Em sessão no Supremo Tribunal Federal (STF), na tarde desta quarta-feira (5), o ministro Edson Fachin, relator da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635, conhecida como "ADPF das Favelas", apresentou um longo voto com propostas para a redução da letalidade policial no estado do Rio de Janeiro. O julgamento foi suspenso após a apresentação do relator e, segundo o presidente do Supremo, Luís Roberto Barroso, deve ser retomado nas próximas semanas.
Em seu relatório, o ministro afirmou que o julgamento em andamento "é uma oportunidade de reconhecimento de uma injusta discriminação histórica que vitima milhões de pessoas residentes nas comunidades do Rio de Janeiro". "A questão é fazer isso tudo sem recorrer a procedimentos que lesam direitos de centenas de milhares de pessoas inocentes, sem ferir crianças e adolescentes, sem violar o direito à vida com execuções arbitrárias. O desafio, em suma, é combater o crime sem cometer crimes", disse Fachin.
O ministro rejeitou os argumentos do governo fluminense, que defendeu o não provimento da ação. Segundo o magistrado, indicadores recentes de redução da letalidade em operações policiais não devem servir de indicativo para a superação do estado de coisas inconstitucional na política de segurança pública do Rio de Janeiro.
"Os esforços empreendidos pelo Estado em sua mitigação devem ser reconhecidos, mas atinge apenas parcialmente os aspectos vários que demandam ainda novas determinações e seu acompanhamento", declarou o ministro em seu voto. "Esse julgamento é o fim de um ciclo, nasce outro para além desse tribunal, que abre um novo arco de atividades a serem desenvolvidos. Por isso, reconheço a permanência de um estado de coisas ainda inconstitucional na segurança pública do estado do Rio, a ser monitorado em um segundo ciclo", defendeu Fachin.
No voto, o magistrado destacou como "boas práticas" que precisam ser adotadas de modo permanente e sistemático, e não de forma circunstancial. "A utilização de câmaras corporais e medidas de transparência e responsabilidade da atividade policial, com efetiva função de controle externo, devem ser confirmadas, replicadas e consolidadas e não tomadas circunstancialmente. Pois seus resultados concretos hão de perdurar no tempo, porque são de efetivo interesse público, inclusive com a comprovada redução de vitimização de agentes das forças de segurança", disse o ministro.
O ministro reforçou o "dever da administração pública em organizar a política de segurança com respeito aos parâmetros da razoabilidade e proporcionalidade no uso da força". "Não há oposição entre tal diretriz e a consequência da própria política de segurança pública", afirmou Fachin, que defendeu ainda que o estado deve ser obrigado a tomar medidas preventivas para proteger os indivíduos contra ameaças, como a de ser assassinado por criminosos, por grupos criminosos ou ainda por milícias.
"Crianças são prioritárias"
No relatório apresentado nesta tarde, o ministro reafirmou a necessidade de que o estado do Rio de Janeiro apresente um plano com metas para a redução da letalidade policial, e determina o acompanhamento psicológico obrigatório para policiais envolvidos em mortes durante operações. Fachin também determinou às autoridades o estabelecimento de protocolos específicos para operações próximas a escolas e unidades de saúde, e garantir autonomia técnica e funcional à polícia científica.
"A aferição da proporcionalidade e necessidade de respeito aos procedimentos de uso diferenciado da força se impõe com maior rigor quando realizadas operações policiais nas regiões e nos períodos de entrada e saída de estabelecimentos educacionais", destacou Fachin, que destacou a violação de outros direitos fundamentais. "As crianças devem ter proteção em grau de prioridade máxima. Quando crianças deixam de frequentar aulas em virtudes e atividades de organizações criminosas ou de intervenções policiais, verifica-se em relação a elas uma grave violação de direitos humanos, símbolo da falência do Estado em assegurar com absoluta prioridade os direitos das crianças", disse o relator.
Luciano Gonçalves, pai de Kathen Romeu, assassinada aos 24 anos, acompanhou a sessão desta tarde / Gustavo Moreno/STF
Ainda sobre esse aspecto, Fachin propôs que fique vedada a utilização de qualquer equipamento educacional ou de saúde como base operacional das polícias civil e militar. No voto, o ministro deferiu ainda o pedido da parte autora para que diligências de busca e apreensão em qualquer operação policial sejam realizadas apenas durante o dia, e não à noite, e em caso de não haver mandado judicial, as autoridades policiais devem comprovar flagrante delito ou risco iminente.
Fachin propôs a criação de um comitê interfederativo de apoio e acompanhamento da implementação do plano que deve ser apresentado pelo governo do estado do Rio, que terá duração de quatro anos. O comitê deve ter representação das autoridades de segurança do Rio, Ministério Público, Defensoria Pública, membros da sociedade civil, além de pesquisadores na área de segurança pública.
Conclusão
O ministro Edson Fachin afirmou que, por se tratar de um tema complexo, o voto não significa o encerramento do debate e destacou a possibilidade de incorporações de novas propostas ou adequações ao voto. "O que se espera é a redução paulatina e constante dos índices de letalidade policial em parâmetros que possam ser considerados proporcionais ao contexto do estado", afirmou Fachin.
"Em uma camada mais profunda, na qual só resta o que chamamos esperança, almeja-se que conduzam a consolidação, ainda que gradualmente, de uma nova cultura organizacional com mais transparência, mais eficiência e que reverterá em mais segurança pública para todos, incluindo policiais, que arriscam suas vidas todos os dias, e os milhões de trabalhadores e trabalhadoras que residem nas favelas, nas comunidades do estado do Rio de Janeiro. O que este voto almeja é um futuro que tenha o nome de paz", finalizou o relator.
Apartes e sinalizações
Durante o voto de Fachin, alguns ministros pediram apartes, que servem para esclarecer dúvidas e anteciparem concordâncias e divergências em relação a pontos do relatório. O decano do tribunal, ministro Gilmar Mendes, comentou o fato de haver territórios sob domínio de organizações criminosas, indicando uma capacidade do Estado em lidar com o problema.
"O fato de existir territórios ocupados é de uma gravidade sem tamanho. A ocupação pelo tráfico, no caso do Rio de Janeiro, ou ocupação por milícias e depois a penetração disso nos estamentos políticos, sugere quase que de imediato uma incapacidade do próprio estado, da unidade federada, de lidar com esse problema", disse Mendes, que propôs um debate sobre a participação dos órgãos da União, como a Polícia Federal e o Ministério Público Federal (MPF) na supervisão de investigações sobre esses domínios territoriais. "Estamos a discutir, talvez, sintomas, e não a falar das causas", manifestou.
Luiz Fux fez um breve aparte para reafirmar a existência do chamado estado de coisas inconstitucional e a necessidade de que o Judiciário dê algum tipo de respostas ao problema, nos limites de suas atribuições. "A grande questão é saber se, em havendo essas ocupações, qual é a solução constitucionalmente admissível para conjurar esse estado de coisa inconstitucional. Eu sou nascido no Rio de Janeiro e posso apensar que a população do Rio de Janeiro está muito abalada com esse estado de coisas. Hoje mesmo as notícias e os jornais são no sentido de que diariamente são roubados, carros, há mortes diuturnas que são notificadas", disse Fux.
O ministro Alexandre de Moraes manifestou relativa divergência com o relatório de Fachin, sobretudo no que diz respeito ao uso de armamento pesado em operações contra o tráfico de drogas e o crime organizado. "Qualquer operação contra milícias, contra o tráfico de drogas, me parece óbvio, é que o armamento a ser utilizado é o armamento mais pesado possível que a polícia tenha", declarou Moraes, que também indicou ser contra a proibição do uso de helicópteros próximo a escolas e hospitais, sob o argumento de o tráfico passaria a utilizar esses espaços para "realizar o crime".
"Nós não podemos dar uma mensagem de que a polícia não pode ingressar fortemente armada, de que a polícia não pode fazer sua operação em todo o território, onde haja os criminosos, porque os criminosos estão atuando perto de escolas, os criminosos estão atuando perto de hospitais", disse o ministro, em tom de alerta.
Já o presidente do STF, Luís Roberto Barroso usou a palavra para rejeitar, por antecipação, a crítica de invasão de competências que podem ser suscitadas pelos opositores da medida. "Embora que provavelmente a gente vai ouvir que está se metendo no que não deve, mas este é um problema que não foi resolvido até hoje e acho que nós precisamos, em alguma medida, contribuir para sua solução", declarou Barroso.
"ADPF da vida"
A ADPF das Favelas foi protocolada no Supremo em novembro de 2019 e pede que o STF reconheça que existe um estado de violação de direitos previstos na Constituição durante as ações de segurança pública do estado. A mesma ADPF resultou em decisões individuais relator, proibindo a realização de operações policiais em favelas durante a pandemia.
Antes do julgamento, familiares de vítimas da violência do Estado se reuniram na Praça dos Três Poderes, em defesa da ADPF das Favelas, que propõem renomear como ADPF da Vida.
Familiares de vítimas da violência policial fizeram um ato simbólico na Praça dos Três Poderes, antes de entrar no plenário do STF para acompanhar o julgamento / Leonardo Fernandes
"Infelizmente, nada do que a gente faça, minha filha não voltará. Mas a gente tenta botar a dor no bolso, reunir as forças para tentar mudar um pouco essa política de segurança assassina, essa política de segurança genocida do povo pobre, do povo preto", declarou Luciano Gonçalves, pai de Kathlen Romeu, morta em junho de 2021 por um tiro de fuzil disparado por um policial militar no Complexo do Lins, no Rio de Janeiro. Ela tinha 24 anos e estava grávida.