Em 1988, quando Jodecilda Airola da Silva chegou à casa onde vive até hoje, na rua da Boa Hora, em Olinda (PE), lamentou uma característica pouco comum na cidade mais festeira do estado: “a rua era tranquila demais”, ri a carnavalesca. A inquietação era compartilhada pela maioria dos moradores, que buscaram alternativas para incluir a via no roteiro da festa. “Não era para acabar com a tranquilidade, era para trazer animação”, explica.
Dona Dá, como é conhecida, foi a primeira mulher homenageada pelo Carnaval oficial de Olinda, em 2004, e é idealizadora, ao lado dos vizinhos, do encontro de bois na Quarta-feira de Cinzas. O evento, que reúne agremiações do tradicional brinquedo com raízes africanas e indígenas, acontece sempre na – hoje não mais tranquila demais – rua da Boa Hora e acrescenta um dia de festejos ao calendário dos foliões mais resistentes.
Nesta quarta-feira (5), o ritual ocorreu pela 25ª vez. “Dona Dá, eu vou embora, outros bois estão chegando / Agradeço pela festa e levo meu boi dançando”, canta o mestre Ligeirinho, à frente do Boi Dendê, da cidade de Camaragibe (PE). Também chamados de “boizinhos”, cada grupo possui características distintas em musicalidade e estética, com elementos tradicionais de cada território e, por vezes, referências religiosas de matriz africana. Entre os mais aguardados pelo público anualmente estão Tira-Teima, fundado em 1922, e A Bicharada, puxado pelo cantor e compositor Siba.
Na calçada do número 207, onde vive a carnavalesca de 86 anos, as agremiações apresentam toadas, o boi dança e se curva para a janela de Dona Dá, enquanto os vizinhos distribuem, em seguida, frutas, cachaça e vinho aos artistas. “É assim para agradecer e ajudar na animação da festa”, explica. Em poucas horas, uma multidão de foliões ocupa a rua.
A janela de Dona Dá também é um ponto de destaque durante os demais dias de Carnaval. Entre o sábado e a quarta-feira, as agremiações de qualquer natureza que passam pelo endereço também recebem um troféu diferente a cada ano. Sem distinção. Ela explica que a estratégia de presentear os grupos surgiu ainda antes da festa dos bois, há quase quatro décadas. “A gente elaborou um ofício, assinado por mim, convidando os grupos a passarem pela rua e prometendo uma recompensa para quem viesse. Deu certo”, diz. O ofício segue o mesmo modelo do documento entregue hoje aos grupos.
Em sua primeira edição, no ano 2000, o presente foi uma taça de cerâmica feita por um vizinho da rua. Naquele ano, a renda para os troféus foi obtida a partir de um sarapatel oferecido por Dona Dá e celebrado em festa para pedir contribuições. Em 2025, o troféu homenageia o Elefante de Olinda, clube carnavalesco fundado em 1952.

São dezenas de grupos que participam do desfile. O número exato, segundo a carnavalesca, só é descoberto na hora. A falta de previsibilidade, porém, reforça o caráter espontâneo do evento. “É um momento em que a comunidade brinca com o boi sem grandes limites nem burocracias e também com a certeza de que a festa é feita pelo povo e para o povo. Tem algo de político e de mágico”, observa o folião Rafael Ribeiro, que há seis anos participa da festa.
A calçada é um ponto de encontro
“Em 2004, quando ela foi homenageada no Carnaval de Olinda, eu tinha apenas seis anos. A campanha dela tinha slogan, mas eu preferia dizer que minha avó era a dona do Carnaval de Olinda. E até hoje eu acredito nisso”, brinca Victória Airola, neta de Dona Dá.
Tanto Victória quanto a avó reforçam, porém, que a festa, que também movimenta a maior economia do ano, é apenas uma ponta da construção de comunidade da qual participam em Olinda. “A calçada da minha casa é um ponto de encontro. Tem aniversário de criança, tem tudo. Esta é minha comunidade”, diz a carnavalesca. “Aqui na Boa Hora não tem isso de ser só morador. Todo mundo é irmão, e muita gente tem o mesmo sonho de Carnaval”.

Os festejos da Boa Hora contam, eventualmente, com fomentos da prefeitura da cidade, mas Dona Dá garante que não são esses os recursos que viabilizam os desfiles ou mesmo as refeições oferecidas anualmente aos artistas. “Quando o dinheiro chega, a festa já passou há muito tempo”, destaca. Antes dos editais e fomentos se tornarem mais frequentes, e mesmo hoje como forma de complemento, a comunidade já se organizava com autonomia em busca de recursos para a programação.
A carnavalesca participa, ainda, da organização do bloco Mulher na Vara e promove, nas manhãs do sábado de Carnaval, um café da manhã na rua para receber passistas e foliões do bloco Cariri, um dos maiores da cidade, cujo desfile acontece durante a madrugada. “Eu sigo agradecendo aos que passam aqui na rua para trazer a alegria do Carnaval”, pontua.
“Existe o Carnaval para quem gosta de brincar e o Carnaval para quem gosta de admirar. Tem gente que quer ver as fantasias, as orquestras, ouvir o frevo”, explica Dona Dá, que diz se enquadrar no segundo grupo. “E a melhor parte de Olinda é que não precisa de uma piscina de dinheiro para viver esse momento. Você brinca de todo jeito, porque está na rua. E se está na rua, você brinca”, pontua. “Para acabar com esse Carnaval aqui, vão precisar tentar muito”, conclui.