Ameaçado, o tão esperado Carnaval em Canoas, a terceira cidade mais populosa do Rio Grande do Sul, mobiliza a comunidade para que aconteça neste ano. Os carnavalescos, os povos de matriz africana e o movimento LGBTQIA+ denunciam a Prefeitura do município por preconceito racial e religioso e homofobia.
De acordo com nota da Federação Nacional das Escolas de Samba (Fenasamba), o secretário de Cultura e Turismo, Pinheiro Neto, em reunião com a Associação das Escola de Samba de Canoas (Aesc), colocou como condição para ceder espaço para os desfiles que os enredos não tenham temas de matriz africana, negros e LGBTQIA+.
Confira a reportagem em vídeo:
“Tal atitude, além de revelar um inaceitável preconceito e intolerância religiosa, é crime, tipificado no artigo 208, do Código Penal Brasileiro”, prossegue a nota de repúdio. “O Carnaval, a maior manifestação cultural do povo brasileiro, é uma festa preta, de resistência, de preservação de nossa ancestralidade, democrática e inclusiva. Não iremos permitir que atitudes como essas calem nossa voz e silenciem nossos tambores”, conclui.
O presidente da Associação das Escolas de Samba de Canoas, Noé Oliveira da Silva, relata a conversa realizada entre ele e o vice-presidente da Aesc, Daniel Scott, com o secretário. “Ele [o secretário] leu o projeto e depois ele começou a impor que os temistas de samba enredo não fizessem tema-enredo religioso, porque os tema-enredos religiosos eram um tema-enredo das religiões afro.

Segundo ele, foi exigida uma aprovação prévia dos temas. “[Disse] que era para gente pegar, pedir para todos os presidentes, eu pedir para os presidentes, para eles me darem os tema-enredos e levar até ele para ele ver qual os tema-enredo que dava. Aí ele começou a falar, nos trouxe aquela conversa do pessoal LGBT que tinha desfilado em Porto Alegre, tinha desfilado de fio dental, que aquilo ali ele não aceitaria porque o prefeito era cristão, ele também era cristão.”
Noé afirma que contestou. “Aí a gente pegou e disse, eu disse para ele, ‘secretário, eu não posso fazer isso porque os temistas, eles têm livre pesquisa para fazer e geralmente eles respeitam as outras religiões’.”
Mobilização ganhou força

Para garantir a realização do Carnaval na cidade, movimentos populares, religiosos e sindicatos realizaram um tamboraço contra a intolerância em frente à Prefeitura, na quarta-feira (26).
Os manifestantes ressaltaram a relevância cultural do evento, principalmente no momento de retomada após a tragédia das enchentes em maio do ano passado no estado. E pediram a exoneração do secretário por causa das declarações.
Natália Klippel, que faz parte da coordenação do Fórum LGBT+, defende que o Carnaval é sim necessário. “Algo que vai devolver a autoestima do povo. É uma festa que abraça as comunidades periféricas. É toda uma questão cultural, uma questão política e uma questão ancestral.”
“Mas o que é inaceitável diante de todas essas propostas é justamente o veto de que os samba-enredos mencionassem a comunidade LGBTQIAP+, ou as religiões de matriz africana. Isso é inconstitucional, isso é inaceitável”, afirma.
“Nós somos a resistência”
Quem também reforça a defesa da realização do evento é a presidenta da Associação Afro-Umbandista de Esteio e do Rio Grande do Sul, Marli Teresinha Pereira Alves, que repudia a tentativa de impedimento. “Nós somos a resistência e nós não vamos permitir que eles matem a nossa fé, matem nosso axé. Que ele seja intolerante com os negros, com os gays, que é a homofobia, tá? Que ele seja intolerante com as terreiras, com os afros umbandistas.”
“A gente está contra essa intolerância religiosa e o Carnaval para nós é o que mostra a nossa ancestralidade. Nós queremos a exoneração do secretário da Cultura, que foi intolerante nas suas palavras, nas suas atitudes. Hoje ele está negando”, pontua.
Durante o ato, representantes da Prefeitura de Canoas levantaram a possibilidade de uma comitiva ser recebida para tratar do assunto, mas isso não aconteceu. O vereador do município pelo PT, Gabriel Constantino, foi mediador entre as partes e destaca a ampla mobilização da comunidade e o envolvimento de deputados estaduais, federais e representantes do Ministério da Cultura frente ao caso.
Segundo Constantino, a comunidade cobra resoluções antirracistas. “No entendimento da luta antirracista, não é somente com atitudes e com falas que tu resolve o problema do racismo, mas com atitudes concretas, com encaminhamentos resolutivos. E é isso que a gente espera da Prefeitura de Canoas, um encaminhamento antirracista, que combata o racismo e não seja condescendente com essas falas, com esse posicionamento aqui na cidade.”
Ministério Público vai investigar o caso

As declarações do secretário de Cultura também foram levadas à Delegacia de Polícia de Combate à Intolerância (DPCI). E as denúncias chegaram ao Ministério Público Federal (MPF), que instaurou um processo para investigar a situação e, assim, dar os encaminhamentos necessários.
“Desde, em primeiro lugar, garantir que o compromisso do município em ceder espaços e outras contrapartidas, para que saia o Carnaval, seja feito sem qualquer restrição. Esse é primeiro [encaminhamento], colocar a situação na sua normalidade”, afirma o procurador regional dos Direitos do Cidadão do MPF, Enrico Rodrigues de Freitas, que instaurou a notícia de fato.
Ele pontua que inicialmente a notícia de fato não tem apuração criminal. Contudo, lembra que não pode haver discriminação e preconceito. “Se comprovando isso, tem as consequências criminais, porque racismo é crime no Brasil.” E que pode também vir a ter “reparações no plano cível, porque isso também gera um dano, não é? Um dano moral coletivo às pessoas negras e à população LGBT+”.
Prefeitura não compareceu em audiência pública
Depois da manifestação, uma audiência pública sobre intolerância foi realizada na Câmara Municipal de Canoas. A Prefeitura foi convidada, mas não enviou representantes. O encontro também discutiu as responsabilidades sobre um incêndio num depósito da Prefeitura que provocou a destruição de imagens sagradas do povo de matriz africana.
O presidente da Associação das Escolas de Samba de Canoas, Noé Oliveira, resume o sentimento da comunidade. “A nossa sociedade, ela está precisando de cultura, né? Um povo sem cultura não tem cidadania. E parece que não querem que o povo de periferia tenha cidadania.”
O que diz a prefeitura
O secretário Pinheiro Neto foi convidado a dar seu posicionamento, através da assessoria de imprensa do município. Porém o órgão enviou uma nota ao Brasil de Fato RS, em que contesta essa versão dos fatos.
A Prefeitura de Canoas disse que o secretário de Cultura e Turismo, Pinheiro Neto, nega ter estabelecido condições relacionadas a temas para ceder espaço para a festa. E que “jamais houve qualquer tipo de censura ou condições estabelecidas”, “apenas um pedido de atenção e respeito às religiões em geral”.
Também afirma que “os organizadores do Carnaval não formalizaram projeto solicitando os espaços públicos para alguma data”. E que não é possível destinar dinheiro público ao Carnaval por causa de necessidades urgentes de investimentos na Saúde, mas se coloca à “disposição para apoiar a realização das festividades com a cedência do local”.
Diz ainda que a gestão do prefeito Airton Souza, do PL, “é comprometida em governar para todos os canoenses e preza pela liberdade, o que inclui a livre manifestação artística, cultural e religiosa no Carnaval”.
