Nessas semanas uma nova onda de protestos tomou a França devido ao assassinato de um jovem de origem argelina chamado Nahel. Um policial matou o adolescente a tiros durante uma blitz no subúrbio parisiense de Nanterre. Inicialmente, os policiais envolvidos alegaram que o rapaz tentou jogar o carro contra eles e que agiram em legítima defesa. No entanto, imagens do crime desmentiram-nos. O adolescente foi executado em plena luz do dia, de terça-feira 27 de junho.
Visto de forma mais aprofundada, esse caso é parte das consequências de problemas sociais, políticos e históricos que deixaram profundas marcas na sociedade francesa, incluindo aspectos relacionados à herança escravista e colonialista. Ao longo da história, a França esteve envolvida no sistema escravista e colonial de diferentes regiões do mundo, incluindo partes da África e do Caribe.
Por outro lado, é importante lembrarmos que, ao longo da história, o país tem testemunhado uma série de protestos populares como forma de expressar o descontentamento e buscar mudanças sociais e políticas. Exemplos notáveis incluem a Revolução Francesa (1789-1799), a Comuna de Paris (1871), o Movimento de Maio de 1968, as Greves Gerais de 1995 e, mais recentemente, os Coletes Amarelos, em 2018, bem como as manifestações de 2023 contra a reforma da previdência proposta pelo governo de Emmanuel Macron.
Na contemporaneidade, a França enfrenta desafios relacionados a problemas migratórios e conflitos oriundos do preconceito racial. Essas questões têm raízes históricas. Vamos abordar algumas delas.
A relação com o norte da África e a marginalização
O país possui um histórico de imigração, principalmente do norte da África e de ex-colônias francesas no continente. Apesar desse longo histórico, muitos imigrantes e seus descendentes enfrentam dificuldades para se integrar à sociedade francesa e obter igualdade de oportunidades econômicas e sociais. As periferias, onde se concentram muitas comunidades de imigrantes, especialmente aquelas provenientes do Norte da África e em sua maioria muçulmanas, são frequentemente marginalizadas. Essas comunidades enfrentam dificuldades para encontrar emprego, moradia e acesso igualitário a serviços públicos.
A ascensão da extrema-direita francesa
Além disso, o preconceito também se manifesta por meio de estereótipos e generalizações negativas disseminadas e alimentadas pela ascensão da extrema-direita na França. Durante o último processo eleitoral do país, foram identificadas pautas extremamente xenofóbicas. O nacionalismo, sem dúvida, contribui para esse cenário. A ideia de preservação da cultura, língua e religião acaba alimentando atitudes hostis, principalmente em relação a grupos étnicos e culturas diferentes. Em decorrência, os imigrantes e refugiados são os alvos da xenofobia na França.
Violência policial
Um estudo de 2017 da Rights Defenders, organização independente de direitos humanos na França, revelou que jovens considerados negros ou árabes tinham 20 vezes mais chances de serem abordados pela polícia do que seus pares. Além disso, acusações de brutalidade têm sido frequentes em relação à polícia francesa há muito tempo.
O Conselho da Europa, órgão regulador dos direitos humanos no continente, criticou o "uso excessivo da força por agentes estatais" em um comunicado no início de 2023, durante os protestos contra as reformas previdenciárias de Macron. Grupos de direitos humanos, como a Anistia Internacional, acusaram a polícia francesa de discriminação étnica e recomendaram reformas profundas e sistêmicas para lidar com a discriminação no país.
A onda de protestos reúne jovens de subúrbios carentes da França que, conforme explicou o sociólogo francês Fabien Truong, professor da Universidade de Paris-VIII, em entrevista ao jornal Le Monde reagem "de forma íntima e violenta" pela simples razão de que a vítima poderia ter sido um deles. Diz o professor: "Todos os adolescentes desses bairros têm lembranças de interações negativas e violentas com a polícia" e concluiu: "Nesses bairros, a pobreza e a insegurança são realidades concretas. Por isso essa raiva é política."
Raízes históricas e atuais
Faça uma assinatura e/ou contribuição solidária para o Brasil de Fato PR se manter nas redes e nas ruas / Arte: Vanda Moraes
Assim, a morte do jovem argelino é o resultado dessas profundas raízes históricas da herança escravista e colonialista que deixou profundas marcas na sociedade francesa combinada com a violência policial e a ascensão da extrema-direita xenofóbica, nacionalista e racista na contemporaneidade. Nos últimos dois dias já foram incendiados 159 veículos e as detenções de pessoas já chegam a 1300 e Macron, presidente do país, fala em restrição de redes sociais, acusando-as de desempenharem papel significativo nos protestos.
É preciso entender que há um conteúdo popular dessa juventude francesa que resiste à violência policial e suas posturas xenofóbicas. Tudo isso ocorre em meio a um cenário de profunda crise econômica na França, marcado por protestos e manifestações nos últimos meses contra a reforma da previdência proposta pelo governo Macron. Essa reforma, de natureza neoliberal, busca aumentar a idade mínima de aposentadoria de 62 para 64 anos. Estima-se que mais de 2 milhões de manifestantes tenham participado em todo o país.