Confesso que cultivo sentimentos contraditórios sobre Dalton Trevisan, vida e obra. Meu encontro secundarista com sua literatura, curta e grossa ou nua e crua, se dera lendo “Em busca de Curitiba perdida”, obrigatória para o vestibular. A antologia logo me empurraria a conhecer o “Vampiro de Curitiba”, clássico livro de contos de uma cidade perdida como aquela que já era memória, em 1965, ano de seu lançamento. O primeiro membro da equação estava formado, com um furor pró-Dalton.
O segundo lado da mesma operação algébrica, entretanto, dar-se-ia já sob as névoas da lembrança, as quais só resgatavam a pressão do canino que Trevisan, vampirescamente, fazia valsar sobre a face de seus textos. Do que minha memória guardou, o conto “Debaixo da ponte preta” foi o que resistiu ao tempo e marcou presença em meu imaginário sobre o autor. Reelaborada sob o impacto dos estudos universitários, minha predisposição invernista (nomenclatura com a qual gravei meu bairrismo juvenil) dava espaço a uma desconfiança crítica, uma década antes de o curitibanismo jactar-se com sua república conservadora do sul agrícola do Brasil.
"Mania dela de ler jornal. Todo dia tem de saber quem morreu"
(Dalton Trevisan, em “O defunto bonito”)
Há coisa de um mês, a 9 de dezembro de 2024, lia no jornal que Dalton Trevisan havia falecido. Hoje, releio vários de seus contos e enfrento outros, ainda não lidos – essa mania de homenagear os mortos… O primeiro que retomo é justamente “Debaixo da ponte preta” e, ao final, o sentimento ambíguo, com gosto de bolinho de carne recheado, também por dentro, com vidro moído. É assim que para mim passa a fazer total sentido a interpretação oscilante de sua fortuna crítica (ideia que reelaboro a partir do ensaio “Anjo mutante”, de Leopoldo Comitti), dividida entre os que veem em sua obra a denúncia social e os que a entendem como mero exercício de memorialismo. No frigir dos ovos, a contradição se dá entre ser literatura crítica engajada ou obra tradicional desinteressada. De fato, as duas coisas ao mesmo tempo.
O que se passa, afinal, debaixo da ponte preta? Em um caleidoscópio de narrativas repetidas em versões incoerentes entre si, o contista relembra – sem metalinguagem expressa – seus tempos de estudante de direito, assim como de jornalista, e apresenta a situação como em um relatório policial. A cada nova personagem em cena, um boletim de ocorrência no labirinto. Miguel, Nelsinho, Alfredo, Durval, Pereira, Sílvio, Leocádio – até o moleque José? –, todos, um por um (e quantos mais?), violentam Ritinha da Luz. Ela, mulher negra e empregada doméstica, saía da casa dos patrões, tarde da noite, e cruzava a rua por cima da qual passa uma ponte preta para chegar à casa da irmã. A “ponte preta” e a “negrinha”, citadas por Trevisan (lembremos que, geograficamente, o evento se dá à rua João Negrão, logradouro não explicitado pelo autor), são espaço e objeto da violência de cinco ou mais homens, cujas ocupações de soldado, guarda ou segurança da estrada de ferro (ao lado de estudantes) são sugestivas para pensar a relação entre a forma e o conteúdo do conto. Não parece haver coincidências aí, o autor embaralha o leitor fazendo confundir os papéis que desempenham o bem e o mal, na história. Mas uma inegável crueldade sobressai-se e é impossível não assumir posição em prol de Ritinha.
Eis, então, os termos da contraditoriedade à qual aludo. Não há muita dúvida sobre o fato de que Dalton Trevisan dedica especial interesse à marginália curitibana, mesmo que às vezes revestida da aura de pessoas de bem. Suas novelas são colonizadas por amantes, bichas, virgens, traficantes, agiotas, velhinhos, prostitutas, lésbicas, loucas, bêbados, viúvos, maníacos, garotas de programa, ladrões, pivetes, bandidas, assassinos, monstros, dançarinas, cafetões, boêmios e mais um sem número de operários e funcionárias que fazem parte do glossário daltonesco, de cuja reprodução em sua inteireza se torna impossível – para comprová-lo basta compulsar os sumários de suas publicações, reescritas e reorganizadas ao longo de cerca de 65 anos. É que Dalton renegaria toda sua obra pré-1959, ano em que traria a público “Novelas nada exemplares”, ganhadoras do prêmio Jabuti de 1960.
Em verdade, imaginei redigir este texto, que ora dou a conhecer, com foco nos escritos de Trevisan que faziam menção à periferia fundacional de Curitiba, aquela que habita as margens do rio Belém, próxima à rede ferroviária. Como é sabido, ali surgira uma das primeiras – se não a primeira mesmo – vila favelizada da cidade e, com ela, a primeira escola de samba e todo um território original para a arte negra, operária e periférica de Curitiba. Até recolhi algumas passagens, como a que fica evidente no título do conto “Dá uivos, ó porta, grita, ó rio Belém”; ou a que se esconde em “Pensão Nápoles” cujo protagonista termina por cuspir sangue tifoide nas marginalizadas águas fluviais que, certamente, alagaram a Vila Tassi, a Vila Capanema, a Vila Pinto e a Vila Torres, todo o Rebouças enfim. Esta parte da obra do contista curitibano, no entanto, resta plenamente subsumida à reflexão maior a que estou sujeitando sua produção, designando-a com uma ideia de ambivalência.
E qual o porquê de destacar esta deriva? É que me parece residir aqui uma temática nodal ao imaginário social de Curitiba, que repercute em seus movimentos políticos e em sua formação educacional, intelectual e cultural, assim como no modo como seu povo se integra aos horizontes éticos e estéticos da nação.
A mim me parece, fazendo uma reflexão análoga ou paralela, que figuras históricas como as de Sepé Tiaraju ou Antônio Conselheiro precisam ser disputadas politicamente da mesma maneira como já o foram Tiradentes, entre nós, ou Simón Bolívar, entre os irmãos latino-americanos. O grito do guarani Sepé, de que “esta terra tem dono”, legitima os latifundiários sul-rio-grandenses ou a luta dos sem-terra gaúchos? O movimento dirigido por Conselheiro, em Canudos, é loucura messiânica ou organização de classe nos fundos de pasto baianos? O mesmo pode ser dito a respeito do monge João Maria, na guerra do contestado, ou acerca da interpretação jacobina que Paulo Leminski dá à biografia de Jesus Cristo. Outro exemplo que me salta aos olhos e sobre o qual já escrevi é o de Gregório de Matos, verdadeiro fundador da literatura propriamente brasileira, com suas picâncias, carolices, musicalidades e irresignações políticas. Gregório de Matos, apesar de sua crítica conservadora, carrega consigo também uma crítica inconformista, logo uma crítica-síntese barroca.
Nada há de barroco na ferinidade crítica de Dalton Trevisan, verdade seja dita. Mas o pêndulo de Bolívar (que é o mesmo de Gregório, Tiradentes ou Cristo, Tiaraju, Conselheiro ou João Maria) se atualiza sobre a testa de Trevisan e projeta uma disputa para o seu pós-morte.
Consta que em uma entrevista – bem informal, concedida a Fernando Granato, quando ainda estudante de jornalismo – Dalton decretara: “o autor não vale o personagem, só a obra interessa. O conto é sempre melhor que o contista”. Assim sendo, se é bem verdade que é da pena do mesmo escritor a frase segundo a qual ele se ironiza e se pergunta “por que não desafia os poderosos do dia: o banqueiro, o senador, o general?”; se é verdade esta conclusão de “Quem tem medo do vampiro?”, também é real sua acachapante crítica ao “Emiliano redivivo” (ou seja, tanto a Emiliano Perneta quanto a Helena Kolody) ou ao que aparece em “Lamentações da Rua Ubaldino”: “perversa é essa igreja/ e mais barulhenta que todas […]/ casa de oração convertida em covil/ de salteadores da paz […]/ ah! Espada do Senhor/ até quando descansarás na tua bainha?”.
Não parece ter sido por acaso os correligionários da tradição absoluta na Curitiba dos últimos quase 40 anos, a lernista (e suas ramificações tucano-roedoras), renderem-lhe tímidas e escassas homenagens às vésperas de completar seu centenário. Leminski, tendo vivido pouco mais quatro décadas, foi incensado – e, a meu juízo, com razão – como um de nossos maiores.
Nem se imagine que Dalton Trevisan não fazia elogios a ninguém, pois os rasgava a Machado de Assis, Rubem Fonseca ou Clarice Lispector. Aliás, aficionado por Capitu, dedicou-lhe vários textos e a um de seus livros intitulou “Capitu sou eu”.
Dalton rechaçou, sim, a ideologia da cidade modelo: “Curitiba – essa grande favela do primeiro mundo”, escreveria em “Pico na veia”. É verdade que apelou um bocado à nostalgia, mas até o fim foram os comportamentos desviantes que lhe serviram de molde e não a modelagem artificial do bom-mocismo que finge não conhecer quaisquer dos estabelecimentos citados no conto “Noites de Curitiba”, do Bar Palácio ao Quatro Bicos – hoje, podendo-se atualizar o arco exemplificativo, indo-se do Alemão ao Gato Preto.
É verdade que nosso vampirizante literato era adorador da música. Seu primeiro livro – deserdado, por sinal – chamou-se “Sonata ao luar” e cantou Veneza, entre outras coisas, ao tempo da revista “Joaquim”, na década de 1940. Contudo, a música popular volta e meia aparece e reaparece em seus contos, seja uma valsa de Orlando Silva, como em “Valsa de esquina”, um verso do samba “Jura” de Sinhô dando título ao texto (“Um beijo puro na catedral do amor”) ou um sambista de breque chamado Nô (a quem se dedica a frase “Deus te livre ser boêmio na fria noite curitibana”), em “Que fim levou o vampiro de Curitiba?”.
Eis aí, então, as condições objetivas e subjetivas para se falar na premonição que fantasmagoriza a presente pensata: o exílio em si mesmo do quase centenário escritor levou à possibilidade de uma disputa sobre seu legado, importando, no fim das contas, em uma rebelião do leitor, para usar a expressão de Terry Eangleton, tal como ela foi traduzida entre nós. A interpretação literária começa pelo autor mas logo passa à obra em si e a frase de Dalton revela a síntese pré-dialética à qual ele chegara – “o autor não vale o personagem, só a obra interessa”; quando o leitor se rebela, porém, surge a potencial consigna “todo o poder aos leitores” e estes, tornando-se escritores, apropriam-se de seus meios de produção, inclusive autores e obras anteriores.
Dalton Trevisan morreu seis meses antes de completar seu centenário. Arredio, como sempre, quis priorizar sua produção literária e, prevendo sua despedida, autorizou uma edição fac-símile de “Sonata ao luar” (pela editora Arte e Letra) assim como chegou a ver anunciado que suas obras completas seriam editadas (pela editora Todavia). Mas, receando os holofotes, fugiu dessa vida, embora – não-academicamente – imortal. Pudera, precisava descansar após visar e revisar seus mais de 50 livros (pelo que se diz, continuou revisando seus contos para a edição centenária até o fim de seus dias).
Termino a premonição anunciada sugerindo ter um lado na disputa em torno da obra trevisaniana, enviesando a contraditória equação inicial: sua Curitiba perdida não é só a do passado, mas a que se perdeu dos proclamados padrões do capitalismo possível na periferia moderna e colonial do sistema-mundo e que fez seus habitantes restarem perdidos, também. A Curitiba anti-modelo, quase que uma anti-Curitiba propriamente, emerge a olhos nus.
É óbvio que sempre vai subsistir o argumento razoável de que se trata de texto que parece naturalizar a violência, o patriarcado, o racismo, a desigualdade de classe. É uma interpretação legítima. Mas, ainda assim, fico com a sugestão de que olhar para a miséria humana não é normalizá-la, mas uma ocasião para se poder revoltar diante dela. Aqui está o busílis: daremos de graça o rosário de marginais, entoado em preces desbocadas por Dalton, aos conservadores? Ou, na necessária batalha das ideias, subtrairemos à cultura da violência sua identidade positiva e afirmaremos a nossa, acusando a aparência de defesa da moral e dos bons costumes, revelando o esconderijo da essência da cultura patricial e autocrática (para fazer uso da teoria política latino-americanista de Darcy Ribeiro) do capitalismo dependente? De minha parte, miro o imaginário social local e não tenho muita dúvida sobre o que fazer…
Se o autor que tanto busquei na seção de livros de literatura paranaense da Biblioteca Pública do Paraná ou da Livraria do Eleutério se foi, ficou sua ironia flamejante e seu realce bordejante para uma cidade que se maquia de europeia mas não passa de, como não poderia deixar de ser, latino-americana, com especificidades caboclas banto-guarani-polacas. Nunca o encontrei ao vivo e em cores, mas sempre o li com a admiração de quem estudou na mesma faculdade de direito, invejando-o, ainda que nos momentos mais ressabiados. Afinal, é para poucos poder zombar decididamente do penalista-simbolista (ainda que, ainda bem!, abolicionista) Emiliano Perneta; vencer Wilson Rio Apa (justo ele, futuro escritor e marinheiro que daria a volta ao mundo desbravando os sete mares) em inúmeras provas estudantis de atletismo durante a graduação; ou tornar-se ficcionista após abandonar a advocacia na provinciana Curitiba!
Ainda que pareça se concretizar a frase de Dalton – outra premonição? – de que “basta morrer, você nunca viu defunto mais bonito” (em “O defunto bonito”), prefiro aderir a seu cumprimento matinal à cidade que desperta com toda sua fauna, descrita no correr da vida que começa em mais um dia de trabalho (ou de vagabundagem). Em acerto de contas com a genialidade de Dalton Trevisan, fico com sua crítica, de uma só vez modernista e anti-modernista, a uma Curitiba que lhe viajava e, ao fechar os olhos, dizia, em “Dá uivos, ó porta, grita, ó rio Belém”: “bom-dia, Curitiba – ó vaca mugidora que pasta os lírios do campo e semeia fumegantes bolos verdes de sonho”! Enfim, rebelando-me como leitor, leio no jornal que Dalton Trevisan morreu e vaticino que ao redor da capa do vampiro duas velas serão acesas (subvertendo mas copiando “Uma vela para Dario”), instaurando-se longa querela em torno de seu legado. Fico com a vela mais próxima das classes populares, por maiores sejam as contradições que lhe atravessem. O futuro de uma obra reside, ai de nós!, na rebelião de seus leitores.
*Ricardo Prestes Pazello é professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e integrante do Bloco de Samba Boca Negra.
Leia outros artigos de Ricardo Prestes Pazello em sua coluna no Brasil de Fato PR.