Uma nova onda de candidaturas bolsonaristas ao Congresso Nacional tentará tirar proveito, nas eleições de outubro, das brigas e confusões estimuladas pelo presidente Jair Bolsonaro (PL) e seus aliados. Nomes que ganharam destaque e popularidade nas redes sociais e foram acolhidos pela extrema direita por se identificarem com pelo menos uma das muitas bandeiras conservadoras que foram empurradas ao debate público.
Um exemplo é a médica Nise Yamaguchi (Pros-SP), responsabilizada no relatório final da CPI da Covid por seu papel como defensora do “tratamento precoce” com cloroquina e acusada de fazer parte de um “gabinete paralelo” para aconselhar Bolsonaro. Apesar das mais de 665 mil mortes e pela ineficiência do governo durante a crise sanitária, Nise manteve apoio na classe médica e popularidade para se candidatar a senadora por São Paulo.
A médica é um dos rostos identificados com o negacionismo na Ciência, que é apenas um dos carros-chefes ideológicos da direita bolsonarista nos últimos anos, conforme explica o jornalista Bruno Antunes, autor do livro “A disseminação da cultura troll: o debate (ou a falta dele) nas eleições brasileiras de 2018”.
“Eles levantam essas bandeiras. Quem é o representante anti-LGBT? Quem é o representante armamentista? Quem é o representante dos caminhoneiros ou da família? O Zé Trovão entra no tema caminhoneiro, o Daniel Silveira entrando no tema ‘liberdade de expressão', seja lá o que isso signifique para eles, e o Maurício [Souza, ex-jogador de vôlei] virou ‘liberdade de gênero’, porque para eles a liberdade de gênero é a liberdade de xingar o outro gênero”, exemplifica Antunes.
Uma característica que une os novos candidatos, como Maurício Souza, afastado do esporte após uma série de postagens homofóbicas no Twitter, é a fidelidade a Bolsonaro e à agenda conservadora. Através de afagos públicos e demonstrações de afeto, o respaldo do ex-capitão se espalha rapidamente em grupos de aplicativo de mensagens e nas redes sociais, monopolizando as atenções e buscando anular o debate.
Essa é a avaliação de Leonardo Paz Neves, cientista político e analista de Inteligência Qualitativa da Fundação Getúlio Vargas (FGV-RJ). “No caso do grupo mais aliado ao presidente, tem uma meia dúzia de nomes que conseguiram se alavancar rapidamente por causa de um elemento interessante, que é uma solidariedade inerente aos grupos que defendem certas pautas da direita”, destaca.
Através de campanhas que, eventualmente, contam com o apoio explícito de Jair Bolsonaro, de seus filhos ou de ministros, as reputações vão sendo construídas e moldadas ao gosto da base de apoio do presidente. Todos que viram defensores das ideias colocadas pelo grupo se tornam quase ‘heróis’ que lutam em nome da verdade”, acrescenta o analista.
Nessa toada, a advogada Paola Daniel (PTB-RJ), esposa e companheira de sigla do deputado federal Daniel Silveira, anunciou sua pré-candidatura a deputada federal após os atritos entre seu marido e o Superior Tribunal Federal. Já Tércio Arnaud Tomaz (PL-PB), membro do chamado “gabinete do ódio” instalado no Palácio do Planalto para criar notícias falsas e atacar adversários nas redes sociais, vai concorrer como suplente do candidato ao Senado Bruno Roberto (PL-PB).
Uma imersão na cultura da 'trollagem'
Após observar o comportamento das pessoas no ecossistema dos jogos online, Bruno Antunes decidiu estudar as características e efeitos, nas eleições presidenciais de 2018, da "trollagem" (a expressão é originária do inglês e faz referência a humilhações, perseguições e insultos na internet). O tema se tornaria sua tese de doutorado na Universidade Metodista (SP), em 2019.
Em levantamentos feitos nas redes sociais, ele observou que os discursos de ódio e os insultos, que caracterízam as "trollagens" e são alimentados inicialmente pela extrema-direita, acabavam dominando os algoritmos e gerando o que ele chama de “exploit”. O termo, retirado do mundo dos videogames, tenta explicar a ruptura de sistema causada pelo excesso de postagens sobre um mesmo assunto, o que com a ajuda de robôs, os “bots”, "superdimensiona os debates e esvazia seu conteúdo".
Para Antunes, os pontos de contato entre o mundo real e o universo mágico são bastante explorados pela extrema-direita em suas teorias conspiratórias. “Eles partem do princípio de que tudo é uma grande conspiração mundial para derrubar o candidato deles, que é o Bolsonaro. Então esse grande conluio esconde uma verdade que só eles sabem, um apelo até religioso”, explica.
Outro fator que influencia a audiência de potenciais candidatos a cargos públicos conta com a participação “desastrada e involuntária” da própria esquerda, que, ao contrário dos seus opositores, não possui uma organização centralizada e unida. Segundo Antunes, a direita se aproveita da “cultura do cancelamento” ao interagir em postagens de quem, na verdade, quer combater ou quando aponta o dedo para alguém que teve comportamento reprovável.
“Só que essa rede unida da direita vira para o cara que foi homofóbico, por exemplo, e diz ‘vem aqui que a gente te acolhe’, enquanto a esquerda tende a julgar e segregar até mesmo quem pensa de forma semelhante”, opina o jornalista. Por outro lado, ele também ressalta o “despertar tardio” dos grupos de esquerda para as armadilhas espalhadas no caminho e na importância de gerar conteúdos capazes de igualar o debate.
Justiça eleitoral colocada à prova mais uma vez
Apesar dos esforços do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para costurar acordos de cooperação com as grandes empresas do setor de tecnologia, como Telegram, Facebook e Twitter, o ambiente virtual ainda não deixou de ser uma “terra sem lei”.
Na última quinta-feira (12), o TSE anunciou um acordo de cooperação com a plataforma de áudio Spotify para combater a desinformação. A empresa se comprometeu a ajudar a identificar perfis que propaguem notícias falsas e também a redirecionar os usuários até a página da Justiça Eleitoral, onde será possível obter informações de fontes oficiais sobre o pleito.
Rodolfo Tamanaha, advogado e professor de Direito no Mackenzie-DF, se diz otimista com iniciativas como essa, ou com os recentes acordos firmados com o Whatsapp e o Telegram para a defesa da democracia. Ele acredita que é dos interesses das próprias empresas manter a credibilidade para seguirem competitivas: “Existe um interesse legítimo de manter a percepção da plataforma ser usada de forma honesta, justa e legal”.
Tamanaha ressalta que o ordenamento jurídico para combater crimes eleitorais na esfera virtual já existe, assim como condutas já são tipificadas e punições são previstas aos infratores. “O desafio está realmente na efetivação dessas normas jurídicas. Isso eu reconheço que é muito difícil porque a internet é um lugar difícil de fiscalizar inclusive se contar com a boa vontade das empresas”.
Se é impossível checar a profusão de informações que circulam a cada segundo em milhares de grupos, fóruns e páginas, o advogado acredita que a solução passa por continuar investindo na educação e na conscientização das pessoas. “Eu não imagino que a gente tenha uma bala de prata do ponto de vista da legislação que consiga impedir que 200 milhões de pessoas compartilhem informações sem pé nem cabeça, se assim quiserem”, pontua.