Os dados comprovam o que o bolso do brasileiro já sabe: a comida está mais cara. O preço do arroz, por exemplo, subiu mais de 8% em 2024, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Já o valor do café foi parar nas alturas, com uma alta de 39% no ano passado. A inflação no preço dos alimentos se repetiu em maior ou menor medida em quase todos os itens da cesta básica que, de modo geral, teve um incremento de mais de 7% de janeiro a dezembro de 2024. Os dados acenderam o alerta no Palácio do Planalto.
“Eu tenho em mente que o aumento dos preços dos alimentos que vão na cesta básica é sempre muito ruim, porque eles afligem as pessoas mais pobres, os trabalhadores mais humildes, que a gente quer proteger. Então não tem sentido você fazer um sacrifício enorme de fazer políticas públicas, de fazer com que o dinheiro chegue na ponta, e depois esse dinheiro será comido pela inflação”, disse o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, durante conversa com jornalistas no Palácio do Planalto, na última quinta-feira (30).
O governo, então, passou a estudar a possibilidade de taxar importações e reduzir alíquotas internas, incentivando a produção de alguns dos produtos que mais influenciam na inflação. Medidas que podem ter impacto imediato, mas não resolvem problemas estruturais do modelo de produção e distribuição de alimentos no Brasil, como explica Yamila Goldfarb, professora e presidente da Associação Nacional de Reforma Agrária.
“É evidente que existem soluções que podem ser de mais curto prazo, mais emergenciais, sim. Mas as soluções, de fato, para a gente ter um a garantia de uma soberania alimentar, ou seja, ter preços acessíveis de forma permanente para os alimentos saudáveis, isso exige algumas políticas que são estruturais”, avalia Goldfarb. Entre elas, segue a professora, “mexer com a oferta do alimento”.
“Isso significa o quê? Primeiro, e antes de mais nada, a gente ter mais famílias produzindo alimento nesse país. É, parece um assunto antigo falar em reforma agrária, mas não é. A gente precisa, de fato, ter mais agricultura familiar produzindo alimentos, porque a gente sabe que, de fato, alimentos in natura, frutas, legumes, verduras, parte dos grãos, quem produz, de fato, é mais a agricultura familiar. A grande propriedade, ela está produzindo commodities para exportação”, analisa.
A presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea), Elizabeta Recine, afirma que, desde a retomada dos trabalhos do conselho, os membros têm se debruçado sobre estratégias para garantir a segurança alimentar da população. “Primeiro, é importante ver que isso é recorrente. Em diferentes momentos e por diferentes fatores, os alimentos sempre são uma parte muito sensível do índice inflacionário. Porque há questões que são estruturais, de que gente está tendo historicamente uma perda da área de produção dos nossos alimentos básicos, que vão sendo paulatinamente substituídos pela produção de commodities”, avalia.
Para Recine, não há solução simples para um problema complexo, que deve ser entendido como prioridade pelo poder público. “A gente tem uma conjugação de situações estruturais com situações da conjuntura, e a gente tem um resultado que é o aumento do preço. Mas ele é multifatorial, não existe uma única solução de maneira nenhuma. É ilusório achar que uma medida vai resolver. Então a gente precisa olhar um conjunto de medidas que precisam ser tomadas para tentar minimizar a situação atual. Mas nós também precisamos pensar nas consequências dessas medidas a médio e longo prazo.’’
Mais uma vez, onde está a reforma agrária?
A alta concentração de terras é um dos problemas a serem superados. A agricultura familiar, que principal responsável pela produção de itens da cesta básica, ocupa apenas cerca de 23% da área agricultável no país. E os plantios de alimentos vêm perdendo espaço para grandes monoculturas de grãos, voltados para exportação.
“O que a gente tem hoje é uma queda crescente na produção interna de alimento. Assim, se fala muito pouco disso quando se fazem as análises hoje, mas a gente tem uma constante queda na área de produção de arroz, de feijão, de farinha, de mandioca, de legumes, e que não é compensada pelo aumento da produtividade, porque tem, claro, um aumento de produtividade, mas a gente tem também um aumento de demanda, seja por um aumento populacional que ocorre, seja por um aumento de renda que faz demandar produto. Então, a gente não consegue equilibrar isso”, pondera Goldfarb.
Sistemas de abastecimento
Uma promessa ainda não concluída pelo governo federal é a recuperação dos armazéns e silos que permitiram ao país desenvolver a política dos estoques regulares, como forma de equilibrar o preço dos alimentos disponibilizados ao mercado interno. O governo chegou a lançar um Plano Nacional de Abastecimento, mas pouco saiu do papel.
“Muitas das medidas previstas do plano demandam não só a disponibilidade de orçamento, mas também de retomar ou acelerar, ou mesmo iniciar processos”, esclarece Recine. “No caso, por exemplo, dos estoques, demandam infraestrutura. O Estado brasileiro tem armazéns sob sua responsabilidade, mas também demanda a contratação de armazéns privados, porque é preciso produzir um processo de capilarização muito grande. O plano foi lançado em meados do segundo semestre de 2024, nem todas as medidas que estavam são inéditas, já havia um processo de recuperação das instalações e existe um tempo previsto para a implantação, e para que esse sistema possa atingir sua capacidade plena” explica Recine, lembrando que a “capacidade plena” é relativa, na medida que os desafios também vão se incrementando.
Estoques reguladores
Os estoques regulares são espaços, como galpões, armazéns e silos para guardar alimentos, sobretudo grãos, que ajudam o Estado a regular os preços praticados no mercado, diante de emergências, desabastecimento ou para o controle do índice de inflação sobre esses produtos. O governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) extinguiu essa política e praticamente acabou os estoques públicos. “A questão é que a gente teve toda uma política de privatização desses estoques. O Estado foi perdendo esses espaços de fato, porque precisa de infraestrutura”, lembra Goldfarb.
Para Recine, é urgente que as medidas previstas no Plano Nacional de Abastecimento sejam concretizadas para devolver ao Estado a capacidade de regular o preço dos alimentos, hoje concentrada nas mãos das grandes empresas exportadoras. “A gente precisa recuperar nossa infraestrutura de armazenamento, mas também ter orçamento e estratégia operacional para que a gente de fato tenha uma política de estoques reguladores”, avalia.
Recine destaca ainda a necessidade de o país se estruturar para estar cada vez mais preparado para o cenário internacional turbulento, e resiliente diante dos efeitos das mudanças climáticas. Nesse sentido, defende uma maior proteção do mercado interno.
“Acho que sempre foi necessário, mas talvez agora seja não só necessário, mas imprescindível, que a gente atue já prevendo oscilações, já prevendo situações em que a questão do abastecimento alimentar vai estar em jogo, vai estar em risco. Isso tem a ver com a nossa capacidade de produção, com a nossa capacidade de abastecer, com a nossa capacidade de garantir o acesso à nossa população. Isso tem a ver também com a nossa capacidade de reagir ao cenário político que se anuncia, de taxação, de mexer nas políticas de subsídios, de mexer até com as regras comerciais ou pelo menos de instalar uma instabilidade nesses processos”, pondera. “Então, de alguma maneira, o Brasil tem que olhar para dentro, precisa proteger o mercado interno e essa proteção vem com medidas que a gente tem plena capacidade de adotar”, avalia a presidente do Consea.
MST entra em campo
Na semana passada, integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) levaram ao presidente da República propostas e reivindicações para ajudar a solucionar o tema dos preços, mas sobretudo, retomar a vocação de produção agroalimentar do país, em contraposição ao modelo agroexportador dominante hoje.
"A gente sempre teve uma preocupação muito grande com esse tema da alimentação, não só de comer, mas de comer bem e a gente entende que isso dialoga diretamente com o tema da reforma agrária. A gente tem dialogado com o governo federal, por meio da Conab [Companhia Nacional de Abastecimento], do MDA [Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar], e agora também com o presidente Lula, possibilidades de a gente poder ter outros mecanismos de estímulo à produção de alimentos que possam impactar na questão do abastecimento. Por consequência, a formação dos estoques que também vão ajudar a reduzir o custo dos alimentos”, relata Hadich, que cobra do governo um maior investimento nas políticas de promoção da agricultura familiar e da reforma agrária.
Ceres Hadich e João Paulo Rodrigues, em coletiva de imprensa, no Palácio do Planalto, em Brasília / Leonardo Fernandes
“A gente entende que a política que é estruturante do PAA [Programa de Aquisição de Alimentos] é fundamental para podermos fazer esse enfrentamento à fome, promover a produção de alimentos e o controle inflacionário. Mas também existem outras modalidades, a partir daquelas que já existem do PAA, que podem ser exploradas, e novas podem ser criadas, para que a gente possa fazer esse enfrentamento de maneira mais eficaz, efetiva e massiva no Brasil”, defende Hadich.
Segundo as especialistas, produzir alimentos e não commodities é uma decisão política. O Brasil pratica uma política de incentivo ao modelo agroexportador. De um lado, enormes renúncias fiscais às exportações e, do outro, a concessão de linhas de crédito bilionárias, como o Plano Safra do agronegócio, que entregou mais de R$ 400 bilhões ao setor em 2024, enquanto a agricultura familiar ficou com pouco mais de R$ 70 bilhões, e muito pouco incentivo. Essa inversão de prioridades é o que não deixa a conta fechar, pesando no bolso dos brasileiros e afetando sua percepção sobre a qualidade de vida no país – e o papel do governo nisso.