Por Luciano Mendes
Na obra de ficção, um único personagem pode sintetizar as características de um conjunto de pessoas “reais” de uma determinada época, ou mesmo de épocas diversas. O problema (ou a solução) que isso apresenta é o de manter, minimamente, certas coerências do personagem de modo a impedir que a narrativa desande. Mas a coerência de um personagem poder ser, não nos esqueçamos, a sua mais absoluta incoerência.
É um pouco disso, me parece, que encontramos no livro “O terrorista Doces”, romance de estreia de Vitor Tavares (2024). O livro narra o dia-a-dia de um motorista de aplicativo que se aventura pelas ruas de uma grande cidade brasileira.
Como um verdadeiro flâneur contemporâneo, a pessoa que narra vai construindo uma cartografia da cidade, ao mesmo tempo em que faz um inventário dos tipos mais diversos de humanos que a habitam e nos mostra que, nas novas sociabilidades urbanas, o esvaziamento da política ocorre porque ela é vivida como simulacro.
Narrado em primeira pessoa, o texto de Vitor Tavares é intrincado e, por vezes, de difícil acompanhamento. A pessoa que narra é verborrágica, abusa do “sim” e do “não” e, apesar de ter um eixo narrativo subliminar que ajuda a prender a atenção do leitor e da leitora, as histórias acompanham freneticamente o ir e vir dos passageiros que utilizam o seu automóvel para se locomover na cidade.
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Assim, a cada pessoa que entra no carro, um pedaço de história, uma certa suposição sobre o momento político nacional ou sobre as relações de gênero são explicitadas. As conclusões, as extrapolações e, muitas vezes, os lugares comuns cabem à pessoa que teima em dirigir seu veículo, uma certa metáfora de sua própria vida.
Ao mesmo tempo em que há uma hipertrofia da política ao longo do livro — e uma caracterização nada lisonjeira dos políticos, o que faz com que pareçam ser os grandes vilões da história, como o é o próprio terrorista Doces —, todos os desafios de nossas grandes cidades comparecem no livro.
Do congestionamento que atrapalha a vida de todas as pessoas, às chuvas que favorecem os motoristas de aplicativos, passando pelas pichações urbanas e as dificuldades no trato entre as pessoas, tudo parece estar ali.
Ao longo do texto, são palavreadas as muitas situações que provocam mal estar na pessoa que narra. Ela sabe que o aplicativo “joga contra ela continuamente”, mas parece não se conformar com o fato de ter um limite para sua jornada de trabalho; mostra apreço pela política e a ela retorna continuamente, mas os políticos não são nem um pouco confiáveis; é crítico ao capitalismo, mas também à “comunistinha” que explicita querer mudar o mundo. Do ponto de vista de quem narra, o problema da corrupção é quase tão somente dos “políticos” e muito pouco daqueles que os corrompem.
O pensamento errático e as posições “reconstruídas” o tempo todo a partir das provocações das pessoas que utilizam o transporte de aplicativo, nos induzem a imaginar o fluxo e o cruzamentos de informações que ocorrem na cabeça da pessoa que narra, ao mesmo tempo em que parecem mimetizar o trânsito do automóvel pelas ruas. Ali, a insegurança grassa, e nem sempre o bom humor dá conta de aliviar as tensões.
A impressão que se tem é que as relações da pessoa que narra parecem acompanhar o frenesi do trânsito e os contínuos chamados a que ela é submetida pelo aplicativo. Mas, subjacente a este corre-corre, estão valores, medos, sentimentos, desejos, enfim, uma subjetividade que flerta com o que é de mais novo e, ao mesmo tempo, com o mais arraigado da condição humana daqueles e daquelas que ocupam a periferia, em todos os sentidos, em nosso país. A cidade é inóspita e a política ausente, mas a casa, família, a escola, o lazer, a comida decente, o trabalho digno, a segurança, a saúde ainda mobilizam as pessoas. Talvez ainda seja possível esperançar o mundo.
Luciano Mendes de Faria Filho é pedagogo, doutor em Educação e professor titular da UFMG. Publicou, dentre outros, “Uma brasiliana para a América Hispânica – a editora Fondo de Cultura Econômica e a intelectualidade brasileira” (Paco Editorial, 2021)
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Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal