A presença maciça de sambas-enredo com temáticas de religiões de matriz africana no Carnaval carioca deste ano, não é uma mera “coincidência”, mas sim “um movimento”, segundo o compositor Cláudio Russo, que, neste ano, compôs o samba da escola Paraíso do Tuiuti, em homenagem à primeira mulher trans do Brasil, Xica Manicongo. Das 12 escolas do grupo especial, ao menos nove tratarão do tema.
Segundo Russo, do final da década de 1990 até meados da década de 2000, o Carnaval do Rio de Janeiro foi abastecido por enredos patrocinados por “municípios e estados que bancavam os desfiles”. “Depois, passou a grandes empresas. Teve um ano em que o Salgueiro e a Beija-flor fizeram o mesmo enredo, que era a história da aviação, cada uma patrocinada por uma grande empresa aérea”, explica.
“Isso acabou. Os enredos patrocinados hoje são muito escassos e raros. Isso possibilitou esse movimento que acontece hoje, não só das escolas, mas dos carnavalescos no Rio de Janeiro. Grande parte é formado em artes plásticas, geralmente na Escola de Belas Artes da UFRJ [Universidade Federal do Rio de Janeiro], com uma formação acadêmica que possibilita trazer esse tipo de enredo”, completa Russo.
O compositor é o convidado desta semana no BdF Entrevista, gravado no final de janeiro, antes dos desfiles oficiais das escolas de samba do grupo especial do Carnaval carioca. Russo explica que os presidentes das escolas gostavam das temáticas sobre a África e suas religiões por serem carnavais que exigiam “pesquisas muito menos profundas e ficava mais barato, porque os materiais eram em palha, fantasias, alegorias”.
“Mas depois esse movimento cresceu e chegou onde estamos hoje. E percebeu-se que os jurados gostam deste tipo de enredo. A bolha do Carnaval ama esse tipo de enredo e, geralmente, este tipo de enredo não dá samba ruim. São sambas que falam muito com a nossa história. E eu acho muito importante este movimento, porque ele faz um reencontro do Carnaval com a sua matriz africana”, completa.
Na conversa, Russo revela ainda como foi o processo de composição do samba-enredo de 2025 da Tuiuti e como descobriu a história de Xica Manicongo, a primeira travesti não indígena do Brasil, que foi sequestrada da região do Congo e permaneceu na condição de escrava na Bahia. Como uma quimbanda de seu povo, era vista pelo colonizador como um homem com traços femininos.
“Eu sou formado em história na UERJ [Universidade Estadual do Rio de Janeiro], tenho pós em história da África e, por algum descuido, eu não conhecia a história de Xica Manicongo. Antes de sair a sinopse da Tuiuti, o carnavalesco Jack Vasconcelos me ligou e disse ‘este samba você tem que fazer, mas eu tenho que estar ao seu lado, eu tenho que estar próximo a você’”, conta Russo.
No século 16, Xica Manicongo trabalhou como sapateira. Por resistir aos padrões da época, foi perseguida pelo Santo Ofício da Igreja Católica, mais conhecido como Inquisição, sob pena de ser queimada viva em praça pública. A história de Manicongo não tem registros na história brasileira e só ganhou visibilidade quando o antropólogo Luiz Mott descobriu escritos do Santo Ofício, que registravam a presença de Manicongo.
O compositor comenta ainda sobre como a cultura do Carnaval se transformou nos últimos anos. Segundo ele, o evento, “de um tempo para cá, tornou-se cultura de gueto, cultura de resistência. O Carnaval já foi muito maior do que é hoje. Hoje em dia são só dois meses antes para acontecer o Carnaval. Antes não era espetáculo, era cultura popular mesmo. As escolas desfilavam por existir, hoje elas existem para o desfile”, aponta.
Confira abaixo alguns trechos da entrevista, que pode ser acompanhada na íntegra no vídeo acima.
Brasil de Fato: Cláudio, você é o compositor do samba-enredo da Paraíso do Tuiuti desse ano “Quem tem medo da Xica Manicongo?”. O samba fala sobre a primeira mulher trans do Brasil, conhecida por esse nome após pesquisadores descobrirem essa história de resistência dos tempos mais sombrios que vivemos. O samba-enredo está lindo e tem uma mensagem muito potente, não é?
Cláudio Russo: Pô, cara, obrigado. O samba, assim – eu já começo a me emocionar -, é meu e do Gustavo Clarão, que também é um compositor renomado, foi presidente de escola e mora hoje nos Estados Unidos. Quando saiu a sinopse da Paraíso do Tuiuti eu já fiquei muito mexido com a história. Eu sou formado em história na UERJ, tenho pós em história da África e, por algum descuido, eu não conhecia a história de Xica Manicongo.
Então, eu comecei a pesquisar muito e já queria escrever logo, começar a letra. Foi aí que o carnavalesco Jack Vasconcelos, que sempre foi muito meu amigo, a gente sempre se falou muito – mas ele sempre foi muito discreto – e um dia ele me liga, antes de sair a sinopse. Eu achei estranho porque a gente não batia papo em WhatsApp e ele começou a falar: “Este samba você tem que fazer, mas eu tenho que estar ao seu lado, eu tenho que estar próximo a você”.
Isso nunca aconteceu. Eu até senti essa falta, de mostrar para ele o desenvolvimento de outros sambas que já fiz para a Paraíso do Tuiuti – eu acho que é o sétimo. Em determinado momento, estranhando as perguntas, eu falei: “Jack, tem alguém mandando você fazer essas perguntas ao seu lado?”. E ele falou: “Tem”. Eu respondi: “Já que tem alguém mandando você fazer essas perguntas, posso conhecer essa pessoa? É espiritual?”. Ele respondeu que era e, a partir daí, eu me anulei, não fiz mais nada.
Porque quando eu me encanto com o enredo, a letra sai muito rápido. Às vezes, os enredos que eu não me encanto demoram. Quando saiu a sinopse, gostei muito e fui num terreiro de catimbó e quimbanda, levado pelo Jack – eu não conhecia. Eu sou criado num terreiro de umbanda pela minha avó paterna, mas eu estava afastado, estava muito tempo sem praticar nada. E a gente sabe que umbanda não tem nada a ver com o catimbó e quimbanda, a não ser pelos elementos de matriz africana.
Quando eu cheguei lá, minha cabeça virou. Eu conheci uma entidade chamada Dona Praia e ela consta na letra do samba. Ela foi me contando tantas coisas que eu percebi isso que você falou em off – eu não poderia fazer um samba com uma narrativa comum, começo, meio e fim. Eu percebi que a Xica era muito mais do que um personagem da história. É uma ideia.
Durante um período, os sambas-enredo eram muito focados nessa narrativa. Há uma narrativa, fica marcado durante a passagem da escola na avenida, mas minha impressão é que se perde muito da identidade do samba real, mais tradicional, que a gente via décadas atrás…
E Zé, ainda tem esse negócio, mas já mudou muito a narrativa. Vou dar um exemplo: vamos falar sobre a cidade de São Paulo e tem o começo do povoamento, tem os grandes lances políticos, revoltas, revoluções, até chegar ao dia atual. Geralmente é isso. Só que este enredo da Xica não cabia uma narrativa simples e comum. E foi conversando com essa entidade que eu verifiquei isso. Fui aprendendo muita coisa e, ao lado dela, estava Bruna Maia, que é uma trans e me contou muita coisa.
Ela falou assim: “Cláudio, não tem um dia que eu saia na rua e que eu não sofro pelo menos um lance de preconceito, pelo menos um olhar inquisitório, uma pessoa saindo de perto”. Eu fui pegando essas experiências, tanto espiritual quanto material da Bruna para fazer o samba, porque o preconceito é muito forte, cara.
Eu sou homem, hétero, e eu aprendi muito com isso. Eu sempre fui muito vigia, de não ter preconceito, mas todo mundo tem um pouquinho de preconceito com alguma coisa e eu aprendi muito, muito mesmo para fazer esse samba. E quando a gente fala: “Só não venha me julgar pela boca que eu beijo, pela cor da minha blusa ou pela fé que eu professar”, a gente quer falar das três maiores formas de preconceito.
A Xica Manicongo foi condenada pela inquisição, o Santo Ofício da Igreja Católica, mas não parece tão distante do que a gente vê hoje em dia. O Brasil é o país que mais mata pessoas trans. No último dia 27 de janeiro, saiu um relatório da Antra, a Associação Nacional de Travestis e Transexuais, apontando que 122 pessoas foram mortas em 2023, a maior parte delas mulheres negras. É o 16º ano consecutivo que o Brasil lidera esse ranking, uma realidade absurda…
É, o Brasil tem uma forma de preconceito muito distinta. É aquele preconceito velado, que você conversa com uma pessoa apontando que ela está sendo preconceituosa e ela responde: “Não, eu não sou preconceituoso, eu tenho amigos gays, eu tenho amigos pretos”. São esses tipos de relações que levaram 500 anos do Brasil achando que é uma coisa e não é. Nós somos extremamente preconceituosos. Nós somos um povo injusto e desigual com as minorias.
É muito triste. E voltando à conversa com a Bruna Maia e a Dona Praia, um dia elas me perguntaram assim: “Você sabe quem sofre mais preconceito nesse universo de tantos preconceitos?”. Eu falei: “É o preto” – até porque eu sou filho de uma preta e sou neto de uma preta, casado com uma mulher preta. Ela respondeu: “Não, Cláudio, não é o preto, é a mulher trans preta. Ela tem o estereótipo que esse Brasil preconceituoso detesta. Mas o samba da Tuiuti veio para reafirmar o que a gente vive, em cada verso desse samba, mas que vamos continuar lutando”. Eu acho isso muito importante.
Quando a gente olha para o Carnaval de avenida, as pessoas trans não estão tão inseridas assim. O Paraíso do Tuiuti vem esse ano para quebrar essa escrita? Não só no samba, mas também na avenida?
A Tuiuti vai quebrar todos esses paradigmas. Nós estamos recebendo grande contingente de trans e também da comunidade LGBT. Muita gente que está longe da bolha do Carnaval, gente que se liga um pouquinho mais no Carnaval no final de dezembro e começo de janeiro, pode não saber, mas nós que vivemos o Carnaval o ano todo, nós temos que agradecer muito às trans, lésbicas, homossexuais, gays.
O Carnaval, de um tempo para cá, tornou-se cultura de gueto, cultura de resistência. O Carnaval já foi muito maior do que é hoje. Hoje em dia são só dois meses antes para acontecer o Carnaval. Antes não era espetáculo, era cultura popular mesmo. As escolas desfilavam por existir, hoje elas existem para o desfile.
Tudo acontecia em volta da quadra da escola, a formação de sambista, aquele dia a dia. E quem manteve acesa essa chama, até hoje, é a comunidade LGBTQIAPN+. O garoto de classe média não quer mais saber de Carnaval, o garoto pobre do Rio de Janeiro, até pelas escolas privilegiarem mais o espetáculo do que a escola mesmo, a formação, as raízes, ele quer saber mais do hip hop, trap.
A comunidade LGBT está apoiando muito, muito, a Tuiuti e cantam com uma garra, com uma vontade impressionante, é emocionante. Toda segunda-feira as ruas de São Cristóvão ficam lotadas como há muito tempo eu não vejo. E eles apoiam muito o samba da escola.
Você escreve no samba “que o Brasil da terra plana, tenha consciência humana”. A gente vive um momento de muita fake news, de verdades e mentiras relativas, as pessoas não acreditam mais na história como ela é e tentam reescrevê-la a partir de seu próprio ponto de vista. Qual é a importância de a gente recorrer à história para olhar para o nosso presente e para o futuro também?
Eu acho que a história é fundamental. Se você perceber, nós vivemos uma era em que o extremismo está enraizado em toda a sociedade, principalmente a ocidental, não é só no Brasil. Mas parece que o Brasil gosta de repetir os mesmos erros e eu acho que somente um ensino da história poderia alertar as pessoas, desfazer essa coisa de hoje. Todo mundo virou professor de história, inventa a sua história.
Foi bom você citar esta frase do samba, que é o segundo verso, que dizem que não precisava. E o que eu explico para eles é que o Brasil hoje é o país que mais mata trans no mundo. Nesse trecho eu só peço que tenha consciência, que pare de se matar por preconceito. Eu não declaro guerra, eu peço que tenha consciência, só isso.
Só que, para eles, isso é a morte. Que eles possam ir nos livros de história. Eles são muito contra a universidade e a universidade também alerta a gente. Eu vejo você aí com uma estante cheia de livros e isso é um muito simbólico, porque isso é ensinamento. E por isso que a gente precisa da história.
Neste ano, nove das 12 escolas de samba do grupo especial do Rio de Janeiro trazem temáticas de religiões de matriz africana, ou homenageiam personalidades negras. Isso é uma coincidência ou é um movimento?
Isso é um movimento, não é uma coincidência. Um breve histórico é que, no final da década de 1990 e boa parte da década de 2000, nós vivemos o auge dos enredos patrocinados. Então, eram municípios, estados que bancavam os desfiles. Depois, passou a grandes empresas. Teve um ano que o Salgueiro e a Beija-flor fizeram o mesmo enredo, que era a história da aviação, cada uma patrocinada por uma grande empresa aérea.
Isso acabou. Os enredos patrocinados hoje são muito escassos e raros. Isso possibilitou esse movimento que acontece hoje, não só das escolas, mas dos carnavalescos no Rio de Janeiro. Grande parte é formado em artes plásticas, geralmente na Escola de Belas Artes da UFRJ, com uma formação acadêmica que possibilita trazer esse tipo de enredo.
No começo, os presidentes gostavam porque achavam que Carnaval com cunho africano tinha pesquisas muito menos profundas e ficava mais barato, porque os materiais eram em palha, fantasias, alegorias. Mas depois esse movimento cresceu e chegou onde estamos hoje. E percebeu-se que os jurados gostam deste tipo de enredo. A bolha do Carnaval ama esse tipo de enredo e, geralmente, este tipo de enredo não dá samba ruim.
São sambas que falam muito com a nossa história. E eu acho muito importante este movimento, porque ele faz um reencontro do Carnaval com a sua matriz africana. A gente sabe que o Carnaval do Rio de Janeiro é muito amparado pelo samba que veio de Angola, do semba, e chegou aqui nas senzalas.
Eu não quero dizer que o Carnaval é africano, não. O Carnaval do jeito que a gente conhece veio da Europa. Mas no Rio de Janeiro ele tem muito, muito, de fundamento africano, principalmente nas escolas.