Conforme os dados divulgados pelo Censo Demográfico de 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Fazenda Rio Grande é a cidade que mais cresceu em termos populacionais na Região Metropolitana de Curitiba (RMC) e é a 2° que mais cresceu no Brasil (proporcionalmente) entre os municípios com mais de 100 mil habitantes.
Segundo os dados, a população do município quase dobrou, passando de 81.675 habitantes no Censo de 2010 para 148.873 no Censo de 2022, um aumento populacional de 82%. É necessário, porém, explicitar algumas características desse crescimento, à exemplo da raça-cor populacional.
Adotando o recorte de Aglomerado Urbano de Curitiba que, conforme apresentado por Firkowski (2009), são apenas os municípios que mantêm um nível representativo de integração à dinâmica metropolitana, observamos um aumento expressivo em Fazenda Rio Grande da taxa de crescimento quando a referência é a população negra (vale ressaltar que refere-se a soma de pretos e pardos).
Em 2000, a população negra era de 11.968, representando 19,03%, em 2010 era de 25.985, correspondendo à 31,82% e em 2022 é de 60.399, equivalente à 40,57% da sua população. Isso quer dizer que em duas décadas a população negra de Fazenda Rio Grande cresceu 5 vezes o seu tamanho, transformando o perfil étnico racial do município.
Veja o mapa a seguir:
Gráfico denota como há maior concentração de pessoas negras na RMC comparando com a capital / Produzido por: Costa, Nascimento e Raldi
Diante dos dados, podemos refletir sobre alguns fatores que podem explicar a transformação do perfil étnico na cidade e qual o futuro dessa população negra crescente. Primeiramente, vale ressaltar a luta histórica do Movimento Negro em torno da valorização da identidade negra, junto a isso, as medidas que foram institucionalizadas, a exemplo das ações afirmativas nas universidades e concursos públicos, o estatuto da igualdade racial e a Lei 10.639, que potencializaram nas últimas décadas a autodeclaração de negros e negras no país.
Acrescenta-se ao exposto, as dinâmicas territoriais ocorridas em Curitiba, especialmente na década de 1960, com a implementação do seu Plano Diretor. Este não serviu como instrumento de democratização do uso e ocupação do solo urbano, mas sim potencializador de uma segregação socioespacial.
Isto é, as áreas dos eixos estruturais, habitadas em sua maioria por camadas de alta renda, passaram a receber os maiores investimentos de equipamentos públicos, parques e eixos viários. Por consequência, formaram-se áreas economicamente valorizadas pela especulação imobiliária e impossibilitou ainda mais o acesso das camadas pobres, dos quais muitas se viram obrigadas a ir para as áreas mais distantes do centro da cidade e municípios vizinhos.
Assim, o preço do solo mais barato nos demais municípios da RMC em comparação com Curitiba, impulsionou o deslocamento dos segmentos de menor renda para fora da capital.
Por fim, valendo-se da sua própria dinâmica territorial, Fazenda Rio Grande se destacava na produção de moradia popular desde o final da década de 1970, mesmo ainda pertencendo à Mandirituba, do qual foi emancipada em 1990 (BALISKI, 2019). Essa dinâmica foi incrementada ainda mais com a instituição do Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV) cujo objetivo visa a construção de unidades habitacionais destinadas para a população de baixa renda.
Para se ter uma ideia, Fazenda Rio Grande foi um dos municípios da RMC que mais recebeu essa política, cerca de 17,2% das 113.734 unidades destinadas à metrópole (MCIDADES, 2018 apud BALISKI, 2019). A relevância deste dado é crucial, pois, segundo os dados do Ministério da Cidadania (2017), 70% dos beneficiários do PMCMV são compostos por pessoas negras.
Esse conjunto de fatores não esgota os motivos do enegrecimento da população do município de Fazenda Rio Grande, mas auxiliam a explicação de parte do fenômeno. Chamaremos atenção aqui, especialmente, para as políticas de habitações populares. Podemos nos questionar: quais as implicações que as dinâmicas territoriais vinculadas ao PMCMV irão trazer para a população negra crescente em Fazenda Rio Grande? Isto é, se o programa se vincula à lógica do preço da terra, logo, visa a construção de unidades habitacionais predominantemente em localizações mais periféricas e precarizadas, a população negra que aumentou ao longo das décadas, vai usufruir do direito à cidade ou está sendo condicionada a uma segregação de base racial?
Sabemos que o Estado em conjunto com outros agentes (mercado imobiliário), seguindo a lógica capitalista, distribui desigualmente o acesso à terra, à infraestrutura e equipamentos urbanos. Assim, cria-se além de uma separação de classes sociais na cidade, também uma separação por cor, resultando em uma hegemonia racial de alguns grupos no acesso, uso e apropriação de espaços. A população negra tem vivenciado um conjunto de processos históricos que mantém a hegemonia de uma elite branca no poder e impossibilita ou dificulta o seu acesso à moradia e a plena integração econômica, política e social na sociedade brasileira. Diante disso, como pensar em uma cidade plural?
É necessário que os gestores atendam as especificidades da população nas cidades e realizem um planejamento territorial verdadeiramente justo, a fim de que se faça valer o direito à cidade para todos e todas, legitimando o uso e ocupação do solo urbano, dando acesso ao saneamento básico, ao mercado de trabalho, ao transporte, ao lazer, promovendo à infraestrutura urbana e satisfazendo uma ampla rede de serviços públicos. Além é claro, que se construa uma gestão participativa e democrática, conforme previsto nos Estatutos da Cidade e da Metrópole, e assim, de fato, combatendo as desigualdades reproduzidas no espaço.
Para finalizar, apesar das ricas discussões sobre segregação urbana, nota-se uma insuficiência de problematização da segregação urbana por uma perspectiva racial. Desta maneira, pensar uma produção do espaço racializado é essencial, tendo em vista que a raça e as relações raciais são princípios de ordenamento de poder. Logo, a raça é uma variável que deve ser pautada nas análises do desenvolvimento de políticas habitacionais.
Esperamos que, uma vez que divulguem os resultados do Censo 2022 sobre raça-cor por setores censitários, possamos mensurar a distribuição socioespacial da população negra em Fazenda Rio Grande e as implicações do PMCMV, tanto os benefícios, quanto os prejuízos, para esse grupo.
Por fim, reforçamos que: O direito à cidade não será efetivado sem o reconhecimento do perfil étnico da população, não só em Fazenda Rio Grande, mas como em todo contexto brasileiro!
Referências:
BALISKI, P. Produção do espaço e periferização na metrópole: uma análise a partir do mercado formal de moradia popular em Fazenda Rio Grande/PR. Tese. (Doutorado em Geografia). Curitiba: Universidade Federal do Paraná, 2019.
FIRKOWSKI, O. Considerações sobre o grau de integração da região metropolitana de Curitiba na economia internacional e seus efeitos nas transformações socioespaciais. In: MOURA, R.; FIRKOWSKI, O. (Org.). Dinâmicas intrametropolitanas e produção do espaço na Região Metropolitana de Curitiba. Rio de Janeiro: Letra Capital: Observatório das Metrópoles; Curitiba: Observatório de Políticas Públicas Paraná, 2009
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo 2000. Disponível em https://sidra.ibge.gov.br/pesquisa/censo-demografico/demografico-2000/amostra-caracteristicas-gerais-da-populacao. Acesso: 15 de maio de 2024
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo 2010.Disponível em https://sidra.ibge.gov.br/pesquisa/censo-demografico/demografico-2022/universo-populacao-por-cor-ou-raca. Acesso: 15 de maio de 2024
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo 2022.Disponível em https://sidra.ibge.gov.br/pesquisa/censo-demografico/demografico-2022/universo-populacao-por-cor-ou-raca. Acesso: 15 de maio de 2024
*Glaucia Pereira do Nascimento é doutoranda em Geografia (UFPR)
*Lucas Silva Costa é mestrando em Sociologia Política (UFSC)