Instituído pela Organização Mundial das Nações Unidas (ONU), o Dia Internacional das Mulheres e Meninas na Ciência é comemorado em 11 de fevereiro, há 10 anos. Tendo como objetivo conscientizar a sociedade de que a ciência e a igualdade de gênero precisam andar lado a lado, a data escancara as graves desigualdades ainda presentes no campo científico.
Segundo dados da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco), globalmente, apenas 33% das pessoas que atuam com pesquisa são mulheres. Em algumas áreas, como ciência, tecnologia, engenharia e matemática, a formação de mulheres é ainda um desafio, alcançando mundialmente apenas a marca de 35% de todos os estudantes graduados nessas disciplinas.
Priscila Costa, engenheira ambiental e sanitarista, mestre em saneamento, meio ambiente e recursos hídricos e doutoranda em tecnologia ambiental pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), relata a percepção dessa realidade em seu cotidiano.
Com predomínio masculino em alguns campos de sua atuação, como estatística, modelagem computacional e ciência de dados, ela afirma perceber que as mulheres precisam constantemente provar o seu valor.
“O tempo todo, eu sinto que é como se a gente, por ser mulher, precisasse se reafirmar mais do que os outros pesquisadores. Em todos os ambientes acadêmicos em que estou inserida, a maioria é sempre de homens. Parece que você tem que estar sempre provando a sua competência”, comenta.
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Ainda quando estava no período da graduação, ela sempre esteve próxima de projetos, realização de eventos, monitorias e pesquisas. A pesquisadora também realizou iniciação científica na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e foi nessa época que ela publicou o seu primeiro artigo como co-autora.
“Eu achei aquilo magnífico, as pessoas desenvolverem suas pesquisas e publicarem. Era um outro universo que eu não conhecia tanto. Não sei se foi destino, mas eu sempre fui direcionada de certa forma para a questão da pesquisa. Realmente é um universo que me encantou”, lembra Priscila.
Atualmente, ela cursa, há pouco mais de um ano, o doutorado. Sua pesquisa aborda a identificação e o monitoramento da ocorrência de secas nos biomas brasileiros.
Na prática, ela busca identificar como as ações do homem e as mudanças climáticas impactam o ambiente urbano e rural no que tange às águas superficiais e subterrâneas, mais especificamente na ocorrência de secas.
Com um grande entusiasmo na continuidade de sua trajetória acadêmica, ela tem o sonho de se tornar professora universitária. Porém, conta também ter vivenciado situações desagradáveis em bancas, avaliações ou em relações hierárquicas com pesquisadores.
Desafios
Ela relata experiências em que homens se sentiram à vontade para subir o tom de voz e assumir uma postura arrogante ao se dirigirem a ela.
Priscila comenta ainda sobre disparidades na relação do trabalho de pesquisadora com as demandas presentes no dia a dia da mulher, que, em geral, enfrentam duplas ou triplas jornadas de trabalho, muitas vezes incluindo o cuidado com filhos e com a casa. Como agravante, ela cita um forte julgamento do meio acadêmico com relação a maternidade.
“Eu me vejo muito dividida entre a minha carreira profissional, meu sonho de chegar aonde eu quero chegar profissionalmente, e o meu sonho de construir uma família. E eu vejo que isso não é uma questão para os homens”, destaca a engenheira.
Realidade nacional
Sua preocupação encontra eco na realidade das pesquisadoras no Brasil. No início do ano passado, veio à tona uma polêmica envolvendo violência de gênero, sofrida no processo de avaliação para a concessão de bolsa de produtividade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Na época, a pesquisadora Maria Caramez Carlotto, da Universidade Federal do ABC (UFABC), teve a bolsa negada por não ter realizado pós-doutorado no exterior. Requisito esse que não estava previsto no edital. O parecer apontava ainda que “provavelmente suas gestações atrapalharam essas iniciativas”. O caso acendeu o alerta e fez com que o CNPq revisasse suas normas, estendendo o prazo de avaliação para dois anos em caso de gravidez e adoção.
Jornalista de formação, professora e pesquisadora da UFMG, Ana Carolina Vimieiro estuda a relação entre esporte, gênero e comunicação e conhece bem a resistência em aceitar a participação de mulheres em alguns campos da ciência.
Sua pesquisa tem enfoque central em entender como o jornalismo trata modalidades esportivas femininas, quem são as pessoas atuando na mídia esportiva e como os materiais de entretenimento retratam mulheres atletas.
Ela relata que, quando cursou a sua graduação, o meio acadêmico representava uma perspectiva muito boa de carreira, com a valorização promovida na primeira década dos anos 2000.
Em sua atuação anterior na pesquisa em comunicação até o mestrado, a professora teve foco em temas que relacionam comunicação e política. Mais tarde, durante o doutorado cursado na Austrália, a partir da investigação da Copa do Mundo do Brasil, ela mudou o foco de sua área de pesquisa para o esporte.
“Eu vi ali, efetivamente, uma multiplicidade de coisas que poderiam ser estudadas nessa área. E comecei a perceber também como a minha presença, enquanto mulher, poderia ser muito importante”, comenta.
Comunicação, esporte e pesquisa
Embora a comunicação seja uma área com maior permeabilidade das mulheres, a sub-área da comunicação esportiva é ainda um ambiente bastante masculinizado. Além disso, ela descreve uma certa desvalorização do campo esportivo. “Eu tenho que lidar com um certo desprezo dos colegas da área para o próprio objeto, o esporte e o futebol”, explica.
Da sala de aula à relação com os pares, Ana relata dificuldade na aceitação de sua atuação. Ela conta, por exemplo, que no início de sua atuação como professora na UFMG houve resistência inclusive por parte de alunos.
“É muito difícil ser mulher pesquisando esporte e futebol. Acho que tem uma relação, principalmente nacional, com pesquisadores mais velhos. Além disso, quando comecei a ofertar disciplinas de esporte, eu tinha problemas com alunos, inclusive. Principalmente alunos homens, que me desafiavam no sentido de estar sendo testada mesmo”, destaca.
Para ela, essa postura se estende também a mulheres que se interessam pelo tema e até torcedoras. Apesar disso, ela enfatiza a criação de uma rede de apoio com suas colegas, alunas e orientandas como uma fonte de inspiração para vencer os desafios
“Eu acho que as outras mulheres têm sido muito importantes nessa trajetória, as outras poucas mulheres que pesquisam esporte, elas vão fazendo com que a gente consiga superar essas adversidades”, afirma Ana Carolina.
A desvalorização da profissão, que, quando há contratação para o exercício da docência, não conta com direitos trabalhistas ou estabilidade, e a falta de infraestrutura e fomento preocupam a professora. Porém, a realização como pesquisadora e ao ensinar está muito presente no relato de Vimieiro.
“Eu fico realmente muito feliz quando vejo alguma das minhas alunas conquistando vagas de estágio, vagas de trabalho em empresas de comunicação importantes. Quando eu vejo algumas das minhas alunas decidindo ser pesquisadoras dessa área, fazendo trabalhos muito importantes que vão olhar para as mulheres no âmbito do esporte”, comenta.
Falta de estrutura
Millena Freitas, bióloga licenciada formada pela UFMG e mestranda em ciências da saúde na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) de Minas Gerais, destaca que a falta de infraestrutura é uma dificuldade presente na pesquisa como um todo no Brasil, o que acaba por afetar também a realidade de mulheres cientistas.
“Eu destaco principalmente a falta de investimento na ciência, na educação e na permanência. Nos últimos anos, a universidade pública, a educação e as ciências, como um todo, sofreram um sucateamento por parte de governos que não valorizavam a ciência”, denuncia.
Quando era bem jovem, ela ingressou em um programa de vocação científica oferecido pela Fiocruz Minas, onde estudantes do ensino médio têm a oportunidade de, a partir de uma bolsa de incentivo, participarem do desenvolvimento de um projeto de pesquisa dentro da instituição e acompanharem a rotina de laboratório.
Justamente por sua trajetória, ela reconhece a importância do incentivo, do investimento público e das políticas de permanência estudantil.
“Ali, eu acompanhei todo o processo de curadoria, organização e manutenção da coleção de vetores e foi também onde eu tive esse despertar do interesse e do gosto pelas ciências biológicas e pelas ciências da saúde como um todo”, lembra.
Hoje, ela atua em um projeto relacionado à vigilância epidemiológica da doença de chagas, pautada pelo monitoramento dos vetores da enfermidade, que são os barbeiros ou triatomíneos. Mais especificamente, sua pesquisa busca o diagnóstico da situação dos postos de informação, chamados PITs, presentes em todos os municípios, para recolhimento e diagnóstico desses insetos.
Mudanças
Ela destaca que, embora a ciência seja um ambiente historicamente excludente, é perceptível o aumento de uma participação diversa.
“É claro que o ambiente das ciências foi, por muitos anos, considerado um ambiente que deveria ser ocupado somente homens brancos, cis-gênero e de classe alta. Porém, nos últimos anos, esse cenário tem mudado e tende a mudar cada vez mais com mulheres ocupando cargos de cientistas, pesquisadoras e professoras dentro das universidades e das instituições federais. Eu percebi isso durante a minha formação como bióloga e consigo ainda hoje perceber isso como aluna do mestrado na Fiocruz”, comenta Millena.
Segundo o documento “Em direção à equidade de gênero na pesquisa no Brasil”, lançado no ano passado pela Elsevier-Bori, o percentual de mulheres entre os autores de publicações científicas cresceu de 38% para 49%, entre 2002 e 2022. Com 49% da produção científica de autoria feminina, o Brasil é ainda o terceiro país entre os monitorados com maior participação feminina na ciência, atrás apenas da Argentina e de Portugal.
“Quando se seleciona apenas as publicações nas áreas tradicionalmente associadas à Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática (STEM no acrônimo em inglês), o crescimento do percentual de mulheres também é claro, tendo passado de 35% para 45%”, aponta o documento.
Para Millena, a presença de mulheres na instituição em que atua, a Fiocruz, é massiva, o que contribui para a superação de desafios do campo científico
“Estar cercada por mulheres de referência nas ciências também é uma forma de lidar com os desafios que muitas profissões enfrentam. Consigo ter essa visão hoje, por ter tido essa vivência, ter ao meu redor cientistas, pesquisadoras e professoras que contribuíram muito para a minha formação e para essa visão de que esse lugar é nosso, que é ocupado por nós mulheres e que deve ser ocupado sempre”, finaliza a pesquisadora.