No livro Literatura brasileira contemporânea: um território contestado, Regina Dalcastagnè faz-nos pensar que, apesar do aumento de publicações, o campo literário brasileiro ainda é fechado e, por vezes, excludente, uma vez que sempre houve, por parte dele, tendência ao apagamento das produções literárias destoantes do aceito hegemonicamente.
A autora reflete, desse modo, sobre a quase ausência, no cânone literário nacional, de grupos socialmente excluídos que, apesar dos desafios, não deixaram de escrever e de publicar suas obras. Ela considera, ainda, que pensar a literatura brasileira contemporânea é estar consciente de um conjunto de problemas cujas raízes apresentam vários desdobramentos. Dentre eles, estamos em um país lastreado por desigualdades sociais, racismo, misoginia, homofobia etc. Nesse contexto, faz-se necessário, para produzir literatura, a criação de estratégias capazes de burlar os espaços de privilégio, constituídos hierarquicamente, nos quais se sobressaem forças em disputa. Adentrar esse campo conflituoso, cerceador e restritivo, não é fácil. Quem ousou (e ousa) destoar das determinações do cânone poderá sofrer tentativas de apagamento.
Desde a primeira edição do livro mencionado, certamente, houve mudança. Na atualidade, vários nomes têm se consolidado nessa literatura em desenvolvimento, obras literárias de grupos minoritários têm sido aclamadas, prêmios literários têm revisto suas diretrizes e o mundo digital tem democratizado a propagação de obras literárias.
Apesar disso, estamos longe da resolução do problema, pois observamos que: 1) existem debates em torno do que é aceito (ou imposto) pelo mercado editorial; 2) artistas da palavra, em um país de poucos leitores, precisam fazer certas “concessões” para entrarem no “campo literário”; 3) políticas públicas ainda são insuficientes e, quando surgem, criam dificuldades burocráticas ou apontam, por vezes, gerenciamento inadequado por parte de órgãos competentes; 4) existem debates sobre o ato de escrever que tratam de questões estéticas versus questões éticas; 5) a internet, que pode ser uma aliada para a democratização das artes, figura mais como uma “terra sem lei”, isto é, ela veicula informações que podem direcionar o olhar mais para a imagem de quem escreve, do que para a obra que é escrita.
Nesse mar de incertezas, com a chegada de um novo milênio atormentado por problemas climáticos, crises políticas globais e uso tecnológico em larga escala, temos produzido literatura. No Brasil, país pouco afeito à valorização da leitura, temos produzido poesia, prosa e drama. Há uma quantidade significativa de artistas dizendo, corajosamente, que é possível tornar o mundo melhor pela apreciação da palavra esteticamente trabalhada.
Neste início de século, no Brasil das desigualdades persistentes, é possível dizer, sim, que a literatura prossegue, com toda força, em sua simbólica jornada de fabulações salvíficas. Seja na oralidade, seja na escrita, nossas três matrizes culturais têm nos proporcionado caminhos expressivos. Temos questionado, ainda, as hegemonias e construído espaços para propagar nossas produções literárias — isso é notável!
Para mim, a literatura brasileira contemporânea é um baile assimétrico no qual dançam vozes que não aceitam silenciamentos impostos, tampouco exclusões acríticas, e que, portanto, não suportam visões cerceadoras, discursos excludentes e moldes conteudístico-temáticos definitivos. Nesse processo em plena criação, existem forças em movimento que têm mostrado a existência de uma literatura que se faz carne e habita entre nós — quem sabe consigamos defini-la futuramente!
* Émerson Cardoso é doutor, mestre, especialista e graduado em Letras. Pesquisador em Literaturas de Língua Portuguesa e Francesa, Professor e Escritor. Publicou, dentre outras obras, os livros: O baile das assimetrias (2022), Jornadas (2023) e Romanceiros (que recebeu o I Prêmio Literário Demócrito Rocha de 2024). Organizou Juazeiro tem artistas, Juazeiro tem poesia: manifesto poético (2024).
** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Para receber nossas matérias diretamente no seu celular clique aqui.