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Planejamento funciona, socialismo é possível

O que explica a vertigem irracional que nos cerca é um capitalismo insaciável

Devemos tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de sua desigualdade. (Aristóteles)

O projeto socialista é o de uma gradual satisfação de mais e mais necessidades, e não uma restrição a requisitas básicos. Marx nunca foi um defensor do ascetismo ou da austeridade. Ao contrário, o conceito da personalidade totalmente desenvolvida, que é o próprio coração de sua visão de comunismo, implica a satisfação de uma grande variedade de necessidades humanas, e não um estreitamento decrescente de nossas necessidades a alimentos básicos e moradias. O desaparecimento gradual do mercado e das relações monetárias concebido por Marx, envolveria a extensão gradativa do princípio de alocação de recursos ex-ante para a satisfação destas necessidades em um número cada vez maior de bens e serviços, engendrando uma variedade mais ampla, e não menor, do que a existente sob o capitalismo hoje em dia. (Ernest Mandel)


Em 2022 a humanidade atingiu a impressionante cifra de oito mil milhões de seres humanos. A propaganda a favor do capitalismo, liberal ou conservadora, argumenta que, apesar da pobreza e da desigualdade entre as classes e os países, apesar da ameaça catastrófica colocada pelo aquecimento global, apesar do perigo da onda de extrema direita mundial liderada pelo neofascismo, vivemos no melhor mundo possível. A natureza humana seria um obstáculo intransponível. O egoísmo, a avareza, a cobiça, a voracidade e a ambição seriam naturais e ingovernáveis. Esta ideia, embora muito influente, é falsa. O que explica a vertigem irracional que nos cerca é um capitalismo insaciável e cada vez mais estrambótico, que leva ao poder bufões perigosos como Trump e Milei.  

A natureza humana, entendida como instintos e impulsos reguladores de comportamentos herdados de nossos ancestrais do Pleistoceno, é complexa. Favorece a cooperação, porque somos seres hiper sociais que só podíamos sobreviver nas savanas pela solidariedade da vida em bandos e grupos de consanguíneos e, também, territorialistas e conflituosos. Mas esta natureza não é o bastante para compreender a humanidade que construiu ciência, riqueza, educação e arte. Marx rejeitava vigorosamente interpretações baseadas em padrões de comportamento social rígido. Argumentou que a humanidade reinventou, permanentemente, a si própria por meio do trabalho e da cultura. 

Segundo a narrativa dominante, o capitalismo estaria erradicando a pobreza e criando uma nova classe média nas Filipinas ou em Angola, por toda a parte. A desigualdade social estaria, surpreendentemente, diminuindo também. A conclusão, desesperadamente, otimista é que o direito à propriedade privada e a regulação mercantil pela oferta e procura teriam provado, diante da história, sua superioridade.  

A publicação do livro de Piketty sobre a preservação da desigualdade social na longa duração, O capitalismo no século XXI, produziu, portanto, grande controvérsia. Nas suas palavras categóricas: "É um fato: todos os rankings de riqueza indicam que os mais ricos estão cada vez mais ricos, e cada vez mais rápido".

A alocação de recursos por um mercado desregulado; os ajustes feitos pela oferta e procura sem intervenção estatal; o direito irrestrito ao entesouramento; o direito de herança inviolável; a redução do custo fiscal dos Estados; as privatizações dos serviços públicos; a flexibilização das relações trabalhistas; a redução da proteção ao desemprego; a privatização das aposentadorias. Eis a receita mundial para defender as condições que favoreceriam a volta ao crescimento econômico. Só a blindagem dos interesses dos capitalistas poderia favorecer investimentos necessários para o desenvolvimento. Esta é a guerra ideológica. Este é o mantra, em primeiro lugar de Trump, e dos megamilionários das Big Techs das tecnologias de informação que o apoiam.  

Nenhuma destas conclusões é correta. Como definir o que é a pobreza no mundo contemporâneo? É um tema envolvido em uma hemorrágica discussão sobre critérios. Quais devem ser as linhas de corte? Entretanto, não é controverso que ainda hoje pelo menos um bilhão de seres humanos vivem com até US$1,00 por dia. Outro bilhão com até US$2,00. O mais importante é compreendermos que a miséria material que condena dois terços dos sete bilhões a viver com até US$8,00 por dia não é uma fatalidade. Não é verdade que o mundo não disponha de recursos para libertar esta maioria do flagelo da penúria extrema. Ela já poderia ter sido erradicada. Mas os propagandistas do capitalismo defendem que não é possível. O que parece mais ou menos incontestável é que o capitalismo não o fará.  

Entremos, portanto, de frente em uma discussão teórica chave do marxismo que poderíamos enunciar como a teoria das necessidades em Marx. Expliquemo-nos: o socialismo se fundamenta na defesa que as necessidades humanas mais intensas são homogêneas, ou seja, são as mesmas para todos e, portanto, poderiam ser aferidas a priori antes da produção. Logo, a produção poderia ser organizada em função de uma alocação de recursos pelo planejamento.  

Em última análise, a discussão sobre a possibilidade da satisfação das necessidades remete aos fundamentos. É a própria ideia de socialismo que está em questão. Está em debate a superioridade ou não de um planejamento democrático. O que envolve a discussão da participação das amplas massas nas decisões de uma esfera pública alargada e complexa, que exige muitas decisões (e o tempo e a educação para querer e poder tomar decisões).  

Mas está em discussão, antes de tudo, definir se as necessidades são limitadas e previsíveis, ou se elas são ilimitadas. Da aceitação do postulado de necessidades ilimitadas decorreria que a ideia de que a abundância relativa é possível desmoronaria, e a humanidade estaria condenada à escassez, com as suas inseparáveis sequelas: a mesquinhez, a propriedade privada, as classes e suas lutas, o Estado, etc. Todo o edifício da hipótese marxista de uma transição para uma sociedade sem classes vem abaixo.  

O marxismo sempre defendeu que a satisfação das necessidades mais intensamente sentidas é possível e que a abundância pode ser construída, progressivamente, como um processo. O que não significa que as necessidades não se alterem com o surgimento de novas demandas que resultam do progresso econômico e cultural, não necessariamente nessa ordem. Mas as necessidades que têm um maior grau de exigência foram em uma mesma época histórica sempre as mesmas.  

A experiência histórica do século XX deu razão a Marx de uma forma indiscutível: o boom do pós-guerra nos países centrais, a partir de 1945, revelou que o acesso a padrões materiais e culturais mais elevados de vida, permitidos pelo pleno emprego e pela elevação do salário médio, produzia-se com uniformidade nos padrões de consumo. A constância na demanda não surpreendeu os marxistas.  

As pessoas comuns não querem muito. Quando melhoram as condições de vida, o cidadão médio tem as mesmas prioridades: primeiro, o aumento do consumo de alimentos, com maior variação e mais fontes de proteína. Ou a aquisição de eletroeletrônicos que definem o conforto da vida doméstica e o lazer mais barato. Depois, a busca do acesso à compra da casa própria, para se libertar do aluguel, e a preocupação com a maior escolaridade dos filhos e a reivindicação por mais e melhores serviços públicos. Por último, as férias, as viagens, etc. Em algum momento, o transporte individual.  

Reconhecer que o padrão de consumo é homogêneo, uniforme, constante e previsível não deve obscurecer o fato de que: (a) ele muda; e (b) de que existe uma parcela de consumo idiossincrático ou aleatório. As necessidades mais intensas são as mesmas para todos que vivem a mesma etapa da história, mas as dos jovens do século XXI não são iguais àquelas de cem anos atrás. Nem sequer iguais àquelas de quarenta anos atrás. O conteúdo do progresso foi, justamente, o aumento das necessidades. Também é verdade que existe uma margem de consumo pessoal que não é previsível e que obedece a preferências subjetivas, muito peculiares, até íntimas.  

O importante é que pelo menos 90% do consumo de pelo menos 90% da população é homogêneo. Sendo assim, é perfeitamente previsível. De todas essas considerações se deve, portanto, concluir que não existe hoje nenhuma argumentação sólida, nem na economia, nem na sociologia que desqualifique o planejamento como o método mais eficaz de alocação de recursos.  

Mais eficaz não significa infalível. A alocação pelo planejamento é suscetível, também, de erros e, portanto, de desperdício de recursos que permanecem escassos. Porém, é mais eficiente que a alocação pelo mercado. Porque o papel do mercado é maximizar as condições favoráveis para que os proprietários do capital possam ganhar dinheiro. O papel do planejamento é maximizar as condições para que as necessidades mais intensas possam ser satisfeitas. 

Os apologistas do capitalismo defendem que as necessidades são incertas, impossíveis de serem calculadas e, a rigor, ilimitadas, cabendo ao mercado revelar a posteriori se a demanda efetiva foi satisfeita ou se ocorreu subprodução ou superprodução. No pós-guerra de 1945, a utilização de políticas anticíclicas de inspiração keynesiana deslocou a influência das premissas liberais clássicas, e a ideia de que o Estado poderia através de sua intervenção, dentro de certos limites, e até certo ponto, definir a demanda estabelecendo uma regulação sobre o mercado, se afirmou como pensamento burguês dominante. E o impacto do pleno emprego foi decisivo para garantir a estabilidade dos regimes democrático-liberais.

A crise depressiva prolongada aberta em 1973/74 trouxe de volta ao poder os fundamentalistas da “regulação mercantil pura”, e esta tem sido a política hegemônica, desde então, na fórmula neoliberal, radicalizada após a crise mundial de 2008. O desenlace deste processo foi a estagnação econômica por uma década, inclusive nos país imperialistas centrais, enquanto a economia chinesa não parava de crescer, beneficiada pelos recursos do planejamento econômico regulando as pressões do setor privado capitalista.  

Os recursos hoje disponíveis pelo desenvolvimento das forças produtivas, mesmo considerando que a permanência obsoleta da ordem imperialista bloqueie o potencial libertador nelas contido, permitiria arrancar das condições de miséria biológica, em pouco tempo, bilhões de seres humanos. A miséria material já poderia ter sido erradicada. A permanência senil do capitalismo é a explicação da sua perpetuação. 

                                                                           

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