Nos últimos dias, o prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo (MDB), e o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), estão compondo uma comitiva gaúcha que tem visitado cidades da Holanda para entender como o país, que tem partes do seu território abaixo do nível do mar, aprendeu a lidar com as inundações e a conviver com as cheias de seus rios. Em suas declarações, ambos têm manifestado deslumbramento com diversas medidas adotadas no país europeu. No entanto, algumas das propostas saudadas pelo prefeito e pelo governador não são novidade em Porto Alegre e no Rio Grande do Sul. Pelo contrário, já foram adotadas ou foram sugeridas, inclusive, em diversas publicações do Sul21. Contudo, elas estão na contramão do modelo de cidade que vem sendo adotado pelas últimas gestões de MDB e PSDB na Capital.
Na terça-feira (26), o prefeito Melo fez uma postagem saudando o exemplo de Roterdã em adotar o sistema chamado de “cidade-esponja”. “A 2ª maior cidade dos Países Baixos nos traz ensinamentos por ser uma cidade-esponja. Ou seja, foi desenhada urbanisticamente com estruturais naturais alagáveis para conter a água até que ela seja absorvida pelo lençol freático”, postou o prefeito.
No último sábado (22), ele já tinha saudado um programa holandês (“Room for the river”), que prevê obras para ampliar o espaço de águas nos territórios para evitar inundações.
As “praças d’água” de Roterdã também foram destacadas pelo governador Eduardo Leite como um exemplo a ser seguido. Estas praças são espaços públicos multifuncionais que servem como áreas de lazer em dias secos e como bacias de retenção durante chuvas intensas. Um exemplo disso é a praça Benthemplein, que pode armazenar até 1.800 metros cúbicos de água da chuva, aliviando o sistema de drenagem da cidade.
“O que vimos em Rotterdam nos mostra um caminho possível para cidades como Porto Alegre. As soluções aqui não são apenas técnicas, mas também sociais e urbanísticas, integrando a água à vida da cidade em vez de tentar apenas contê-la”, afirmou Leite.
Também na visita do dia 22, Leite foi mais enfático ao saudar a “mentalidade” da população local. “Os neerlandeses mudaram sua mentalidade ao longo do tempo. Em vez de lutar contra o rio, apenas construindo diques cada vez mais altos, eles aprenderam a dar espaço para a água. São soluções que combinam engenharia com respeito à natureza”, destacou Leite.
Os conceitos de cidade-esponja, contudo, não são novidade no Rio Grande do Sul ou em Porto Alegre. O ex-diretor do Departamento de Esgotos Pluviais (DEP) Vicente Rauber destaca que, na década de 90, Porto alegre já executava várias bacias de amortecimento, principal instrumento do conceito de cidade-espoja.
Em entrevista ao Sul21 em maio passado, o professor Júlio Cesar da Silva, do Centro de Pesquisas e Estudos sobre Desastres da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), também pontuou que uma das formas de repensar as cidades é as direcionar para o conceito de “cidades-esponja”, que prevê que a melhor forma de se lidar com enchentes e inundações é ter áreas que podem absorver a água, seja por meio de lagos artificiais e açudes, seja por meio de áreas verdes com camadas de solo permeáveis, entre outras medidas.
“Pensar em resolver o problema passa por melhorar o nosso balanço hídrico artificial. O que é melhorar o balanço hídrico artificial? É equilibrar a quantidade de água que cai no local em relação à quantidade de água que filtra, a quantidade de água que evapora e a quantidade de água que escoa”, disse, na ocasião.
No entanto, o conceito de cidade-esponja conflita com empreendimentos que vêm sendo autorizados e mesmo defendidos pelo Executivo municipal, como são os casos das concessões da Orla e do Parque Harmonia e do bairro planejado na Fazenda do Arado, na zona sul da Capital, entre outras áreas da cidade que poderiam cumprir esse papel e são atacadas por projetos apoiados pelo governo Melo.

Em dezembro de 2021, a Câmara de Vereadores aprovou o projeto que alterou o regime urbanístico da antiga Fazenda do Arado, convertendo o regime de Ocupação Rarefeita incidente sobre parte de uma gleba definida como Área de Proteção do Ambiente Natural (APAN) e Área de Produção Primária em Área de Desenvolvimento Diversificado. Na prática, o objetivo foi permitir a construção de um bairro planejado, que prevê a urbanização de 426 hectares às margens do Guaíba, uma área equivalente a 11 vezes o tamanho do Parque Farroupilha. Em 22 de agosto de 2023, o Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano Ambiental (CMDUA), comandado pela Prefeitura, aprovou o Estudo de Viabilidade Urbanística (EVU) para o empreendimento.
O engenheiro ambiental Iporã Brito Possantti, integrante dos coletivos Preserva Arado e Ambiente Crítico, explica que a área da Ponta do Arado — área de preservação — e da Fazenda do Arado é justamente uma dessas áreas inundáveis da cidade, como se viu nas enchentes de 2023 e 2024. Considerada de restingas arenosas, à semelhança de Tapes, na Lagoa dos Patos, e Itapuã, também às margens do Guaíba, caracteriza-se por uma enseada bem recortada, em que o vento e as ondas do Guaíba vão criando “degraus”, que variam de um a dois metros de altura. “Ali é muito plano, a água se acumula muito fácil. Se tu cava, tu rapidamente encontra a água subterrânea, ela tá muito próxima de aflorar. Inclusive, em muitos pontos, está sempre aflorando a água subterrânea”, afirmou.
Rualdo Menegat, coordenador do Atlas Ambiental de Porto Alegre, pontua que a área serve justamente para ajudar a escoar a água que se acumula no Guaíba durante eventos climáticos extremos. “A água não escoa, e vai para onde? Ela vai ocupar as regiões alagadiças, alagáveis e inundáveis da margem dos corpos d’água. E essas regiões acabam cumprindo um importantíssimo papel de amortecimento da inundação. Quer dizer, elas são como um local em que há uma possibilidade de estocagem de água, o que é muito importante porque, do contrário, essa água pode então extravasar para inundar regiões habitadas. Por isso, as regiões alagadiças nas margens dos corpos d’água são muito importantes”, disse Menegat.
Já no Parque Harmonia, o prefeito Melo “brigou” para que as obras realizadas pela concessionária no local fossem adiante mesmo após decisão judicial que tentou barrar a remoção de 435 árvores, o que representa 31,7% das 1.361 árvores que existiam no parque.
“Lamento profundamente a decisão liminar de interromper os avanços no Parque Harmonia. Vamos recorrer, e espero que o Judiciário reconsidere. Precisamos romper essa lógica histórica posta contra o desenvolvimento, que já assistimos no processo da Orla – agora uma referência. Não existe devastação. A população precisa saber que as 103 árvores removidas, respeitando as regras ambientais, serão compensadas com o plantio de 500 nativas. Esse movimento, às vésperas do Acampamento Farroupilha, é um prejuízo à cidade e não pode comprometer essa tradição”, disse o prefeito, em 2023.
Vencida a batalha judicial, as obras resultaram na substituição de áreas de vegetação por piso de concreto. O Parque Harmonia foi completamente alagado durante a enchente de maio de 2024, bem com seus arredores. Por outro lado, em janeiro deste ano, uma medição realizada pelo Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais (InGá) em 4 de fevereiro constatou que o piso instalado no Parque Harmonia chegava à temperatura de 61ºC, enquanto os gramados sombreados por árvores ao redor do parque beiravam 31ºC.

Em artigo publicado no Sul21 nesta quarta, o engenheiro civil e historiador Luiz Antônio Grassi também chamou a atenção para as contradições entre as medidas adotadas na Holanda que são saudadas pelo governador Leite e o que é ignorado por ele no RS.
“Parece que os senhores ficaram impressionados com algumas medidas de gestão ambiental como a reserva de espaços, nas bacias do rio Reno e do rio Mosa, como áreas de inundação natural, que não devem ser usadas para habitação ou outros usos. E também devem ter ficado impressionados com o sistema de diques que protegem as populações – principalmente das águas do mar, mas alguns também dos dois rios que tem seus cursos inferiores desaguando em território neerlandês. Fala-se que o senhor e as demais autoridades vão implementar a participação da sociedade, através de conselhos ou comissões, para a definição de soluções para as enchentes e as estiagem espelhadas no modelo que estão visitando e os impressionou”, diz Grassi.
Contudo, o engenheiro pondera que o Rio Grande do Sul já foi pioneiro em adotar uma lei específica para a gestão das águas (Lei 10.350/94), que ele aponta que não está sendo cumprida, e em implementar a gestão compartilhada por meio dos Comitês de Bacias.
“Nosso Estado já conta com as estruturas de participação social, tanto da sociedade civil quanto com representantes dos setores usuários da água: os Comitês de Gerenciamento de Bacia Hidrográfica (criados oficialmente pela referida lei). Aliás, é bom lembrar que apenas a Região Hidrográfica do Guaíba tem uma área de 84.763 km², o dobro da área dos Países Baixos (41.865 km2). A bacia hidrográfica do rio Ibicuí, integrante da Região Hidrográfica do Uruguai, somente ela, tem mais de 35.000 km². E a Lei Gaúcha das Águas criou vinte cinco comitês de bacia, abrangendo todo território riograndense, de mais de 280.000 km²”, diz. “Portanto, senhor governador, não é necessário criar ‘conselhos regionais’ para precaver-se de novos eventos climáticos. A primeira medida da Secretaria da Reconstrução Gaúcha (SERG) deveria ser, necessariamente, acolher e ouvir os comitês das bacias atingidas pelo evento climático”, complementa.
Artigo original publicado em Sul21.