Você é um cara que quer usar saia, peruca e batom na rua na única época em que pode fazer isso sem medo? Então arrase! O legal do carnaval é poder se soltar das correntes da caretice que reinam no resto do ano. Se um homem acha graça de tirar sarro do estereótipo que a sociedade exige que ele reproduza, então que o faça!
Mas por que isso se tornou uma questão, então?
Porque muitos homens que se vestem com adereços designados socialmente como “femininos” consideram que estão se fantasiando de mulheres ou, mais frequentemente ainda, de travestis. E as mulheres (sejam cis ou trans) e as travestis não somos saias, perucas, batons. Ou seja, não existe “se vestir de mulher”, porque mulheres não são roupas e não são as roupas, meramente, que definem o gênero de uma pessoa.
Além disso, os mesmos homens que acham que se fantasiam de mulheres ou de travestis aproveitam o cenário carnavalesco para performar fetiches que têm com essas pessoas ou reforçar estereótipos sobre elas, em vez de desconstruir estereótipos sobre a própria masculinidade. É uma atitude regressiva, quando poderia fazer parte de um momento libertador.
Então a questão não deveria ser “pode ou não pode?”. Deveria ser: “com qual intenção?”.
É claro que as pessoas não querem ter que pensar sobre suas próprias ações, mas, veja, é interessante a gente fazer isso de vez em quando. Se você usa saia porque acha que vai arrasar na pegação, então se joga! Se é porque acha que vai ressaltar suas curvas, se joga! Se é porque você acha graça subverter a ideia de que homens só podem se vestir de um jeito e mulheres só podem se vestir de outro, então, puts!, conquistou meu “coraçaum” no bloquinho. Mas se é porque acha engraçado imitar e tirar sarro das travestis, que sofrem agressão todos os dias no Brasil… Então vá se lascar!
Há formas e formas de brincar sem que se precise ofender.
Você poderia se vestir de Rogéria, de Fernanda Torres (tá no hype), de Dilma (essa eu já vi nos blocos), por serem figuras icônicas ou que você tenha referência. Amo quando o deputado Tarcísio Motta sai às ruas cariocas de Mafalda, por exemplo. Porque isso, sim, é fantasia e criatividade. Você pode só botar uma peruca zoada e um batom borrado, também. Mas lembre-se, isso não é a mesma coisa que uma mulher ou uma travesti e não é legal mimetizar grupos vítimas de violência estrutural.
Reproduzir estereótipos vinculados aos povos indígenas, fazer black face, ser branco e usar peruca mimetizando um cabelo afro… Não é legal.
E isso não é cagar regra, é só pedir pra que todo mundo possa brincar junto. E pra brincar, tem que ser agradável.
No fim das contas, vale sempre aquela máxima que a gente ensina – ou deveria ensinar – para as crianças: piada só tem graça quando ninguém se sente ofendido com ela. Faça piada com sua própria masculinidade, ponha em cheque o binarismo de gênero, seja livre para se libertar das próprias amarras!
Que o carnaval seja um espaço de convivência mútua! Que se subverta as regras, em vez de reforçá-las pela violência recreativa contra quem já vive a violência todos os dias. Porque travestis, assim como mulheres cis ou trans, não são fantasias!
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*Lucci Laporta é assistente social, militante transfeminista e dirigente do coletivo Juntas e do Psol-DF.
** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato – DF.
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