Na segunda matéria da série de artigos que tratam das políticas de habitação, abordaremos os programas de urbanização integral de favelas. Começamos afirmando nosso desejo de que esses programas ajudassem a orientar a definição de cidades “inovadoras e inteligentes”, onde qualidade de vida e moradia digna fossem uma realidade para todas as classes sociais, independente de renda, raça ou gênero.
No início do século 21, o livro Planeta Favela anunciava que as cidades do novo milênio teriam como marca a favelização, especialmente preocupante nos países do sul global, com uma história de colonização, acumulação por expropriação e desigualdades estruturais.
Este prenúncio, infelizmente, ganhou concretude, pela existência de cidades fragmentadas em espaços de riqueza e de pobreza, nas quais se observa um crescimento inédito de domicílios precários, de famílias vivendo em favelas e situação de rua, e de tantos outros riscos e carências ligados à condição do habitar.
Na RMC a evolução deste cenário não foi diferente. Em 2000, a aglomeração metropolitana formada por Curitiba, Araucária, Piraquara, Almirante Tamandaré, Colombo, Pinhais, Fazenda Rio Grande e São José dos Pinhais detinha cerca de 74% das famílias pobres da região.
Naquele ano, a RMC também concentrava a maior parte dos empregos gerados no Paraná e quase 50% do seu PIB. Entre o final das décadas de 1990 e 2000, cresceu em aproximadamente 72% o número de assentamentos informais. Em 2010, as análises desenvolvidas a partir do Censo já indicavam a necessidade de priorizar a urbanização de favelas na política urbana dos municípios metropolitanos.
Naquele ano, em Piraquara, por exemplo, 40% dos domicílios do município estavam em assentamentos informais, e em Almirante Tamandaré esse número era de 20%. No município polo – Curitiba, o número de domicílios em favelas respondia por 60% dos domicílios nesses espaços na aglomeração metropolitana.
Dez anos mais tarde o agravamento das condições habitacionais persiste. Segundo o Plano Estadual de Habitação de Interesse Social do Paraná (PEHIS), em 2023 Curitiba ocupava o primeiro lugar entre os trinta municípios paranaenses com as maiores necessidades habitacionais, respondendo por 38% dos domicílios em favelas do estado.
Essa questão assume uma dimensão mais relevante quando tomamos a metrópole como recorte de análise, observando-se que dez desses municípios pertencem à RMC e contabilizam 57% dos domicílios em favelas do Paraná: Curitiba, Colombo, Araucária, Almirante Tamandaré, São José dos Pinhais, Campo Largo, Rio Branco do Sul, Campo Magro, Fazenda Rio Grande e Lapa.
Nas favelas vivem as famílias mais vulneráveis e empobrecidas da população, com grande representatividade de mulheres e da população negra, que de acordo com o Censo 2010 compunham, respectivamente, 51% e 68% das pessoas residentes em assentamentos precários do país.
Embora o quadro de necessidades habitacionais tenha se agravado, as análises das políticas habitacionais praticadas na última década na RMC revelam que os governos municipais têm trilhado uma trajetória que se afasta de uma solução efetiva para este problema.
A falta de vontade política dos governos e, por consequência, de investimento na capacidade institucional das prefeituras para urbanizar favelas, distancia-se da trajetória de municípios brasileiros que desde a década de 1980 desenvolvem políticas urbanas inovadoras e efetivas para o enfrentamento da questão.
Estas experiências deram origem a instrumentos urbanísticos e práticas de intervenção exitosas, tais como as Zonas Especiais de Interesse Social; os fóruns e conselhos populares para desenvolvimento de projetos junto com as comunidades; a presença de profissionais e gestores públicos nos territórios populares; o fomento à autogestão habitacional etc. Recife, Belo Horizonte, Diadema, Santo André, para citar alguns, desenvolveram políticas emblemáticas de urbanização de favelas.
A omissão dos governos municipais no enfrentamento prioritário da questão tem efeitos na vida cotidiana das famílias, sujeitando-as a riscos e violências permanentes e que se sobrepõem, materializados nos incêndios recorrentes, nas graves condições de insalubridade, no domínio dos territórios pelo crime, dentre outros. A omissão revela também para quem as gestões municipais têm governado.
O posicionamento dos governos em relação às favelas se agrava ao se constatar os efeitos negativos das ações, quando executadas. Na metrópole de Curitiba, os programas de intervenção em favelas revelam a incompreensão, consciente ou não, das reais causas do problema, por parte do poder público. Sustentada por narrativas conservadoras em relação à existência desses assentamentos populares, o preconceito e a criminalização da população residente em favelas têm justificado ações que, ao invés de promoverem, violam o direito à moradia. O uso do termo invasão e a remoção compulsória como a prática dominante são exemplares.
Além disso, quando acontece, a atuação estatal nas favelas se realiza por meio de intervenções descontínuas e incompletas, que produzem novas precariedades e aprofundam a vulnerabilidade social. São práticas de remoção, total ou parcial das comunidades; a urbanização incompleta das áreas não removidas; o reassentamento em conjuntos habitacionais periféricos, normalmente distantes do assentamento original, e que desconsideram os vínculos entre as famílias na comunidade; a inexistência de proposições alternativas ao modelo antes citado, após anos de omissão do Estado, entre outras. A execução do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) Urbanização de Favelas em Curitiba e o uso de 50% das unidades do faixa 1 do PMCMV para promover as remoções em favelas exemplificam bem a atuação das prefeituras na RMC.
Assim, na intervenção em favelas o despejo se tornou instrumental, eximindo o Estado da obrigação de enfrentar as causas do problema: a impossibilidade de acesso à terra urbanizada e bem localizada e à moradia adequada pela população empobrecida.
A resistência à urbanização de favelas por parte do Estado também deriva de uma visão de planejamento urbano que privilegia uma estética da cidade "limpa" e "ordenada", em detrimento da inclusão e da justiça social. Essa abordagem ignora que as favelas são espaços de resistência e sobrevivência, onde a vida das famílias mais pobres se organiza e se adapta diariamente às adversidades que lhes são impostas.
Mas afinal, o que são e por que se defende a execução de programas de urbanização integral de favelas na RMC?
Primeiro, esses programas partem do reconhecimento das favelas como espaços legítimos de moradia da população mais empobrecida. A partir desse pressuposto, sustentado pela Constituição Federal e pelo Estatuto da Cidade, é dever do Estado executar projetos de consolidação, urbanização e integração desses assentamentos ao restante da cidade, por meio dos quais a precariedade habitacional será enfrentada. São intervenções que evitam ao máximo as remoções, efetivadas somente em situações de risco à vida; que prezam pela manutenção dos vínculos comunitários e afetivos entre as famílias, e por isso procuram resolver os reassentamentos dentro ou em áreas próximas das favelas de origem.
São denominados programas de urbanização integral, porque consideram as dimensões sociais, urbano-ambientais e fundiárias, e não se resumem à entrega de títulos de propriedade.
A regularização da propriedade, que não precisa ser privada nem individual, como que tem sido a regra na RMC, é uma das dimensões desses programas, que embora importante para a segurança da posse, não garante a qualidade urbano-ambiental e o enfrentamento da vulnerabilidade social. Sem políticas públicas completas o título de propriedade pode piorar o comprometimento da renda e produzir a substituição das famílias a longo prazo, em função da valorização das áreas e do assédio dos agentes imobiliários quando os imóveis nas favelas são regularizados.
Programas e projetos de urbanização integral de favelas caracterizam-se também por um alto grau de complexidade, exigindo Prefeituras com capacidade institucional, orçamento e gestores públicos qualificados para executá-los. Ou seja, governos comprometidos com o combate das desigualdades. Demandam ainda políticas públicas municipais articuladas, orientadas pelas políticas urbana e de habitação de interesse social, e em sintonia com o planejamento metropolitano. E, principalmente, serem formulados e executados junto com as comunidades, para que promovam a autonomia e a cidadania.
A construção de uma cidade com justiça social passa, portanto, pelo entendimento do território como elemento fundante da política pública, centrado na realidade social, apreendendo as dinâmicas territoriais como base para elaboração da política de habitação de interesse social, com proximidade dos sujeitos e seus locais de vivência, entendendo que é no lugar, no chão das relações sociais, que a vida se produz e se reproduz, onde as mediações são arquitetadas para a realização da vida cotidiana.
Conforme apontamos, os desafios para se viver em uma metrópole são maiores para os residentes nas favelas, principalmente quando a condição da moradia é historicamente a régua da cidadania para diferenciar a população.
Sendo essa a medida, quem vive nesses espaços corre o risco de não ser considerado cidadão ou cidadã, tendo seus direitos cerceados a depender da sua condição de moradia, enfrentando a constante ameaça do despejo e outras violências.
Pelas características expostas, programas de urbanização integral de favelas demandam a eleição de governos municipais comprometidos com o enfrentamento do problema habitacional que aflige a população mais empobrecida da RMC, subvertendo a lógica histórica que favorece os mais ricos e parte insignificante da cidade.
Vale lembrar que, após um período de hiato, a urbanização de favelas volta a ter destaque na agenda das políticas públicas nacionais, com a retomada do PAC e a criação da Secretaria Nacional das Periferias, no Ministério das Cidades. A efetividade dessa política na esfera municipal, entretanto, depende das trajetórias delineadas pelas gestões municipais, que reforça a urgente necessidade da mudança de paradigma dos programas habitacionais, por meio da escolha de projetos de governo comprometidos com as classes populares, a pauta da moradia, a urbanização de favelas e o direito à cidade.
A questão, portanto, não é SÓ habitação, ou SÓ urbanizar favelas, mas criar uma cidade mais justa e democrática, para as presentes e futuras gerações, construída pelas muitas mãos que nela vivem, produzem, sonham e lutam.
Referências:
Companhia Estadual de Habitação. Plano Estadual de Habitação de Interesse Social PEHIS – PR. 2024.
CORREIA, Alice Dandara de Assis. Intervenção em Favelas no Município de Curitiba: ações e omissões do Estado e a criminalização da população de baixa renda. 178 f. Dissertação (Mestrado) – Curso de Pós-Graduação em Planejamento Urbano, Setor de Tecnologia, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2023.
NUNES DA SILVA, Madianita. Produção dos espaços informais de moradia e tendências de organização socioespacial do território na metrópole de Curitiba. In: FIRKOWSKI, O. L. C. de F.; MOURA, R. Curitiba: transformações na ordem urbana. Rio de Janeiro: Observatório das Metrópoles, Letra Capital, 2014. p. 231-259
NUNES DA SILVA, Madianita; VASCO, Kelly Maria Christine Mengarda; TEXEIRA, Ana Gabriela. O arcabouço institucional e normativo da política municipal de habitação e as contradições na execução do PAC em Curitiba. In: CARDOSO, Adauto Lucio; DENALDI, Rosana. Urbanização de favelas no Brasil: um balanço preliminar do PAC. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2018. p. 291-314
PEREIRA, Flávia Iankowski Claro Pereira. Intervenção em assentamentos precários na metrópole de Curitiba: análise do PAC no Município de Colombo – PR. 156 f. Dissertação (Mestrado) – Curso de Pós-Graduação em Planejamento Urbano, Setor de Tecnologia, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2019.
SIQUEIRA, Elisa da Costa. Urbanização de Favelas e mulheres: contribuições para enfrentar a exclusão do direito à cidade e à moradia no Município de Curitiba – PR. 240 f. Dissertação (Mestrado) – Curso de Pós-Graduação em Planejamento Urbano, Setor de Tecnologia, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2022.
TEXEIRA, Ana Gabriela. Urbanização de Favelas no Município de Curitiba: análise da abordagem das intervenções no Bolsão Formosa e nas Vilas União Ferroviária e Terra Santa. 274 f. Dissertação (Mestrado) – Curso de Pós-Graduação em Planejamento Urbano, Setor de Tecnologia, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2022.
VASCO, Kelly Maria Christine Mengarda. O Programa Minha Casa Minha Vida como ferramenta de intervenção nas favelas de Curitiba: o caso da Vila Santos Andrade. 210 f. Dissertação (Mestrado em Planejamento Urbano) – Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2018.
Minibiografia da(o)s autora(e)s
Madianita Nunes da Silva é Arquiteta e Urbanista, Mestre e Doutora em Geografia pela UFPR, com Pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em Planejamento e Gestão do Território da UFABC, Professora do Departamento de Arquitetura e Urbanismo e do Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano da UFPR. Integra o Núcleo Curitiba do Observatório das Metrópoles e o Laboratório de Habitação e Urbanismo (LAHURB) da UFPR.
Marcelle Borges Lemes da Silva é Arquiteta e Urbanista, Mestra em Planejamento Urbano pela UFPR e Doutoranda em Planejamento e Gestão do Território pela UFABC. Integra o Núcleo Curitiba do Observatório das Metrópoles e o Laboratório de Estudos e Projetos Urbanos e Regionais (LEPUR) da UFABC.
Ana Gabriela Texeira é Arquiteta e Urbanista, Mestra em Planejamento Urbano pela UFPR e Pós-Graduanda em Geoprocessamento e Licenciamento Ambiental pela Fundação de Ensino e Pesquisa do Sul de Minas (FEPESMIG). Bolsista de extensão CNPq pelo INCT Observatório das Metrópoles, no Núcleo Curitiba. Integra o Laboratório de Habitação e Urbanismo (LAHURB) da UFPR.
Kelly da Luz de Lima é bacharela em Direito, pós-graduada em Direito Público pela Escola da Magistratura Federal (ESMAFE), pós-graduada em Direito Ambiental e Urbanístico pela Universidade de São Paulo (USP) e mestranda no Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano da Universidade Federal do Paraná (PPU/UFPR). Integra o Núcleo Curitiba do Observatório das Metrópoles.
Kelly Maria Christine Mengarda Vasco é Assistente Social, Mestra em Planejamento Urbano pela UFPR e Doutoranda em Serviço Social na PUC-SP. Integra o Núcleo Curitiba do Observatório das Metrópoles, o Laboratório de Habitação e Urbanismo (LAHURB) da UFPR e o Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Movimentos Sociais (NEMOS) da PUC-SP.
João Renato Ferreira Durães é bacharel em Direito pela UFMG, mestrando no Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano da UFPR e bolsista no Centro de Estudos em Planejamento e Políticas Urbanas da UFPR. Integra o Núcleo Curitiba do Observatório das Metrópoles.