Desenvolver uma reflexão sobre os desafios da gestão da Região Metropolitana de Curitiba (RMC) nos leva a percorrer caminhos já anunciados pelo geógrafo Milton Santos, internacionalmente respeitado pelas suas análises acerca da organização do espaço e o impacto da globalização na vida urbana. Para ele, a visão pró-mercado da globalização neoliberal promove a fragmentação dos territórios, favorecendo a competitividade em detrimento da cidadania. E coloca um desafio aos planejadores públicos: de que maneira a competitividade, como valor, se sobrepõe ao ideário da coesão e cooperação que deve caracterizar uma política de articulação territorial envolvendo diferenciadas escalas espaciais?
Ao analisar a condução das políticas metropolitanas desde a criação da RMC, na década de 1970, a falta de uma real capacidade governativa se destaca. Arranjos institucionais sem a força política necessária para um planejamento integrado de desenvolvimento territorial; planos metropolitanos que só existem no papel, submissos às práticas municipalistas historicamente arraigadas na cultura política brasileira. Já a cidade polo Curitiba, na contramão do interesse coletivo, além de negligenciar os problemas dos seus próprios cidadãos, se exime de liderar a construção de uma identidade metropolitana na região.
As administrações locais de Curitiba vêm há décadas construindo sua imagem de cidade modelo, por meio de campanhas de alcance internacional de marketing de cidade. E seu principal fundamento é sempre a descaracterização da política mediante a apologia da técnica. A excelência do planejamento tecnocrático é atribuída como um diferencial da gestão, onde não há arenas eficazes de participação democrática. Na lógica do marketing de cidade, descrita por Fernanda Sanchez, “o urbanismo realizado está no centro da cena, a cidade tornada sujeito, o que em determinadas circunstâncias transforma os próprios cidadãos em meros figurantes, atores secundários de seu roteiro” (Sanchez, 1999, p.27).
A principal aposta do “modelo Curitiba” se pautou na divulgação de intervenções urbanísticas bem-sucedidas, que por si só, segundo seus planejadores, garantiriam qualidade de vida às cidades que as adotassem. O sucesso dessas campanhas dependia de que as contradições existentes em relação às desigualdades socioterritoriais fossem invisibilizadas. No entanto, apesar da fama, Curitiba segue sendo um espaço socioterritorialmente fragmentado, desigual e injusto como qualquer outra cidade. A sua notoriedade contou com a valorização seletiva de determinados bairros e com a estratégia de expulsão da pobreza para os demais municípios da Região Metropolitana.
O consenso sobre o modelo de Curitiba se apoiou na criação de imagens sínteses (Sanchez,1999), que se alternam de acordo com a pauta de temas do debate político sobre gestão urbana em destaque na época da sua adoção, passando de “cidade modelo", dos anos 1970 para “capital ecológica”, na onda verde dos anos 1990, para “capital social" em 2001, quando uma candidatura do Partido dos Trabalhadores (PT) levou o grupo hegemônico ao segundo turno. Atualmente, com o solucionismo tecnológico na ordem do dia, adota “cidade inteligente”, e se transforma em detentora de prêmios em mais um mercado: o ranking das cidades inteligentes.
Não é à toa que o cineasta Francis Coppola, atraído pelo marketing, veio conhecer Curitiba em 2003. Em seu retorno em 2024, o cineasta declarou no lançamento de “Megalópolis”, que a cidade e o urbanista, que a colocou no “mapa do mundo”, inspiraram seu filme. Pelo frenesi causado pelas suas declarações, não há dúvida de que Coppola reativa o debate sobre a função do urbanismo, ou seja, que a adoção de formas espaciais contemporâneas garantiria a construção de uma sociedade com qualidade de vida para todos os seus cidadãos.
E sobretudo reativa o city marketing e o sentimento de viés patriótico no curitibano. Uma questão importante se coloca para a cidade do futuro: se a Curitiba da Rua da Flores, dos parques, do ônibus expresso, do “lixo que não é lixo” e dos bairros nobres inspirou “Megalópolis”, é possível supor que a Curitiba periférica da habitação precária, da falta de manilhamento, seria uma espécie de “Apocalipse Now” do mesmo cineasta? Qual seria o perigo do retorno da mitificação do urbanismo de soluções meramente formalistas, sem o enfrentamento das demandas sociais relevantes que emergem na “Curitiba real”? Contudo, isso é tema para outro artigo.
Voltemos à análise do papel de Curitiba na articulação da RM. A promoção do desenvolvimento da RMC como região segue encurralada entre a ambiguidade escalar da metrópole Curitiba, enquanto uma metrópole plurimunicipal, imersa no mundo das “ambições globais de administrações locais” (Ribeiro e Dias, 2001) e a ausência do Estado na estruturação de capacidades governativas de peso para as práticas exigidas.
No período eleitoral, o Observatório das Metrópoles-Núcleo Curitiba, reuniu os seus pesquisadores para a elaboração da “Carta de compromisso às pessoas candidatas às eleições municipais de Curitiba e Região Metropolitana”, com base em estudos produzidos sobre a RMC. Sobre o tema “Governança e Participação Social” destaca-se a visão de que, apesar de se constituir em um só território, o planejamento de políticas ainda é muito restrito ao âmbito municipal, sem a necessária interface metropolitana. O que o unifica concretamente na ação política são as funções públicas de interesse comum, ou seja, atividades e serviços que não podem ser executados por um só município e exigem a integração para uma dimensão regional. Transporte coletivo, abastecimento de água, saneamento básico e habitação são exemplos.
Para a realização da gestão compartilhada são imprescindíveis estruturas de governança, que articulem os poderes executivo e legislativo dos municípios componentes da metrópole. Portanto, novas configurações de arranjos institucionais que venham a incluir agentes públicos e atores sociais, que não participam efetivamente das arenas existentes atualmente. Para um envolvimento maior dos municípios, por exemplo, a Carta “incentiva a criação de um conselho/fórum metropolitano entre prefeitos, vereadores, sociedade civil, que garanta contínua participação social na definição das políticas públicas territoriais para a região metropolitana.”
Em tempos de governos que adotam uma conduta neoliberal frente às políticas públicas, o papel do Estado como agente de desenvolvimento territorial e social, se enfraquece mais ainda impedindo uma ação mais incisiva frente às assimetrias de direitos causadas pela desigualdade socioespacial. É urgente um pacto territorial que reconheça as diferenciadas escalas de gestão, que produzem o espaço metropolitano, e respeite a sua heterogeneidade. A promoção de uma gestão plena e participativa, que promova uma estratégia de desenvolvimento pactuada, é a via para a equalização de interesses para que o direito à metrópole atinja todos seus cidadãos.
Thaís Kornin é especialista em Gerencia para el Desarrollo Social, Instituto Nacional de Administración Pública, Ministerio para las Administraciones Públicas, España. Pesquisadora do INCT Observatório das Metrópoles, Núcleo RM de Curitiba.
Referências bibliográficas:
SANCHEZ, Fernanda. 1999. Arquitetura e urbanismo: espaços de representação na cidade contemporânea. Veredas. Rio de Janeiro. Centro Cultural Banco do Brasil. v.4, n.41, p.26-29, maio.
RIBEIRO, Ana Clara Torres; DIAS, Leila Christina. 2001. Escalas de poder e novas formas de gestão urbana e regional. Anais do IX Encontro Nacional da ANPUR. Rio de Janeiro: ANPUR, v.1,p. 1-4.