O direito tradicionalmente é machista e patriarcal. As mulheres, suas contribuições e suas necessidades geralmente são ou completamente ignoradas ou deliberadamente ocultadas. Prevalece uma suposta “razão universal” e “objetividade” que, na realidade, oculta a parcialidade linguística, discursiva e axiológica do direito. O que quero dizer com isso? Quero dizer que tradicionalmente o direito sacrifica o feminino em detrimento do masculino, reservando às mulheres os papeis tradicionais conferidos a elas pelo conservadorismo. Com isso nega o exercício de diversos direitos fundamentais às meninas, às mulheres e às idosas.
Apesar disso, vários movimentos sociais, intelectuais e políticos vêm questionando cada vez mais essa ordem jurídica tradicional, sendo o constitucionalismo feminista um importante instrumento questionador e transformador disso. Neste sentido, este singelo artigo, sob uma ótica feminista constitucional, procurará resgatar a memória de três das vinte e cinco mulheres constituintes que, entre 1987 e 1988, participaram do famoso Lobby do Batom. Elas defenderam, ativamente, a constitucionalização da reforma agrária, dentre outras reivindicações em prol das mulheres e da sociedade como um todo.
Com isso, busco resgatar a memória da potente participação feminina nas transformações sociais do país naquele momento tão importante de redemocratização do país, a fim de inspirar mais mulheres a defender seus direitos e a participar ativamente na vida política do país, especialmente considerando o atual contexto social em que nos encontramos, em que permanece a manutenção das desigualdades entre gêneros, inclusive no campo, e a recente CPI, presidida por Ricardo Salles, que falhou na tentativa inconstitucional de criminalizar o MST – e que sequer chegou a apresentar um relatório final.
Como fontes desta pesquisa, foram utilizadas a coletânea de discursos das deputadas constituintes elaborada pela Coordenação de Histórico de Debates da Câmera dos Deputados (acesse aqui) e também a primorosa obra recém lançada “Protagonismo invisibilizado – a bancada feminina na Assembleia Constituinte de 1988 e sua luta em prol das mulheres”.
4,47%: essa era a composição feminina na Assembleia Constituinte
O desolador cenário era evidente: apenas 25 do total de 559 congressistas eram mulheres – destaco que não houve nenhuma mulher na mesa diretora, cujos cargos foram todos ocupados por homens. Não havia sequer banheiros para as mulheres. Apesar disso, as 25 membras do Lobby do Batom participaram como protagonistas, sendo que entendo oportuno destacar três delas por sua atuação em prol da cidadania da classe trabalhadora rural. Ei-las: Beth Azize (PSB – RJ), Moema São Thiago (PTB-CE) e Raquel Capiberibe (PMDB-AP).
Beth Azize e os sem-terra como os legítimos proprietários e posseiros das terras
Beth Azize foi advogada, jornalista, professora, juíza de direito e deputada federal pelo Partido Socialista Brasileiro do Amazonas (PSB – AM), entre os anos de 1991 a 1995. Em 25 de abril de 1988, a constituinte pronunciou discurso cujo tema era relativo ao título da Ordem Econômica, especificamente sobre reforma agrária e mineração, que a Assembleia Constituinte estaria prestes a votar naquele momento. Reafirmou na ocasião, contundentemente, que as questões da reforma agrária e da mineração caminham juntas, sendo de máxima relevância que tais temas ganhassem assento constitucional.
Enfatizou que interesses econômicos, somente preocupados com especulação imobiliária, promoviam verdadeiro retrocesso social e ambiental, despojando os verdadeiros posseiros e legítimos ocupantes das terras e adquirindo tais propriedades por “preço de miséria”, até por meio de fraudes – a deputada, a título de exemplo, mencionava fraude cambial, financeira e crimes ambientais. Tal cenário, defendeu, apenas favoreceu o empobrecimento da mulher e do homem do interior, que são obrigados a “afavelar-se” nos centros urbanos. Tudo em prol de interesses de empresas supostamente nacionais, mas que, para a deputada, na realidade “servem de testa de ferro ao capital estrangeiro … [que] sob a égide de defender o capital nacional, contribuem para a invasão do capital estrangeiro, destruindo as nossas riquezas, em detrimento do bem-estar da sociedade brasileira”. Passados 35 anos, esse cenário descrito por Azize em nada se alterou e os direitos fundamentais das pessoas sem terra continuam a ser sacrificados em prol do lucro de poucos.
Moema São Thiago e as promessas ainda não cumpridas pela Constituição
Moema São Thiago foi ex-exilada, advogada, ativista, defensora das mulheres e dos oprimidos e constituinte pelo Partido Democrático Trabalhista do Ceará (PDT -CE). Defendeu que uma grande esperança em relação à Assembleia Constituinte era a questão da reforma agrária como potencializadora da cidadania para os trabalhadores sem-terra e de abertura para novas formas de economia e política no campo. Os valores constitucionais eleitos foram escolhidos a fim de que houvesse a construção de um arcabouço legal comprometido com a causa das trabalhadoras e dos trabalhadores rurais e com a reforma agrária, com vistas à mudança da estrutura fundiária e do regime de produção.
Indicou a deputada constituinte que a reforma agrária era meio hábil a oportunizar a redistribuição de terras e de renda no campo. Ao mesmo tempo, promoveria igualdade social, por meio de acesso à terra e de criação de empregos produtivos, especialmente considerando as extensas propriedades ociosas do latifúndio que eram mantidas simplesmente como reserva de valor. Outra vantagem oferecida pela reforma agrária seria reduzir o processo migratório, destacando que na época cerca de 30 milhões de pessoas trabalhadoras rurais expulsas de suas terras foram parar nas cidades sem qualquer perspectiva ante o cenário de crise da época.
No entanto, denunciou Moema que, mais uma vez, os grupos dominantes de latifundiários, radicais de direita e a burguesia agrária se organizaram, oferecendo forte e resistência contra um maior progresso nesse tema. Ressaltou haver patrocínio à formação de milícias particulares e de grupos com amplo acesso direto a órgãos públicos definidores de estratégias políticas de estado, como o Gabinete Civil do executivo e o próprio Congresso Nacional – especialmente na Subcomissão da Reforma Agrária e na Comissão da Ordem Econômica durante a constituinte.
Infelizmente, para ela, a marca do agrário e do latifúndio estava presente em toda a sociedade brasileira, sendo que por vezes o Estado implementou políticas públicas que apenas favoreciam a ação de grandes proprietários e complexos agroindustriais. Assim, o desenvolvimento nacional ocorria sem justa reforma agrária, aprofundando as desigualdades sociais. Em busca de tornar possível que as terras se tornassem investimentos rentáveis a grandes grupos industriais e financeiros, a elite agrária buscou convertê-las em ativo financeiro, a serem utilizadas como instrumento de crédito subsidiário, incentivos fiscais e até como forma de se livrar do pagamento de imposto de renda. A proposta era transformar a terra em mera reserva de valor em favor exclusivamente da classe dominante.
Defendeu a parlamentar que somente a distribuição de terras não seria suficiente, sendo necessário também que a política agrária do país fosse voltada para fortalecer a reforma agrária, por meio de apoio institucional nas áreas de crédito, comercialização e apoio ao pequeno agricultor. Lamentou que dois pontos fundamentais da questão não foram contemplados, a saber: a fixação da área máxima da propriedade rural e o instituto da perda sumária das terras ociosas. Ela, porém, ressaltou que “… é impressionante verificar que cada recuo que acontece é a semente de novas mobilizações.
A derrota aqui pode representar um ganho mais à frente, um ganho de consciência social”. Encerrando seu belo discurso, Moema São Thiago conclamou que “a História cobrará aos Constituintes a quebra de compromissos assumidos no período eleitoral, porque acima da propriedade privada está o interesse coletivo”.
Raquel Capibabire e a luta camponesa por justiça social e contra a opressão do capital
Raquel Capibabire foi pedagoga, professora, Secretária Municipal de Educação do município de Macapá, deputada federal constituinte pelo Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) e deputada federal eleita pelo Partido Socialista Brasileiro do Amapá (PSB-AP). Em sua atuação, a igualdade de gênero e o campo sempre foram seu norte. Defendeu que a reforma agrária era a pedra de toque para grandes transformações no país, razão pela qual ela deliberadamente reivindicou assento na Subcomissão da Política Agrícola e Fundiária e Reforma Agrária. Para ela, a luta das camponesas e dos camponeses sempre foi contra a fome, a violência, a miséria, enfim, contra a injustiça social perpetrada por um segmento social que constantemente os oprime, que é o segmento dos grandes proprietários de terras que o assim o fazem com total apoio do estado.
Referindo-se a diversas lutas, a constituinte indicava que todas têm algo em comum, qual seja, o fundamento da posse de terra. Desde os primórdios do Brasil, o impedimento de acesso igualitário à terra se fez presente, a partir da preferência por modelos políticos e legais que, ao mesmo tempo, impediam o acesso à posse de terras por colonos e ex-escravizados, e lançavam as bases necessárias para perpetuação do sistema de latifúndio, voltado para exportação, sem compromisso com o problema do agravamento da miséria do povo brasileiro.
Ressaltou, contudo, que o campesinato, apesar de todas as dificuldades, se organizou e se mobilizou, a partir do momento em que identificou as origens dessa injustiça. O povo do campo, nesse sentido, se rebelou contra a opressão do capital, organizando-se em sindicatos e em movimentos, a fim de resistir aos despejos e à expulsão das terras. Chegaram a entregar, inclusive, uma proposta de emenda popular à Assembleia Nacional Constituinte com 1 milhão e 200 mil assinaturas em prol da reforma agrária.
Raquel explicitou em seu discurso que a permanência das camponesas e dos camponeses em suas terras é medida hábil a diminuir as desigualdades sociais. A vocação agrícola do país, para ela, deveria ser estruturada por políticas públicas voltadas para o desenvolvimento social, que impulsionassem o pleno emprego e o trabalho digno. A garantia de permanência na terra era, e ainda é, expressão da dignidade de camponesas e camponeses, a possibilidade de se criar condições contra o analfabetismo e a pobreza dessa parcela da população. Quem quer terra, pois, quer dignidade, quer produzir e alimentar a si, a sua família e a sociedade.
A constitucionalidade da luta pela terra
A Constituição Cidadã finalmente fora promulgada a 5 de outubro de 1988, tornando-se um significativo marco para a democracia brasileira. De suas diversas disposições, destaco o capítulo III da Constituição, que se denomina “Da política agrícola e da Reforma Agrária”, na qual, do artigo 184 ao 191, deu-se assento constitucional ao importante instituto jurídico da reforma agrária e à política agrícola e fundiária.
Nesses assuntos, a atuação do "Lobby do Batom", para além da defesa da reforma agrária em si, logrou êxito em equilibrar a reforma agrária (e os direitos dela advindos) com outras fundamentais questões como a igualdade de gênero. A exemplo disso indico a inserção do parágrafo único do artigo 189 que estabelece o direito igual às mulheres e aos homens à concessão do título de domínio e de uso de imóveis distribuídos em razão da reforma agrária. Desse modo, sem medo e hesitação, defendamos que a defesa da Reforma Agrária é perfeitamente compatível com a ordem constitucional e democrática vigente, e que as mulheres tiveram, têm e sempre terão protagonismo para contribuir, construir e conquistar direitos.
*Ketline Lu é advogada, formada pela Universidade Federal do Paraná e especialista em Direito Constitucional e Direito Ambiental.
** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.