Ouça a Rádio BdF
Ouça a Rádio BdF

Crônica de uma morte anunciada

Pelo fechamento imediato do Hospital São Vicente de Paulo!

No dia de Natal, 25/12, Raquel de Andrade, mulher, negra, 24 anos, morreu no Hospital Psiquiátrico São Vicente de Paulo (HSVP).

O HSVP é um manicômio, público e ilegal há 25 anos, já que sua manutenção desrespeita a Lei 975/1995 do Distrito Federal, por exemplo, quando ela determina que: “[o]s leitos psiquiátricos em hospitais e clínicas especializados deverão ser extintos num prazo de 4 (quatro) anos a contar da publicação desta Lei” (Distrito Federal, 1995, s/p.); e que “[f]icam proibidas, no Distrito Federal, a concessão de autorização para a construção ou funcionamento de novos hospitais e clínicas psiquiátricas especializados e a ampliação da contratação de leitos hospitalares nos já existentes, por parte da Secretaria de Saúde do Distrito Federal” (s/p.).

No livro "Crônica de uma morte anunciada", publicado em 1981, Gabriel Garcia Márquez constrói uma narrativa não-linear, a partir da morte de Santiago Nasar. O título do livro já nos fornece o “desfecho” da história que, é na verdade, o seu início, no que se refere à narração e construção da obra.

O que Gabo, apelido carinhoso do grande escritor colombiano, nos instiga e angustia ao prenunciar a morte de Santiago é: como uma cidade inteira deixou que tal crime ocorresse? Como não se fez nada significativo para evitar o assassinato e a morte de Santiago, mesmo sabendo que sua morte ocorreria.

Tomo a referida obra para afirmar e denunciar que a morte de Raquel foi também uma morte anunciada. A morte de Raquel é anunciada há 25 anos, que é o tempo de ilegalidade do HSVP. Melhor dizendo, a morte de Raquel é denunciada desde a criação do HSVP; ou antes disso, quando o primeiro manicômio foi criado em nossa sociedade.

:: Paciente morre em condição suspeita no Hospital São Vicente de Paulo, no DF ::

A morte de Raquel foi gritada pela própria Raquel, inúmeras vezes, só que lida pelo manicômio e sua lógica como mau-comportamento, como violência, como simulações (pelo termo técnico “crises conversivas”, conforme consta em anotações de seu prontuário).

O grito de Raquel acerca de sua mortificação – física e subjetiva – foi “tratado” com contenção mecânica (outro termo técnico que significa amarrar, prender) ou contenção química (leia-se: dopando-a).

Ou seja, o grito de Raquel foi silenciado, assim como todos os gritos que se dão dentro dos muros de uma instituição que é edificada para silenciar. As crises de Raquel, suas convulsões, sua dita rebeldia ou suposta violência eram gritos por liberdade. Em suma, os seus atos eram, na verdade, denúncias: eu estou sendo morta; o manicômio está me matando.

O óbito de Raquel foi mais uma camada de mortificação em um continuum da morte que é o manicômio, e que é produzido pelo manicômio. Raquel foi sendo morta, diariamente, ao estar depositada em uma instituição que é mortificadora.

Com isso, não queremos dizer que houve má-fé da equipe, muito menos estamos imputando qualquer coisa ou fazendo ilações a ninguém. Só estamos dizendo o óbvio que, infelizmente, precisa ser dito e reforçado: o manicômio mata!

:: 'É uma vida marcada por violação de direitos', diz profissional de saúde sobre Raquel Franca ::

A partir dessa constatação, as perguntas que ficam são: como um governo deixou que tal morte ocorresse? Como toda uma sociedade permite que isso aconteça? Como não se fez nada significativo, como o fechamento do HSVP, para evitar a morte de Raquel, mesmo com ela gritando aos quatro cantos que estava sendo mortificada em tal instituição?

Não há justiça que traga o corpo de Raquel de volta. Não se trata de um caso isolado. E mesmo que fosse, não importa; uma vida é importante. E mais, como dissemos, o óbito foi uma das etapas de uma mortificação que vai se dando paulatinamente nos/pelos manicômios.

:: Organizações exigem fechamento urgente de hospital psiquiátrico no DF ::

Todas as nossas lamentações referentes à morte de Raquel são tardias. Portanto, são hipócritas. E mesmo nossos sentimentos genuínos não podem findar em si.

Se se lamenta de fato a morte de Raquel, mesmo que de maneira tardia e hipócrita, temos que envidar todos os esforços ao nosso alcance para que o que aconteceu com ela não aconteça com mais ninguém. Um ponto de partida possível – e necessário – para isso é o fechamento imediato do HSVP!

:: Especialistas recomendam fechamento de Hospital psiquiátrico e Comunidade Terapêutica no DF ::

Em um de seus últimos pronunciamentos, a incontornável Marielle Franco, que acertadamente captou e denunciou o caráter exterminicida da chamada guerra às drogas, indagou: Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe?.

Tomo a liberdade, respeitosamente, para parafraseá-la: Quantos mais precisarão morrer para que o HSVP seja fechado? Quantos mais serão mortificados?

Existem, neste exato momento, diversas outras mortes anunciadas e efetivadas no HSVP – e em todos os manicômios que ainda perduram. Até quando aceitaremos e seremos cúmplices delas?

Raquel, presente!

Pelo fechamento imediato do HSVP!

Pelo fim de todos os manicômios!

:: Leia outros textos desta coluna aqui ::

*Pedro Costa é membro do Grupo Saúde Mental de Militância do Distrito Federal UnB.

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

:: Clique aqui para receber notícias do Brasil de Fato DF no seu Whatsapp ::

Veja mais