Depois de ser alvo de críticas de entidades da sociedade civil e de inquérito do Ministério Público para apurar violação de direitos, a prefeitura de Campinas (SP) anunciou nesta segunda-feira (7) que vai rever um decreto que limita a distribuição de doações para a população em situação de rua.
Em tese, as novas normas passam a valer a partir de 14 de fevereiro, duas semanas depois da publicação no Diário Oficial, que aconteceu no último 31 de janeiro.
O Decreto nº 21.934 assinado pelo prefeito Dário Saadi (Republicanos) institui o projeto “Vem com a gente”. Nele, a administração municipal determina que quem quiser fazer doações de alimentos ou roupas para pessoas em necessidade só o poderá fazer em determinados pontos de distribuição e mediante cadastro em plataforma digital da prefeitura.
De acordo com o texto original do decreto, quem descumprisse as novas normas e, por exemplo, distribuísse espontaneamente um sopão na esquina, poderia ser punido. A maneira como isso aconteceria, no entanto, não foi explicada. De forma vaga, o documento diz que os órgãos municipais vão “adotar as medidas cabíveis” e aplicar as “sanções administrativas pertinentes”.
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A reação foi imediata. E o recuo da prefeitura foi anunciado na segunda-feira (7), depois de uma reunião de secretários com vereadores no período da tarde e com coletivos que atuam com a população em situação de rua durante a noite.
Em nota, a gestão de Saadi afirmou que “serão revistos alguns itens do decreto”. De acordo com a prefeitura de Campinas, “o ‘Vem com a gente’ tem como objetivo primordial organizar a distribuição de refeições doadas por voluntários”.
Contrariando o que está escrito no texto original do decreto, a prefeitura informa ainda que “a intenção nunca foi proibir ou punir voluntários que distribuem refeições”.
Até o momento, a administração municipal de Campinas definiu 14 pontos onde poderão ser feitas doações para a população em situação de rua. Três são no centro da cidade.
“Que a desumanidade não se torne lei”
Campinas Invisível, braço regional da ONG SP Invisível, afirmou que a iniciativa foi uma tentativa da prefeitura de decretar a fome no município.
“O decreto flagrantemente ilegal e absurdo é o retrato das políticas higienistas e desumanas que crescem no país na tentativa desesperada e inepta dos governantes de ‘conter’ o aumento exponencial de pessoas vivendo nas ruas”, avalia a organização, que tem como foco a coleta de relatos e histórias de vidas de pessoas em situação de rua.
“Não tem como se sustentar a medida”, segue o comunicado, “de multar os que se dedicam a suprir a incapacidade estatal”: “Que a desumanidade não se torne lei e que o descaso não se torne regra”.
Filipe Luna, advogado e pesquisador junto a pessoas em situação de rua em Campinas, participou da reunião com a prefeitura nesta segunda-feira (7). “Ninguém é contra a ampliação dos serviços, mas isso não pode estar associado à proibição de doações voluntárias”, atesta.
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Segundo Luna, a prefeitura se comprometeu a editar novo decreto, retirando as sanções previstas. “Esse é o objetivo principal no momento, para evitar a criminalização do trabalho voluntário”, explica.
“Contudo, o problema do ‘incômodo’ que essa população causa, muito maior que a capacidade de sensibilização das gestões governamentais, irá persistir”, avalia.
O padre Julio Lancellotti, da Pastoral do Povo de Rua em São Paulo, também denunciou o decreto da prefeitura de Campinas em suas redes sociais.
“Em geral, toda forma de opressão é travestida de humanismo”, afirmou o pároco em uma das suas missas em que citou o episódio. “É preciso ir contra a corrente”, defendeu o padre Julio: “Ter a coragem de compartilhar, num mundo de acumulação”.