No princípio houve o encontro de dois rios. O rio das “Araras Grandes” (Araçuaí), generosamente, despejava suas águas no rio “Largo cheio de Peixes” (Jequitinhonha). Desse encontro de águas, formava-se o grande e belo Vale do Jequitinhonha. Também este Vale se fez vizinho de outros dois importantes vales: o Mucuri e o Rio Pardo, formando a variedade e exuberância da fauna e flora dessas terras.
Banhado por importantes bacias hidrográficas e localizado em região estratégica do Nordeste do estado de Minas Gerais, o Vale do Jequitinhonha presencia o encontro de biomas: Mata Atlântica, Cerrado e o início da Caatinga no Semiárido. É composto por regiões mais férteis e por outras menos férteis, a depender da vegetação, do clima e do tipo de suas terras. Ainda que prevaleçam altas temperaturas em algumas localidades, o clima varia em outras localidades, com temperaturas amenas.
Em décadas anteriores, o Vale do Jequitinhonha era conhecido como Vale da Miséria, Vale da Pobreza, Vale do Subdesenvolvimento. Graças à resistência e determinação de sua gente, ao compromisso sociotransformador da Igreja Católica, e às políticas públicas ali destinadas, o Vale do Jequitinhonha superou desafios socioeconômicos e passou a ser conhecido pelas riquezas de sua biodiversidade, pluralidade cultural, saborosa culinária, finos artesanatos, religiosidade popular e alegria de sua gente. A riqueza dessas terras é o seu povo, que procura unir fé e vida, religiosidade e cultura, história e arte.
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Historicamente, habitavam as terras desses vales os povos Tocoiós e Botocudos. Até que começaram a chegar aventureiros, garimpeiros e tropeiros, em busca de ouro e pedras preciosas. Iniciava-se a formação de povoados e cidades. Dizimados os indígenas daquele tempo, a região conta hoje com a presença dos povos Aranã Caboclo, Machacali, Aranã Indío e Pankararu. Instalaram-se nessa região, quilombos formados por escravizados que fugiam das fazendas e garimpos. Encontram-se no território da Diocese de Araçuaí, hoje, 97 comunidades quilombolas, que procuram resistir com suas culturas e tradições.
As fontes de renda mais incidentes na região, de acordo com a sondagem feita nas paróquias da diocese são: agricultura familiar, pecuária, prestação de serviços básicos autônomos (pedreiros, carpinteiros, serventes de pedreiros, pintor), benefícios sociais, aposentadorias e pensões, funcionalismo público e comércio local. Com menos incidência: cerâmica industrial, artesanato, garimpos, monocultura do eucalipto, da banana, plantação de café, extrativismo em áreas de preservação e conservação e empregados em grandes empresas e mineradoras.
A realidade da migração ainda está presente em todo o território da diocese, com números significativos. A incidência maior é para o trabalho na construção civil, para a colheita do café, para o comércio no litoral e, em alguns lugares, ainda, para o corte de cana, jovens que partem para outros lugares, a fim de dar continuidade aos estudos. Com a atividade de mineradoras, tem acontecido um movimento de acolhida de migrantes vindos de outras partes para a região do Vale do Jequitinhonha.
A atividade mineradora se caracteriza por: extração de granito, grafite, lítio, pedras preciosas e semipreciosas, via dragas em rios. As comunidades são atingidas pela poluição das águas dos rios por produtos químicos, poluição da atmosfera, danificação das construções, e poluição auditiva por uso de explosivos. A questão da monocultura do eucalipto e da banana é também relevante e traz impacto no lençol freático, diminuindo as águas das nascentes e contaminando as águas com o uso de agrotóxicos.
Fraternidade e ecologia integral
“E Deus viu que era tudo muito bom” (Gn 1,31). Com este lema, aprofundamos o tema da Campanha da Fraternidade proposto para este ano: “Fraternidade e Ecologia Integral”. A partir do texto-base dessa campanha, constatamos a tarefa deixada ao ser humano: “descobrir a beleza, a bondade, a singularidade, a diversidade e a agradabilidade de todos os seres. Sendo assim, qualquer tipo de destruição da obra criacional torna-se algo contrário à ótica bíblica da criação” (Texto-base CF 2025, 69).
Num importante documento, chamado Laudato Sì, encíclica sobre o cuidado da Casa Comum, lançada em 2015, o Papa Francisco nos assegura que tudo está conectado: “se tudo está em relação, também o estado de saúde das instituições de uma sociedade comporta consequências para o ambiente e para a qualidade da vida humana […] Em tal sentido, a ecologia social é necessariamente institucional e atinge progressivamente diversas dimensões que vão do grupo social primário, a família, até a vida internacional, passando pela comunidade local e a Nação” (LS, 142).
Exigimos, em nome de Deus, responsabilidade social, investimentos na saúde, educação e moradia
Várias empresas têm investido no Vale do Jequitinhonha, interessadas em extrair suas riquezas naturais, olhos fixos em seus lucros. Exigimos, em nome de Deus, que essas empresas assumam compromissos sociais, como orienta um dos princípios da Igreja: “Sobre toda propriedade privada pesa uma responsabilidade social”. Se levam as riquezas do Vale, que não nos deixem somente crateras e resíduos, águas poluídas e matas destruídas.
Queremos ver acontecer essa responsabilidade social, no respeito pela ecologia integral: investimentos na saúde, na alimentação, na educação, na moradia, na preservação dos mananciais, no cuidado com nossa gente e os povos originários do Vale – quilombolas e indígenas –, no cuidado com nossos rios, nossa fauna e nossa flora.
Vale, que vale cantar
Como compôs Verono, na canção imortalizada pela voz de Rubinho do Vale, cantamos com alegria e esperança, os encantos e belezas de nossa esplêndida região: “Vale que vale cantar/ Vale que vale viver/ Vale do Jequitinhonha/ Vale, eu amo você”.
E por amar o Vale, queremos que ele continue a ser vale, chapada, grande sertão e veredas, respeitando suas terras, sua vegetação, suas nascentes e rios, seus povos originários e sua gente, mantendo sua qualidade de vida e de harmonia, pois “tudo está em relação”, “tudo é coligado”, “tudo está conectado”, como diz o refrão que perpassa a Laudato Sì.
Não somos contrários ao desenvolvimento. O que exigimos é desenvolvimento sustentável, sem desequilibrar a harmonia da ecologia integral. O nosso olhar precisa ter o verde da esperança e nossas palavras não podem perder a força da profecia. “Mesmo com a deterioração da nossa relação com a sociedade e a natureza, a esperança nos move a unir os esforços das ciências ao profetismo da fé, acreditando que, fazendo a experiência dos limites do planeta, poderemos superar o impasse existencial e ambiental em que vivemos” (Texto-base CF 2025, 136).
Conclamamos a todos que, nesta Quaresma, busquemos a nossa conversão ambiental, acreditando que “outro mundo e possível”.
Dom Geraldo dos Reis Maia é bispo de Araçuaí, Vale do Jequitinhonha (MG)
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Este é um artigo de opinião, a visão do autor não necessariamente corresponde a linha editorial do jornal