O filme "Jogo Bonito" não foi feito para ganhar Oscar ou qualquer outro prêmio cinematográfico que exista mundo afora. É um filme, como diz bem o nome, bonito e tem emocionado espectadores da plataforma Netflix. Já é um dos mais acessados.
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É de caráter social e luta pela inclusão social. Lida com gente sem abrigo ou os tão falados sem-teto que se proliferam em cidades brasileiras e de vários países, inclusive de lugares chamados ricos, desenvolvidos e com economia forte. E trata também de frustrações pessoais, com tom narrativo interessante e envolvente.
O longa inglês mostra a estória de Mal (Bill Nighy), um ‘olheiro’ do futebol que comanda a equipe inglesa que vai para Roma disputar o Campeonato do Mundo dos Sem-Teto*.
Não é nenhuma copa estilosa, cheia de glamour e de sofisticação como as organizadas pela FIFA para o futebol profissional, trata-se apenas de um importante torneio mundial de futebol de rua executado por gente desesperançada, sem rumo ou quase sem futuro. A bola é o que as une. E também os problemas pessoais, de variadas naturezas.
Além de Mal, o filme mostra um talentoso atacante chamado Vinny (Micheal Ward), perdido na vida e dormindo na rua, em bancos de parques e praças e carros. Ex-jogador do West Ham United, time de uma fanática torcida londrina, e que por ene razões foi dispensado do clube e deixou-se ‘triturar’ emocionalmente por causa disso.
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Produzido com o apoio do Campeonato do Mundo dos Sem-Teto, o Homeless World Cup, "Jogo Bonito" é apresentado como um filme sobre segundas oportunidades na vida. Quem pisou feio na bola merece ter outra chance. É o grande mote do filme.
O mundial tem o apoio de gente graúda: UEFA (União Europeia de Futebol), Nike (fabricante de material esportivo) e Telmex (empresa de telecomunicações do México). A competição existe desde 2003 (só interrompida durante a pandemia) e o Brasil, que tem gigantescos problemas nesta área de moradia, já conquistou três vezes a copa (2010, 2013 e 2017).
O longa inglês mostra a estória de Mal (Bill Nighy), um ‘olheiro’ do futebol que comanda a equipe inglesa que vai para Roma disputar o Campeonato do Mundo dos Sem-Teto / Divulgação
A Copa do Mundo dos Sem-teto
Homeless World Cup – A Copa do Mundo dos Sem-teto indica o público e a finalidade. São atletas que vivem em situação precária de habitação, não obrigatoriamente de rua. Existem jogadores africanos, por exemplo, que vivem em contêineres em terras quentes, tórridas, e que sofrem como se morassem ao ar livre.
No Brasil há jogadores que vivem em favelas, outros são quilombolas, ribeirinhos ou indígenas, conta Guilherme Araújo, fundador da ONG Futebol Social. Esta denominação foi escolhida pelo Brasil para este esporte. Outros países usam Street Soccer (futebol de rua) ou variações com o nome homeless.
A ONG Futebol Social atua em todo o Brasil e tem mais de 100 projetos sociais envolvidos. A parceria rende normalmente dez etapas durante o ano, na caça aos talentos da bola. Em cada etapa, fica o legado de apito, bolas e coletes.
Depois, com 88 selecionados, é realizada a Copa Futebol Social em alguma cidade brasileira. Os jogadores são trocados e atuam em outras equipes e daí saem os melhores, homens e mulheres, que vão ao Mundial. As seleções podem atuar com homens e mulheres no mesmo time, mistões, ou só homens ou só mulheres. Aí a liberdade impera.
A Copa do Mundo dos Sem-teto de 2024 será disputada na Hanyang University de Seul, Coréia do Sul, durante oito dias no mês de outubro. Participarão 70 países de todos os continentes. Em 2025 e 2026, a competição volta a ser disputada no mês de julho como ocorreram nas vezes anteriores. Raras são as notícias que circulam sobre este evento e nenhuma televisão se dispõe a realizar transmissões diretas como fazem com outros acontecimentos esportivos. É a copa que ninguém vê.
A Copa do Mundo dos Sem-teto de 2024 será disputada na Hanyang University de Seul, Coréia do Sul, durante oito dias no mês de outubro / Foto: Alfredo Falvo/Netflix
Do filme para a realidade
A população em situação de rua no Brasil aumentou 935,31% nos últimos dez anos, segundo levantamento do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) com base em dados do CadÚnico (Cadastro Único) do governo federal.
O número de pessoas cadastradas saltou de 21.934 em 2013 para 227.087 até agosto de 2023. Não estão incluídos aí milhares ou centenas de milhares de outras que não foram registradas pelos pesquisadores oficiais. E olha que o exército de gente que dorme por aí, sem lar, sem moradia, não para de crescer. A gente passa e segue em frente.
Os invisíveis aos nossos sentidos são tantos que não há estatística confiável, se é que algum dia foi feita com seriedade. Um levantamento do site Sul21 aponta que a população em situação de rua de Porto Alegre identificada pelo Cadastro Único em dezembro de 2022, 3.189 pessoas, era 55% maior em relação a dezembro de 2021, quando era calculada em 2.048.
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Diante deste quadro, que aparentemente parece pequeno, há muito o que se fazer. Não é só ter um abrigo, mas é comer, estudar, transportar, dar atendimento de saúde e oferecer condições sanitárias. É um mundo à parte. Estamos meio que sem rumo nesta questão social. Temos também o Bolsa Família. É ótimo, mas só ameniza. O que fazer? Alguém está procurando uma saída definitiva? Ninguém pode responder com certeza.
Para enfrentar esta realidade e fazendo o que dá e o que é possível e mesmo enfrentando o ranço da dita sociedade organizada, existe o Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto, uma espécie de MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra) urbano. É uma organização que luta por moradia e existe desde 1997.
O MTST é um movimento de moradia, mas essa luta sempre transbordou esse objetivo direto e também defende trabalho e teto para todos. Segundo o site do MTST, a moradia é um direito, não uma mercadoria. Atualmente há 5,8 milhões de pessoas sem casa própria: nas ruas, morando de favor, pagando um aluguel ou vivendo em moradias precárias. Um em cada cinco brasileiros vive em habitação precária, uma insegurança presente na vida de milhões de pessoas que sofrem com a ameaça de despejo.
* O futebol dos sem-teto é disputado em um campo com grama sintética, de 22m x 16m. O gol tem 4 metros de largura, 1,30m de altura e um 1m de profundidade. São dois tempos, com sete minutos cada e um de intervalo. Tudo é feito para evitar cera. O jogo precisa ser muito intenso. Não há lateral, a bola pode bater na grade de proteção e voltar para o campo. Cada time tem quatro jogadores, sendo um goleiro, que não pode sair da área. Atacantes não podem entrar na área. O time pode atacar com três jogadores, mas é permitido se defender com apenas dois. Um sai da quadra, mas pode voltar imediatamente ao jogo.
* Jornalista, ex-editor-chefe e ex-editor de Economia do Correio do Povo.