O legado popular dos soldados brasileiros que combateram o nazifascismo na Europa durante a 2ª Guerra Mundial deve ser reivindicado pela esquerda atualmente. Essa defesa é feita pelo historiador José Luiz Del Roio.
Histórico militante comunista e ex-senador na Itália, ele conversou com o Brasil de Fato nesta sexta-feira (21), data em que a vitória das tropas do Brasil na Batalha de Monte Castelo completa 80 anos.
Citando a atuação da Força Expedicionária Brasileira (FEB) no norte da Itália, Del Roio relembrou dos comunistas brasileiros que se alistaram por razões ideológicas antifascistas e por proximidade com a antiga União Soviética (URSS).
“Ninguém sabia que eles eram comunistas, porque o movimento comunista estava proibido no Brasil, mas havia muitos. Inclusive, por exemplo, o tenente Salomão Malina, que recebeu a Cruz de Combate de Primeira Classe, a maior condecoração do Exército brasileiro, era um comunista”, destaca.
O envolvimento direto do Brasil na Segunda Guerra Mundial começou a partir de 1942, quando o governo do então presidente Getúlio Vargas declarou guerra à Alemanha nazista e à Itália fascista. No entanto, o envio de tropas ocorreu apenas em 1944, quando 25 mil soldados são deslocados em sua grande maioria ao fronte italiano.
“A Linha Gótica que atravessava a Itália, logo abaixo de Bolonha, era uma parte difícil de romper por conta das montanhas altas e geladas. O grande valor dos soldados brasileiros foi ter combatido ali durante o inverno”, relembra Del Roio.
Foi nessa região onde ocorreu a principal batalha envolvendo tropas brasileiras, no chamado Monte Castelo. De novembro de 1944 até fevereiro de 1945, os “pracinhas” – como eram chamados os combatentes brasileiros – tentaram romper as linhas formadas por tropas nazistas que impediam o avanço de todo o contingente Aliado que combatia naquela região.
“Eles tiveram que suportar meses de trincheiras geladas e o fizeram com valor, isso precisa ser dito”, aponta Del Roio.
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Camponeses e negros
No entanto, para além do teatro de operações, há elementos políticos e sociais importantes para o historiador como, por exemplo, a questão racial que aproximou soldados brasileiros e estadunidenses.
“Curiosamente, [os ‘pracinhas’] estavam ao lado da 10ª Divisão de Montanha norte-americana, sabe por quê? Porque era uma divisão negra e o Exército norte-americano, como era muito racista, resolveu segregar essas tropas e colocar ‘negros com negros’, porque afinal de contas havia muitos negros nas nossas tropas brasileiras”, disse.
Um outro aspecto interessante, segundo Del Roio, foi o relacionamento com a população italiana, que foi “muito fraterno”. “Aquela população italiana era uma população pobre, camponesa. Os nossos soldados eram quase todos pobres e muitos eram camponeses. Então eles se encontraram nos termos de classe e deixaram uma imagem muito boa”, afirmou.
O historiador ainda denuncia uma “tentativa de apagamento” da importância dos soldados da FEB na guerra, já que o governo Vargas teria se sentido ameaçado por eles.
“Nós não podemos esquecer que nos frontes em que a FEB combateu também haviam muitos guerrilheiros, os chamados partisanos, que eram todos comunistas, e eles tiveram contato intenso”.
Para Del Roio, a luta dos “pracinhas” é um “legado que pertence à esquerda”.
Leia a entrevista completa:
Brasil de Fato: Pouco ou nada se fala sobre o ponto de vista popular da participação do Brasil na 2ª Guerra Mundial. O que você poderia destacar sobre o perfil social dos “pracinhas”? Quem eram esses soldados, de qual classe social vinham e de quais contextos regionais?
José Luiz Del Roio: O Brasil havia se empenhado com os EUA de mandar 100 mil combatentes. A ideia era mandar para a França, uma decisão tomada em 1943. Mas como esse exército de 100 mil homens tinha que estar ligado aos EUA, ele deveria ter mais ou menos a mesma estrutura física dos soldados norte-americanos e nós não conseguimos encontrar 100 mil soldados desse tipo no Brasil.
Havia muitos doentes e fracos, porque a população brasileira era doente, faminta, afetada pelo subdesenvolvimento. Então esse número foi reduzido a 50 mil, o que também não foi possível, chegando ao total de 25 mil brasileiros enviados à guerra. E quem eram esses combatentes? Havia dois tipos: o primeiro era um pequeno grupo de soldados que podemos dizer que eram profissionais, já faziam parte do Exército.
Além disso, houve uma participação de intelectuais que se dispuseram a ir à guerra e que eram quase todos comunistas. Eles se dispuseram a ir para combater o nazifascismo alinhados com o Exército soviético, da então União Soviética.
Mas eles se alistaram e formaram parte das tropas da Força Expedicionária Brasileira (FEB) ou fieram parte dos chamados partisanos?
Eram da FEB, claro. Ninguém sabia que eles eram comunistas, porque o movimento comunista estava proibido no Brasil, mas eram muitos. Inclusive, por exemplo, o tenente Salomão Malina, que recebeu a Cruz de Combate de Primeira Classe, a maior condecoração do Exército brasileiro, era um comunista.
Ali estava também o historiador Jacob Gorender, enfim, vários. Mas isso era um pequeno grupo. O resto era formado por gente muito popular. Era uma parte representativa do povo brasileiro que ia um pouco por ideologia, um pouco por aventura e um pouco por dever à pátria. Esse era o contingente brasileiro.
Qual foi o impacto da vitória brasileira em Monte Castelo para o desenrolar da guerra?
A Linha Gótica que atravessava a Itália logo abaixo de Bolonha, entre os dois mares [Mediterrâneo e Adriático], era uma parte difícil de romper por conta das montanhas altas e geladas. O grande valor dos soldados brasileiros foi ter combatido ali durante o inverno de 1944. Curiosamente, eles estavam ao lado da 10ª Divisão de Montanha norte-americana, sabe por quê?
Porque era uma divisão negra e o Exército americano como era muito racista resolveu segregar essas tropas e colocar “negros com negros”, porque afinal de contas havia muitos negros nas nossas tropas brasileiras. Enfim, o grande valor foi os soldados brasileiros terem passado quatro a cinco meses naquelas alturas onde faz um frio terrível. Então eles tiveram que suportar meses de trincheiras geladas e suportaram com valor, isso precisa ser dito.
Há um outro aspecto interessante que é o relacionamento com a população italiana, que era de alto nível, era muito fraterna a convivência. Aquela população italiana era uma população pobre, camponesa. Os nossos soldados eram quase todos pobres e muitos eram camponeses. Então eles se encontraram nos termos de classe e deixaram uma imagem muito boa. Enfim, quando houve a ruptura das linhas inimigas, os brasileiros combateram, mas todo o fronte avançou e era um fronte vasto, e os alemães nem perceberam quem era brasileiro ou não. Ou seja, a batalha de Monte Castelo pode não ter sido uma batalha fantástica, mas teve a característica do comportamento do soldado brasileiro de alto padrão e muito combativo.
Alguns historiadores falam em uma tentativa de apagamento do caráter popular do envolvimento brasileiro no conflito. Você identifica esse movimento? Por que ele ocorre?
Sobre isso eu digo o seguinte: a população brasileira à época ficou tão empolgada com os seus ‘pracinhas’ que viram na FEB a democratização do país. Eles esperavam os soldados da FEB como libertadores do Brasil. Por essa expectativa que se criava no país, a FEB é dissolvida ainda em maio de 1945, lá mesmo, na Itália, exatamente para esses soldados não voltarem como FEB, organizados.
Então se tentou fazer um apagamento imediato, porque, afinal de contas, os brasileiros também haviam entrado em Milão, em Turim, em território francês, todas regiões que poderiam ser reivindicadas. Mas o governo brasileiro, comandado por Getúlio Vargas, estava aterrorizado com a FEB. Nós não podemos esquecer que nos frontes em que a FEB combateu também havia muitos guerrilheiros, os chamados partisanos, que eram todos comunistas, e eles tiveram contato intenso. Então a FEB era vista pelo governo brasileiro como algo muito perigoso e houve, sim, um apagamento.
Qual é a importância de relembrar a vitória em Monte Castelo e por que as esquerdas devem reivindicar esse episódio histórico e olhar para ele com um viés popular?
Sem dúvida a esquerda brasileira deve reivindicar. Esse é um legado que pertence à esquerda. Nós tivemos muitos oficiais de esquerda, sobretudo na Força Aérea Brasileira, a FAB, que teve comandantes presos e torturados após o golpe de 1964. Então a esquerda tem que reivindicar porque os nossos soldados eram, em sua maioria, voluntários, populares, que foram combater o nazifascismo. E, temos que dizer, se saíram muito bem, dentro das condições precárias sob as quais eles atuaram. Foi um grupo extremamente heroico.