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Como o pacote de Moro pode impactar nas lutas dos movimentos sociais?

Três pontos que criminalizariam ainda mais quem defende direitos humanos

Por Carla Benitez Martins, Homero Bezerra Ribeiro, Marco Alexandre de Souza Serra e Marília de Nardin Budó*

Quem pensa de maneira responsável e crítica sobre fundamentos do direito e sistema penal reagiu de maneira negativa ao “Pacote de Medidas Anticrime” do ex-juiz e atual Ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, protocolado no Congresso em 19 de fevereiro.

Trata-se de um pacote de leis que contradiz a Constituição Federal e que foi proposto sem ouvir quem se dedica a desvelar os ditos fenômenos de “criminalidade”, “corrupção” e “impunidade” para além das aparências de serem as causas da falência de um projeto social ao país.

São previstas alterações em 14 leis, sob a forma de três Projetos de Lei. Reproduz uma fórmula desgastada de política criminal. Por tomar o problema sob uma lógica causal-explicativa, lida com questões estruturais da máxima complexidade desde a equação “Mais penas, mais tipos penais, mais prisões, menos garantias processuais igual a diminuição da sensação de medo e do crime”, o que a história recente já repetidamente nos demonstrou ser falacioso. 

Da criação das Lei de Crimes Hediondos, de Drogas, de Organizações Criminosas, da Lei Antiterrorismo e de muitas outras alterações legislativas do mesmo formato só tivemos como efeito mais prisões e superlotações prisionais, mais truculência institucional, mais milícias e outros grupos organizados ilegais sustentados por braços estatais e menos respeito às liberdades públicas fundamentais. 

A grande preocupação que surge do pacote de maldades de Sérgio Moro é a da restrição de direitos e garantias processuais penais. Destacamos, nesta coluna, três pontos que demonstram como impactaria ainda mais na criminalização dos movimentos sociais, caso tais leis fossem aprovadas. 

A ampliação da legítima defesa para agentes de segurança pública em serviço

Apesar de importante instituto do direito penal, a legítima defesa tem sido usada com frequência em casos de homicídios praticados por policiais no exercício de suas funções. O “pacote anticrime” de Moro busca ampliar a incidência da legítima defesa em dois casos: quando a pessoa age desproporcionalmente em função de uma violenta emoção, medo ou surpresa causada pela vítima ou quando o crime é praticado por “agente de segurança pública” para prevenir agressão a direito seu ou de outrem em conflito armado ou em casos de vítima mantida como refém. 

Apesar de sutil, a  mudança exclui exatamente os dois requisitos mais importantes e também mais difíceis de serem provados em casos de mortes ou lesões causadas por violência policial: a existência de uma agressão injusta e a proporcionalidade da ação praticada em defesa. O resultado será claramente a confirmação legal daquilo que já é uma prática corriqueira, ainda que ilegal: a truculência policial justificada e impune contra as pessoas mais vulneráveis da população brasileira.

O conceito de organização criminosa

A proposta altera a redação dos primeiros artigos da lei de Organizações Criminosas (Lei 12.850/2013) e inclui na sua definição grupos criminosos de nomenclatura conhecida, como PCC, Comando Vermelho, Família do Norte e Amigos dos Amigos e denominando genericamente as “Milícias”.

O “Pacote Anticrime” deixa intocável a abertura conceitual do tipo, a aplicação discricionária e seletiva de seus “excepcionais” meios de produção de provas e ainda passa a eternizar e valorizar nomes específicos de partes de grupos organizados ilícitos, mantendo a abertura para outros. 

É um demonstrativo do aguçamento de conflitos e dos mecanismos existentes para enquadrar lutas sociais como crimes, de transformar conflitos políticos em casos de polícia. 

As mudanças no tipo penal do desacato

O pacote anticrime consolida a posição recentemente assumida pelo Brasil de colocar-se cada vez mais à margem das diretrizes historicamente traçadas pelos sistemas de direitos humanos, sejam eles regional, como a Corte Interamericana de Direitos Humanos ou global, formado pelos órgãos que integram a Organização das Nações Unidas. 

Enquanto a Comissão Interamericana de Direitos Humanos recomenda que países a ela associados extinguam leis de desacato, o pacote de Moro acena em sentido totalmente contrário. Além do acréscimo da pena de multa ao crime de resistência, propõe a desvairada inclusão de um novo  parágrafo ao artigo 329 do Código Penal, definindo uma forma qualificada da prática da mesma ação proibida. 

O propósito é impor uma (já alta) pena mínima de 6 anos e uma escandalosa pena máxima de 30 anos de reclusão à hipótese em que, da resistência, resultar morte ou mesmo risco de morte a funcionário público ou outra pessoa.

Trata-se, como já apontou nota do Instituto Carioca de Criminologia (ICC), de intento completamente desproporcional: ao propor pena de tal magnitude, o pacote de leis deixa cair mais um dos incontáveis véus que seu artífice cada dia tem sido menos capaz de sustentar. Mais uma vez desvela-se, assim, a intenção de dinamizar o circuito judiciário-midiático eficaz e seus correspondentes dividendos eleitorais. 

Essas são propostas que anunciam tendência de uma mudança de patamar de qualidade das aberturas autoritárias do estado, e que atingiram, sempre, os mais desprivilegiados da sociedade.

A formação, resistência e articulação política são nossas ferramentas imprescindíveis para transcendermos os grilhões que insistem em nos amarrar mais e mais. Venceremos! 

* Carla Benitez Martins, Homero Bezerra Ribeiro, Marco Alexandre de Souza Serra e Marília de Nardin Budó são integrantes do Gt de Criminologia Crítica e Movimentos Sociais do IPDMS (Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais)

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