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Tarifa Zero no DF: entre a desconfiança e amargura, a vitória – parte 1

Este artigo analisa em três textos, a partir de um resgate histórico, a proposta de Tarifa Zero aos domingos e feriados recentemente anunciada pelo atual governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha (MDB-DF). As transformações recentes da política de transporte são o foco desse primeiro texto.

O dia 14 de fevereiro de 2025 foi surpreendente na política de mobilidade do Distrito Federal. O atual governador, Ibaneis Rocha (MDB-DF), anunciou que a partir do dia 1º de março será implementada a Tarifa Zero no transporte coletivo aos domingos e feriados. A medida foi anunciada como uma fase de testes para estudar a viabilidade da política ser universalizada para todos os dias da semana.

O anúncio surpreende porque o grupo que atualmente ocupa o Governo do Distrito Federal (GDF) sempre atuou publicamente contra a ideia de qualquer gratuidade na mobilidade. Desde 2019, quando do início de sua primeira gestão, o atual governador teve postura pública contrária ao passe livre estudantil e ridicularizava qualquer proposta de ampliação das gratuidades, tendo chamado a Tarifa Zero de proposta inviável e eleitoreira. Por isso, o anúncio repentino deixou muita gente surpresa, desconfiada e também reticente quanto à proposta. Todas estas impressões estão corretas.

Este artigo busca compreender a proposta de tarifa zero a partir da história das lutas sociais em torno do financiamento da mobilidade pública, do histórico da construção da pauta no Distrito Federal, uma análise da proposta e dos desafios que ela gesta a quem luta para que o transporte seja público de fato. Será uma reflexão um pouco longa, dado o caráter de resgate histórico. Porém trata-se de uma investigação necessária para apreender as nuances da medida em busca de definir como agir daqui pra frente.

Transformações recentes da política de financiamento do Distrito Federal

O financiamento do transporte coletivo do Distrito Federal está na fórmula atual como consequência dos conflitos vinculados ao transporte. Ele é resultado direto das manifestações e ações diretas de movimentos sociais que, fechando ruas, ocupando órgãos públicos, fazendo manifestações diversas, modificaram o setor. Apesar destas mudanças, porém, as estruturas, concepções gerais e formas de organização do setor permanecem direcionadas à exploração do serviço para a segregação espacial e lucro empresarial.

O transporte no DF, desde sua fundação nos anos 1960 até a virada do século, era financiado somente por meio da tarifa paga por usuários e usuárias. Ela era calculada baseando o custo do sistema dividido pelo número de pessoas que utilizam o serviço. Mesmo as gratuidades e meias-passagens estudantis estavam diluídas no valor geral das tarifas. Os aumentos de tarifas seguiam índices inflacionários ou aumentos dos preços dos insumos (gasolina, trabalhadores e manutenção), com sucessivos reajustes no período da virada do século.

A partir das mobilizações do começo dos anos 2000, protagonizadas pelo Movimento Passe Livre, a fórmula passou a mudar. Após o amplo conflito em torno do aumento de passagens do ano de 2006, a política de aumentar o lucro do transporte mudou de natureza. Ao invés de aumentos regulares de passagens, passaram a utilizar fórmulas indiretas de ampliação do lucro: seja aumentando isenções de impostos, realizando financiamentos para renovação de frota com verba internacional ou tentativas de perdão de dívidas.

Esta transição nas formas de financiamento do lucro empresarial aconteceu entre o último mandato no GDF de Joaquim Roriz (PMDB-DF), entre 1999 e 2006 e o único de José Roberto Arruda (DEM), de 2007 a 2009. Enquanto o primeiro fez sucessivos aumentos de tarifa enfrentando manifestações regulares, o segundo congelou as tarifas investindo nas formas indiretas de aumento. Um marco final deste processo foi, no ano de 2009, a implementação do Passe Livre Estudantil, que simultaneamente cedia à pauta dos movimentos sociais mas, ao mesmo tempo, criava o precedente de subsídio constante e direto do governo aos empresários.

Havia uma questão de fundo: Arruda tinha interesses em reeleição e o transporte era o setor em que seu governo era pior avaliado. Os empresários demandavam aumento de tarifas que prejudicaria sobremaneira seus planos. A implementação do passe livre estudantil, tal qual foi proposta, agradava a usuários e, simultaneamente, aumentava irregularmente o valor recebido pelos empresários, pois ela duplicava na passagem integralmente paga pelo GDF o um terço do valor já embutido na passagem de demais usuários do transporte.

“As estruturas, concepções gerais e formas de organização do setor permanecem direcionadas à exploração do serviço para a segregação espacial e lucro empresarial”. Foto: Toninho Tavares/Agência Brasília

Financiamento Frankenstein

Esta situação criou uma forma de financiamento Frankenstein, desorganizada e com diferentes fontes sem estabelecimento claro de interlocução entre elas. O financiamento passou a ser dividido de forma desorganizada entre tarifa, desoneração e subsídios a gratuidades, obviamente sem nenhuma regulação clara e favorecendo diferentes negócios escusos. Após alguns questionamentos do ministério público, pressões populares e debates, surgiu a fórmula de financiamento até hoje em curso no DF: a das tarifas públicas e técnicas.

Implementada por meio de licitação, a fórmula atual de cálculo do transporte faz, por meio de um cálculo baseado no Índice de Passageiros por Quilômetro (IPK) dividido pela estimativa de custo geral do sistema acrescida de uma porcentagem de lucro para os empresários, um valor geral da tarifa do Distrito Federal para cada região onde ele opera. Este valor, normalmente, é alto – por exemplo de dez a doze reais. Esta é a chamada tarifa técnica. O governo passou a definir, então, a tarifa usuário, ou tarifa pública, que é o valor que pagamos nas passagens – atualmente R$ 5,50. A diferença entre o valor que pagamos nas passagens e a tarifa técnica é paga pelo GDF às empresas. Esta é a natureza do subsídio público ao transporte coletivo. No caso das gratuidades, por exemplo, o GDF paga às empresas toda tarifa do transporte.

Entre 2011 a 2014, no governo Agnelo (PT-DF), continuamos uns tantos anos sem aumentos diretos da tarifa usuário. Porém, em 2013 e 2014, após a realização da licitação, ocorreram sucessivos aumentos da tarifa técnica sem qualquer consulta pública. O lucro das empresas de transporte foi ampliado em muito pelos repasses diretos feitos pelo governo.

A vitória sobre os aumentos de tarifa foi, nesse sentido, parcial: a passagem deixou de aumentar diretamente para o usuário para passar a ser negociada secretamente no orçamento público. Tratou-se, enfim, de uma fórmula política que tentou resolver o conflito econômico por meio da conciliação de classes, onde o estado assume os valores do lucro do transporte sem operar na sua fórmula exploratória.

Já entre 2015 a 2018, o governo de Rollemberg (PSB-DF), ao invés da colaboração de classes anterior, assumiu uma postura neoliberal mais arisca de privatizações de empresas públicas, austeridade na economia e aumento de tarifas públicas. Neste sentido, ele adotou a postura pública de acabar – ou reduzir o máximo possível – a diferença entre a tarifa técnica e a tarifa usuário.

Para tanto realizou vertiginosos aumentos da passagem em 2015 e 2017; tentou atacar o passe livre estudantil por meio de supostas fraudes de estudantes (que depois descobriu se tratar de uma quadrilha que envolvia servidores públicos, empresários da bilhetagem e do transporte coletivo); iniciou tratativas com horizonte de privatizar o sistema metroviário.

Aquele governo enfrentou grandes manifestações, ocupações variadas, greves de diversas categorias e enorme insatisfação social. Perdeu toda sua popularidade e moral pública por ter piorado a vida do Distrito Federal em favor dos ricos especuladores e sua agenda golpista.

Ibaneis Rocha foi eleito em 2018. Na foto, está ao lado do ex-governador Rodrigo Rollemberg. Foto: Tony Winston/Agência Brasília.

Eleito em 2018, Ibaneis (MDB-DF) disse, entre outras coisas, que modificaria a política de transportes de Rollemberg. Porém em seu primeiro mês de governo realizou uma frustrada tentativa de restringir o passe livre estudantil. A proposta de acabar com a universalidade da gratuidade para estudantes foi devidamente derrotada pelos movimentos sociais que, com um conjunto de contundentes ações de rua, mantiveram e construíram condições de futuras ampliações da política. À época de sua derrota, Ibaneis afirmou que seguiria combatendo o passe livre, pois era contra gratuidades por uma questão ideológica.

No início de 2020, o GDF realizou um novo aumento das passagens, cuja proeminente resistência popular foi suplantada pela crise da pandemia de COVID-19. A política de isolamento social decorrente do período ocasionou crise de financiamento das empresas, dado que houve severa redução no número de usuários (ou seja, de tarifas pagas).

Neste sentido o governo adotou, como forma de manter os lucros das empresas, a política de créditos suplementares regulares de forma a garantir suas margens de lucros. Estes recursos são regularmente aprovados na Câmara Legislativa (CLDF) a partir de excesso de arrecadação. Ou seja, para além da tarifa técnica, Ibaneis institucionalizou um novo financiamento extra por meio do orçamento público. A soma total dos valores dos Créditos Suplementares desde 2020 até o momento ultrapassa R$ 1 bilhão. Em novembro de 2024, por exemplo, a CLDF aprovou um valor de R$ 200 milhões.

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*Paíque Duques Santarém é antropólogo, urbanista e militante do Movimento Passe Livre e do Observatório das Metrópoles.

**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.

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