Exponencialmente, as alterações dos padrões climáticos, como o aumento da temperatura mundial média e a consequente variabilidade natural se agravam a cada ano, com a ocorrência de chuvas intensas, enchentes ou secas prolongadas, a depender da região.
Desde o início de maio de 2024, assistimos estarrecidos ao aumento das águas do Guaíba, no Rio Grande do Sul, em razão das intensas chuvas que causaram cheias, deixando centenas de desabrigados, desaparecidos, feridos e mortos. Já imaginou como seria perder sua casa, perder parentes, perder suas memórias, perder a terra para plantar, perder seu lar? Será que existe uma maneira de mensurar todos esses impactos? E quais os caminhos para reconstrução?
E antes que nos venha o silêncio constrangedor de quem distante assiste essa catástrofe, o mesmo silêncio que Rachel Carson, em 1969, já havia anunciado em sua obra célebre “Primavera Silenciosa”, diante da destruição da natureza por meio de um modelo agrícola que contribui à destruição da natureza, por meio de latifúndios e monoculturas, agrárias e epistemológicas, questionamos: o que nos resta a nós, acadêmicos e estudiosos do direito? E de que modo podemos nos engajar a um debate crítico para reflexão sobre os efeitos das mudanças climáticas?
E foi com esse intuito, que o EKOA – Núcleo de Pesquisa e Extensão em Direito Socioambiental, do programa de pós-graduação em direito da UFPR, promoveu com o apoio financeiro da CAPES, entre os dias 26 a 26 de abril de 2024, o II Simpósio de justiça socioambiental: emergência climática, povos e natureza, na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná, na cidade de Curitiba/PR. Neste ano, procuramos despertar as atenções para a emergência climática, alertando para a complexidade da crise ambiental/climática a partir de suas causas relacionadas ao desenvolvimento hegemônico e o vazio do discurso de mera adaptação da natureza ao sistema econômico, refletindo sobre a necessidade de uma transição para outra relação humana com a natureza, destacando as práticas socioculturais de preservação da biodiversidade como as realizadas pelos povos originários e tradicionais da América Latina.
O II Simpósio foi um grande encontro que envolveu pesquisadoras(es), estudantes da graduação, pós-graduação, povos, representantes do poder público e instituições para trocas de conhecimento que articulem políticas públicas, pesquisas e práticas extensionistas. Sua realização na Faculdade de Direito da UFPR foi importante para provocar o campo jurídico a enxergar que a força da nossa Constituição reside na realidade vivida, sendo o território o primeiro nível de proteção para a garantia de uma vida saudável. No resgate do pertencimento com a terra-natureza, está a necessidade de disputar a produção normativa para que ela reflita cada vez mais as necessidades dos grupos sociais vulneráveis e dos direitos coletivos.
Na preocupação com a justiça socioambiental, denunciamos a necessidade de manter a memória e a historicidade das lutas por terra e reforma agrária como diretamente relacionadas à pauta climática. O conceito de justiça socioambiental é colocado, desde a primeira construção do Simpósio, a fim de destacar a necessidade de um olhar para as práticas comunitárias que desafiam a manutenção de um ideal de desenvolvimento desigual, de base colonial, racista e patriarcal.
Trazendo os conflitos socioambientais por terra e território dos impactos dos grandes projetos (neo) extrativistas agro-hidro-minerários, chamamos a atenção para uma educação jurídica comprometida com a concretude da vida, no entendimento de que as demandas por justiça exigem ações imediatas para buscar respostas à crise da biodiversidade, à insegurança alimentar e nutricional e a necessidade de uma transição energética justa. E é na contra-colonização, como já dizia Antônio Bispo dos Santos, poeta e pensador quilombola, é na luta contra todas as formas de opressão que se deve buscar a problematização das estratégias de enfrentamento de forma conectada com a realidade das populações vulneráveis, comprometidas com o fim das causas estruturantes que geram a desigualdade social, a fome e a pobreza.
O evento possibilitou o compartilhamento de pesquisas que instigaram novas formas de produção do direito, entendendo-o como relação social e como ciência, através de duas conferências, seis mesas de discussão e grupos de trabalho. As mesas, compostas majoritariamente por mulheres pesquisadoras, contaram com a participação de pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento, representantes do Ministério do Meio Ambiente e Mudanças Climáticas e do Ministério das Mulheres. Com atividades em parceria com a Jornada Universitária em Defesa da Reforma Agrária Popular, contamos com a exposição fotográfica “Recortes da Luta: 40 anos de MST”, do fotógrafo e comunicador popular Wellington Lenon e da roda de conversa sobre o documentário “Agrofloresta é mais”, com a participação da agricultora Sara Vandenberg, da Comunidade Agroflorestal José Lutzenberger (1), localizada na cidade de Antonina/PR. Para o debate do racismo ambiental o II Simpósio exibiu o filme “Rainha Nzinga chegou” (2019) seguido de um debate com a presença da diretora Júnia Torres e da estudante Stefany de Lucas, do projeto Direito Aquilombados (UFPR).
De forma articulada, o evento buscou pensar os direitos por meio da fluidez do movimento, estimulando com as artes o sentimento ligado à urgência de cada tema. Com a intervenção cultural realizada pelo grupo de teatro Insólitos, da Faculdade de Direito da UFPR, com a peça "Golpe de 64”, coordenado pelo docente Leandro Franklin Gorsdorf, lembramos para jamais esquecer do passado brutal e do compromisso permanente com a democracia, a verdade e a justiça. As performances realizadas pelo Grupo de Extensão Sacode & Movimenta (UFPR), coordenado pela docente Cristine dos Santos Souza, provocou com performances, música e poesia outras formas de ser-estar no mundo, que permitam às pessoas viverem de forma conectada com a diversidade biológica e cultural.
Neste momento tão conturbado de emergência climática que vivemos, pensar a conflituosa relação entre humanidade e natureza com certeza é ponto de partida para a compreensão sobre a tragédia anunciada, um debate necessário para o qual precisamos de ações urgentes.
Entendemos que a interpretação da emergência climática deve ser plural e multinível, considerando o território de vida como o primeiro nível de proteção para defensoras/defensores socioambientais e para o combate a todas as injustiças socioambientais/climáticas. Desse modo, o II Simpósio contribuiu para a reflexão crítica do papel das ciências e, dentre elas, a necessidade de reafirmar, como diz a Constituição Federal de 1988, que a relação sociedade-natureza ocupa o núcleo central do campo jurídico.
Um direito que se descoloniza a partir de outros referenciais teóricos, que se constrói cotidianamente a partir das práticas sociais, daqueles povos que pisam na terra, estão nas florestas e nas águas. Evidenciamos, por fim, a importância do direito como ferramenta e tática para proteger outros modos de vida e importância da produção de uma ciência comprometida e afetiva – pois somente por meio da resistência ativa poderemos enfrentar o caos.
(1) A comunidade agroflorestal José Luztenberger recebeu o prêmio Juliana Santilli de agrobiodiversidade no ano de 2017 por suas ações na recuperação da Mata Atlântica e na produção de alimentos agroecológicos. https://www.brasildefato.com.br/2022/01/06/comunidade-do-mst-no-parana-une-culturas-camponesa-e-caicara.
Katya Isaguirre-Torres é Coordenadora do Ekoa: núcleo de pesquisa e extensão em direito socioambiental, professora da Universidade Federal do Paraná, organizadora do II Simpósio de Justiça Socioambiental: emergência climática, povos e natureza.
Marina Tauil Bernardo é Doutoranda em Direitos Humanos e Democracia na UFPR; Integrante do EKOA Grupo de Pesquisa e Extensão em Direito Socioambiental; Co-coordenadora do GT Biodiversidade e Bens Comuns da Associação Brasileira de Agroecologia.