Pablo tinha 72 anos. Há mais de 20 anos fazia ponto, cuidando de carros e falando com todo mundo. Vivia por aí. Nas ruas, principalmente, ou em algum hotelzinho que acolhe desafortunados da zona Norte. No último ano passou definhando. Emagreceu, tinha um monte de doenças e morreu há alguns dias.
‘Pablo está morrendo na rua’ era uma das matérias do Brasil de Fato no dia 1º de julho de 2024. Doente, velho, vivia à margem de tudo. Era falastrão, sempre com bom humor, mas foi perdendo as forças. Muita gente tentou ajudar, chamou entidades públicas de socorro, mas não teve a sorte de ser acolhido em lugar permanente. Nos últimos tempos vivia enrolado em coberta na avenida Nova York, zona da badalação noturna à espera de alguma caridade. Não conseguiu nem se levantar. Morreu e foi enterrado como indigente.
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As pessoas que o ajudavam diariamente com algum troco ou comida estranharam a sua ausência nas últimas semanas e só agora descobriram a sua morte. Algum lamento. Nada mais que isso. É assim que está acontecendo na plena desumanidade em que grande parte da sociedade vive. Cada um cuidando dos seus butiás, para não caírem do bolso.
Chamavam ele de Pablo e Pablito, mas ninguém viu a sua identidade. Conheci ele desde os seus tempos de guardador noturno de carros dos frequentadores dos bares da região, entre 24 de outubro e Mata Bacelar, no bairro Auxiliadora, em Porto Alegre.
Passava frio, levava chuva no lombo, andava molhado. Fumava um monte, bebia “toneladas”, o que aparecesse. Não tinha cuidados com si próprio e nem tinha ninguém para cuidá-lo. Não tinha casa, para onde voltaria depois do trabalho. Dizem que gostava de jogar nestas casas clandestinas de apostas de azar. Mas nunca ninguém confirmou.
Pablo mudou a sua rotina há uns dez anos. Passou a fazer ponto durante o dia. Trocou de turno. As noites o castigavam demais. Continuava fumando e bebendo. Toda vez que algum conhecido passava, repetia o refrão “hoje está bom para uma gelada”, ou “paga um vício aí”. Nunca reclamou da vida. Nem de futebol falava. Dizem que em épocas de juventude era garçom de restaurante. Mas ninguém da região lembra exatamente qual restaurante.
Em tempos de eleições era Lula e o inelegível ao mesmo tempo. Gritava “Lula lá” ou “fora Bolsonaro”, dependendo da cara de quem passava e de qual ideologia imaginava que a futura vítima do seu “ataque” seguia.
Muitas pessoas na rua – seja lá quem for – já ouviram suas histórias. Contam que tinha um filho em Pelotas. “Uma hora dessas vou para lá”, dizia, mas a viagem nunca foi confirmada. Ninguém sabia se era verdade. “Sou aposentado”, mas parece que ele não vislumbrou esta hipótese para melhorar a sua vida. “Ganho bolsa família” também parece não ser verdade.
Advogado
Aposentado ganhava uma coisa ou outra, nunca as duas. Um advogado, que não quis ser identificado, garantiu que ele retirava o seu salário de aposentado e o entregava pessoalmente ou pagava o seu hotelzinho. Mas não senti firmeza.
Há uns seis anos, passou a contar uma história otimista sobre a sua vida. Tinha uns R$ 100 mil para receber do governo, não se sabe a origem da dívida, nem ele consegue explicar direito. Disse que tinha um advogado que cuidava do caso. Morreu sem receber. Na rua. Sem dinheiro para comprar remédios. Verdades, delírios, ilusões ou confusão mental? Tudo parecia divagação na vida de Pablo. Não há nada convergente como um mais um, igual a dois. As histórias se repetiam, pareciam ter sido gravadas na sua memória, sem uma organização clara.
A vontade de viver se esvaiu lentamente nos últimos tempos. Muitas ligações foram feitas para órgãos municipais, responsáveis pela área social e de saúde, para o SUS e outras. Mas ninguém respondeu positivamente. Ninguém apareceu para socorrê-lo. Ou se apareceu, não o recolheu. A sua fragilidade era espantosa.
O dono de um restaurante self service, olhando-o nas últimas semanas, antes do seu desaparecimento e morte, depois de lhe servir um cafezinho, disse: “Parece a crônica de uma morte anunciada”, nome de um livro do colombiano e Nobel de Literatura Gabriel Garcia Márquez. E completou: “Ele incomodava muito meus clientes, mas nunca fez mal a ninguém. Sempre na dele. Teimoso. Não aceitava sugestões para se tratar, cuidar da sua saúde. Uma pena”.
Todo mundo sabe, até mesmo o próprio Pablo sabia, que a situação não anda nada favorável. Há milhares de Pablos por aí. Porto Alegre é uma cidade pobre, por mais que possam dizer o contrário. A desigualdade é espantosa. Basta dar uma olhadinha para bairros como Sarandi, Humaitá, Lami e dezenas de vilas, favelas, becos e brejos espalhados por todos os cantos. Todos têm centenas de Pablos. Muitos morrem nas ruas todo o santo dia. Pablo é mais um caso. Um velhinho que morreu na rua, sem assistência, sem uma palavra mais animadora e sem o carinho de um familiar.
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