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Critérios de análise da situação mundial

A situação mundial está determinada, em primeiro lugar, por uma ofensiva contrarrevolucionária das frações burguesas mais antioperárias, racistas, misóginas, obtusas e arcaicas

Tempo e maré não esperam por ninguém.

Vamos andando e vamos vendo.

Provérbios populares portugueses

  1. O mundo ficou muito mais complicado no último mês. Então é bom lembrar que as análises devem ser uma exploração de hipóteses a serem verificadas e corrigidas. Mas existem três níveis de avaliação da situação mundial, em graus distintos de abstração. Fazer uma análise exige separar partes de um todo. É necessário este exercício de distinção dos diferentes tipos de conflito como pré-condição para uma percepção das dinâmicas da evolução das contradições inseridas em uma totalidade em movimento: (a) o primeiro nível é o estudo da relação de forças, grosso modo, entre capital e trabalho no processo de luta de classes que assume a forma de enfrentamento, na época que vivemos de declínio histórico do capitalismo, entre revolução e contrarrevolução; (b) o segundo é a análise dos conflitos entre Estados na luta pelo domínio mundial em um período de crescentes antagonismos entre impérios, em função da lenta decadência da supremacia norte-americana e crise da Tríade, e ascensão da China; (c) o terceiro é o estudo dos antagonismos políticos no interior da classe capitalista na etapa histórica atual, em que a disputa entre partidos de extrema-direita neofacistas e liberais atingiu um patamar que coloca a ameaça de desmoronamento dos regimes democráticos burgueses. A apresentação nesta ordem de sequência não é aleatória. Ela obedece a uma hierarquia de importância, embora haja inter-relações. Tudo que existe é uma unidade de contrários. Mas a totalidade é maior do que a soma das partes. O que é decisivo é identificar qual é a dinâmica ou a tendência que prevalece na conjuntura.
  2. Seria um grave erro metodológico considerar somente um destes conflitos na análise. Mas não foi incomum na esquerda a redução da avaliação das transformações no mundo às contradições no sistema internacional de Estados na época em que o campismo da URSS [União das Repúblicas Socialistas Soviéticas] era dominante. Seria excelente não o repetir. A maior parte dos partidos comunistas apoiou a invasão soviética da Tchecoslováquia em 1968, ainda quando a revolução era liderada em Praga por uma ala do partido comunista liderada por Dubchek, embora rompido com Moscou. Não nos deveria surpreender que, em 1981 na Polônia, quando a classe trabalhadora se colocou em movimento, a influência da esquerda fosse residual, e Walesa à frente do Solidariedade olhasse com mais esperança para o Vaticano do que para a classe trabalhadora do ocidente. Mesmo depois da restauração capitalista conduzida por uma fração da direção do partido comunista da Rússia encabeçada por Gorbatchev desde 1986, substituída por uma ala ainda mais radical liderada por Boris Yeltsin em 1991, o campismo ainda sobreviveu como uma lente ideológica. A transferência da aposta de uma retaguarda estratégica para a China veio ocorrendo, lentamente, mas tem arrastado, ingenuamente, uma parcela da esquerda, inclusive no Brasil. Este reducionismo adquire uma forma dramática na nova situação porque a presença de Trump na Casa Branca, durante o primeiro mês de mandato, deixou claro que Washington está realizando um giro estratégico que tem como objetivo a preservação da posição de supremacia contra a China, e o imperialismo norte-americano está com a iniciativa. Nestas condições, a esquerda não pode cometer o erro simétrico do campismo, e desconhecer as contradições entre os diferentes imperialismos. A luta em defesa da Venezuela contra os EUA foi um laboratório. Numa situação reacionária será necessário explorar as diferenças entre as principais potências para ganhar tempo e acumular forças, sem sacrificar a independência de classe. E a geografia importa. Estamos na América Latina, o “quintal” estratégico dos EUA. É bom não esquecer quem é o inimigo mais perigoso.
  3. Mas foi equivocado, também, o reducionismo da análise mundial a uma avaliação exclusiva do peso das mobilizações de massas, em especial quando elas eram expressões de baixo nível de consciência dos antagonismos entre capital e trabalho. A luta de classes foi sempre a bússola marxista para oferecer sentido às inflexões na relação social de forças. Mas a crise de influência da esquerda, das tendências mais moderadas às mais radicais, levou a que o sentido de mobilizações de massas tenha estado em disputa, desde o início. Nem toda mobilização que arrasta setores de massa cumpre um papel progressivo. A burguesia também se apoia em mobilizações de massas, ainda que excepcionalmente. Não fosse o bastante, se a luta política se inicia dentro de fronteiras nacionais, quando ela transborda de dimensão e adquire impulso revolucionário, a tendência à expansão é incontível, e as classes e suas organizações e lideranças não são os únicos sujeitos. A posição dos Estados vizinhos e das potências incidem de forma devastadora. O destino de todas as revoluções do século XX dependeu, em grande medida, da correlação política e militar de forças na arena mundial. Por último, estamos diante um fenômeno político novo que, por necessidade de analogia, definimos como neofascismo. Nos últimos dez anos a avalanche da extrema-direita veio crescendo de forma avassaladora, e veio ficando evidente que uma parcela da classe dominante, nos mais variados continentes e países, defende a necessidade de regimes autoritários, ainda que admitam eleições. Foi assim no Brasil e na Argentina, mas também na Índia ou nos EUA, na Turquia ou nas Filipinas e, em toda a Europa: a fratura está escancarada. Esta terceira variável não pode ser desconsiderada. Há uma luta em curso entre os capitalistas sobre qual entre os dois regimes políticos de dominação, a democracia liberal ou regimes bonapartistas, corresponde melhor à defesa de seus interesses estratégicos. A esquerda não pode ser cega diante deste perigo. Não somos neutros, nem indiferentes. Estamos no campo da democracia liberal em unidade na ação, nas ruas e nas eleições com as fissuras burguesas contra a ameaça neofascista.
  4. A situação mundial está determinada, em primeiro lugar, por uma ofensiva contrarrevolucionária das frações burguesas mais antioperárias, racistas, misóginas, obtusas e arcaicas. Estamos em uma difícil defensiva em 2025, depois do esgotamento de duas ondas revolucionárias regionais, a primeira na América do Sul e a segunda no Magreb e mundo árabe, e da maior crise econômica mundial do capitalismo desde 1929, que precipitou uma recessão internacional por uma década. Evitaram uma depressão como nos anos 30 do século passado, mas a etapa mundial teve uma inflexão reacionária na relação social de forças. O conceito de um mundo em desordem é um “escapismo” jornalístico. Não porque não haja desordem. Mas porque não esclarece quem está na ofensiva e quem está na defensiva. Desde, pelo menos, 2015, quem está na ofensiva é a contrarrevolução. Essa dinâmica foi estabelecida, em grande medida, porque o capitalismo conseguiu ganhar tempo histórico, salvando de um crash catastrófico o sistema financeiro internacional através da estratégia de relaxamento monetário ou Quantitative Easing: a emissão de títulos de dívida pública, em escala inédita de trilhões de dólares, que permitiram, até a pandemia de 2020, a prática de taxas de juros básicos negativos, sem explosão inflacionária. Essa excepcionalidade foi possível porque, simultaneamente, foram implementados ajustes reacionários de desmantelamento das conquistas sociais do pós-guerra na educação, saúde, habitação e transportes públicos que favoreceram o aumento da exploração do trabalho e da desigualdade social. A votação do Brexit no Reino Unido em 2015 foi uma sinalização subestimada. A extrema-direita conquistou, pela primeira vez em um dos países chaves da Tríade, o apoio da maioria da classe trabalhadora britânica para um projeto que responsabilizava os imigrantes como culpados pelo seu empobrecimento. Em 2016, Trump foi eleito com a incrível proposta da construção de um muro entre os EUA e o Mexico. A não reeleição de Trump em 2020, depois do Black Lives Matter, e de Bolsonaro em 2022, depois do desastre sanitário da pandemia, não inverteram a dinâmica histórica.
  5. Derrotas foram sendo gradualmente acumuladas, em especial nos países onde a organização sindical dos trabalhadores era mais elevada, e tiveram consequências desoladoras. Neste processo ocorreram desigualdades porque, apesar da crescente mundialização, não há sincronia na luta de classes. Mesmo no contexto de uma situação reacionária, há lutas e resistência. No Chile, se abriu uma situação pré-revolucionária em 2019, o primeiro grande ascenso de massas desde 1973 que colocou em movimento uma nova geração e culminou com a eleição de Boric. Não foram menores as manifestações na Argélia, mas não conseguiram derrubar o regime. No Líbano, uma explosão democrática de massas denominada Thaoura (ou revolução, em árabe) teve como centelha o aumento de impostos sobre os combustíveis, e fez tremer o regime político. No ano passado, em Bangladesh, o movimento estudantil acendeu a fagulha de uma greve geral que derrubou um regime há mais de vinte anos no poder. A tentativa de autogolpe na Coreia do Sul foi derrotada por uma reação popular fulminante que incendiou uma greve geral e frustrou a quartelada. Ainda que com muitos limites políticos, em função dos níveis modestos de auto-organização prévios, estas mobilizações expressaram impulso revolucionário e foram gigantescas, imponentes e heroicas. Mas a grandeza destas lutas populares não foi suficiente para inverter o sentido da etapa. O flagelo de mais um genocídio palestino impune é uma ferida que não vai cicatrizar por muitos anos. A Ucrânia não poderá escapar do destino trágico de mais um protetorado das potências, porque não há solução militar para a guerra. Será repartida entre a Rússia e os EUA, associados à União Europeia. Mas, embora esta conjuntura seja terrível, não pode nos fazer deixar de ver que as lutas decisivas são aquelas que estão à nossa frente, não aquelas que ficaram para trás.

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