preocupam com a falta desse componente no projeto do Parque São Joaquim.
“A gente exige que sejam construídas as estações de tratamento de esgoto, porque o prefeito anunciou a navegação do São Joaquim”, exclama Manoel. “Não tem nada previsto para tratar o esgoto aqui dentro, algo que a gente sonhava lá atrás quando foi inaugurada a macrodrenagem”. Segundo Jorge Oliveira, alagamentos ainda são frequentes nas ruas do entorno do canal do São Joaquim, onde a mãe ainda reside na casa em que ele cresceu.
A falta de saneamento básico e tratamento de esgoto contribuem para a proliferação de doenças, aumentando a demanda por atendimento médico nos postos de saúde. Despejados sem tratamento, o esgoto proveniente das casas, hospitais e até de uma fábrica de papel contribui para o assoreamento dos canais, espalhando mau cheiro e a marginalização da área. “O progresso chegou e continua tudo do mesmo jeito. O que mudou? Nada”, questiona Jorge.
Procurada pela reportagem, a Prefeitura de Belém informou que o projeto do novo parque “contempla tanto o saneamento quanto o tratamento de esgoto ao longo do igarapé São Joaquim, onde serão implantados os chamados ‘módulos de apoio’, haja vista que a macrodrenagem da Bacia do Una, concluída em 2005, já havia trabalhado o saneamento da bacia e, consequentemente, a região do entorno”.
Além disso, segundo a prefeitura, a macrodrenagem do Una teria previsto “infraestrutura de coleta de esgoto para fins de tratamento”, o que deve ocorrer “tão logo seja concluída a Estação de Tratamento de Esgoto (ETE), sob responsabilidade do governo do Estado”.
Qual legado?
Nos espaços tradicionais de trabalho, como as feiras e mercados populares, as discussões sobre o legado da COP-30 para Belém parecem tropeçar nos grandes transtornos que as obras vêm causando no cotidiano das pessoas.
Em fevereiro do ano passado, um dos pontos de maior atração de turistas da cidade, o complexo de feiras e mercados Ver-o-Peso, começou a ser reformado pela prefeitura para o megaevento.
Na área da feira livre que integra o complexo, os trabalhadores reclamam da falta de informações precisas, da ausência de diálogo com a prefeitura e, principalmente, da desorganização no processo de remanejamento das barracas situadas nas áreas que cedem espaço para as obras.
Diferente do que ocorreu em 1999, quando o prefeito Edmilson Rodrigues realizou uma reforma considerada como referência de gestão participativa pelos trabalhadores da feira, as obras iniciadas em 2024 têm sido marcadas pela pressa característica dos outros projetos em execução na cidade.
Filha de uma das erveiras mais conhecidas de Belém, a dona Coló, cuja imagem já foi reproduzida em inúmeras propagandas de TV e outdoors pela cidade, Leila Bandeira conta que pelo menos seis pessoas do mesmo núcleo familiar trabalham e dependem diretamente da renda obtida no Ver-o-Peso.
Setores da farinha e do peixe seco fechados pela reforma. Foto: Brenda Taketa
Afastada do trabalho por questões de saúde desde 2022, dona Coló ainda tira o sustento e o custeio dos tratamentos médicos da barraca de ervas, essências e óleos vegetais, mantida com o trabalho dos filhos.
Assim como outras erveiras e feirantes dos setores da farinha e peixe seco, onde também são vendidas castanhas e cachaças regionais, a família de Leila e dona Coló tem sofrido prejuízos com o remanejamento dos boxes para uma área de pouca circulação de usuários, próxima ao estacionamento da Praça dos Pescadores.
“Não aconteceu isso na primeira primeira reforma. Na época, nós fomos para a pista [a calçada da Avenida Boulevard Castilho França] e nós vendemos bem. Dessa vez, eles colocaram a gente no pior local. Da vez passada, primeiro reformaram uma área, depois outra e outra. Só que agora não. Eles estão jogando as pessoas de qualquer jeito”, reclama a erveira.
Segundo Leila, a promessa feita pela prefeitura foi que a família retornaria aos espaços originais de trabalho em três meses, mas já se passaram dois, sem sinais visíveis de avanços na obra. “A gente não está vendendo. Às vezes, os meus irmãos não querem nem vir trabalhar, porque eles dizem assim: ‘Ah, Leila, a gente vai para lá, não vende’”, desabafa. “E a gente tem que pagar nosso transporte, tem que comer, às vezes a gente compra mercadoria, pensando que vai vender, aí chega na hora e não vende nada”.
A cozinheira Osvaldina Ferreira, do setor de refeições, retornou ao local de trabalho em dezembro, depois de meses de espera. Segundo ela, o espaço provisório a fez perder clientela. Durante o período, a renda diária da barraca, que já chegou a R$ 1.500 em dias de maior movimento na feira, caiu para R$ 45 ou menos. Para manter as despesas e a remuneração de três pessoas que trabalham no box, ela contraiu dívidas, situação vivenciada também por outros feirantes, segundo conta.
Dalci Cardoso trabalha na seção de industrializados, onde vende sandálias de couro com solados de borracha. As obras ainda não chegaram ao setor, mas ele reclama da permanente dificuldade no diálogo com a prefeitura e os responsáveis pela obra.
“A cidade, de um modo geral, está sendo transformada para ficar como legado [da COP-30]. É dito isso toda hora por todo canto, legado, legado, legado. Para nós, é legado e para nós também é uma necessidade urgente de transformar o Ver-o-Peso numa coisa melhor, que seja compatível com as nossas atividades, com padrões [adequados] de higiene, com o meio ambiente, o trânsito, a vivência e convivência com a comunidade de perto, no [bairro do] Comércio”, destaca.
Segundo Dalci, em geral, os permissionários da feira manifestam a preocupação com o aumento de custos, cobranças de água e luz, assim como a eventual elevação da taxa de uso das bancas durante e após a reforma. Outro temor é que a reforma inviabilize o trabalho, caso as mudanças nos espaços não sejam adequadas às reais necessidades de cada atividade. Para ele, o legado da COP-30 ao Ver-o-Peso só existirá, de fato, se houver apoio do governo para a qualificação dos feirantes, com treinamentos em gestão financeira, atendimento ao cliente e legislação do consumidor, entre outros tópicos.
A oferta de facilidades tecnológicas, como a compra de equipamentos, e empréstimos a juros baixos são outras medidas que podem ajudar os feirantes na recuperação dos prejuízos acarretados pela reforma e na melhoria dos negócios.
Sobre a reforma do Ver-o-Peso, a Prefeitura de Belém afirma que realizou “reuniões frequentes com cada departamento da feira” e, “depois de um acordo, os permissionários e seus equipamentos de venda foram remanejados para o estacionamento da praça do pescador, com previsão de retorno em 90 dias”.
Além disso, algumas exigências dos feirantes teriam sido atendidas, diz a Prefeitura, a exemplo da “mudança dos equipamentos de madeira para alvenaria”. A previsão é que as obras no Ver-o-Peso encerrem em agosto, com as mesmas taxas cobradas anteriormente, segundo as informações oficiais.
Artigo original publicado em O joio e o trigo.