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Viemos cobrar!

Porque somos mulheres, somos mães de luta. As fantasias nos constituem

Aline Kerber*

Domingo de carnaval. Enquanto cozinho para os filhos, o WhatsApp toca. É minha amiga, aquela com quem assisti Ainda Estou Aqui no cinema, alguém que se tornou ainda mais especial. “Vamos assistir ao Oscar juntas na Cidade Baixa? Vou até Porto Alegre, bora?”

Respiro antes de responder: “Amiga, na sexta-feira, não me senti segura lá. O policiamento estava ostensivo e repressor, o clima sombrio, um estado de alerta e uma imposição de disciplinamento de corpos que querem tristes e alienados.”

Ela segue: “Vi nas redes sociais, mas como pode ter tanta polícia na rua se o prefeito Sebastião Melo (MDB) alegou falta de efetivo como justificativa para não ter carnaval? Isso não fecha.”

Respondo: “Não querem alegria, encontros. Policiamento comunitário dá trabalho e é perigoso para o projeto de autoritários violentos. Tô passando essa! Te ligo se ganharmos o Oscar.”

E liguei. Walter Salles caminhava em direção à estatueta e eu declarei a importância do nosso momento assistindo ao filme juntas, a força da cena Sorriam!. “A Fernanda Torres já ganhou, ela era a protagonista!”, dissemos em uníssono, rindo. “Ela deveria estar naquele palco!” Mas esperávamos ainda o prêmio de Melhor Atriz. Não veio. “Que narrativa estranha, guria. O prêmio da Fernanda é evidente – não como Melhor Atriz, mas como protagonista do Melhor Filme Estrangeiro. Mas lhe faltou estar lá, com seu discurso que não precisa de óculos nem de papel.”

No dia seguinte, 6h50 da manhã, outra mensagem da minha amiga. Um textão. Ela queria assumir como vereadora no dia 8 de março, aproveitando uma decisão nacional do seu partido. Já havia pedido ao vereador para ceder o lugar, mas recebeu uma desculpa esfarrapada. Expliquei as regras, desmenti o argumento dele de que outra mulher de outro partido teria preferência. Ela entendeu e, indignada, respondeu: “Vamos cobrar! Fiz projeto de lei sobre autismo para outro homem, fiz campanha com quase nada de recurso, tive o voto mais barato do partido. Quero meu lugar para lutar com as mães atípicas!”

Sei bem o que isso significa. Fui vereadora pelo Psol em Porto Alegre e conheço a energia e a força de luta que nos movem quando assumimos essas brechas no poder. Mas as condições para as mulheres políticas são quase sempre precárias: pouca assessoria, mandatos curtos, demandas infinitas que só crescem conforme ampliamos mobilização e resistência, e ficamos, não raro, sozinhas e sem as estruturas institucionais para continuar.

Mesmo assim, nossa presença nesses espaços é crucial. Somos apenas 15% no parlamento brasileiro. A desigualdade e a violência de gênero na política são gritantes e também nos afastam desses espaços. E há ainda mulheres que ocupam cadeiras sem representar a luta das mulheres.

A entrada de mais mulheres no parlamento acende esperanças, sobretudo diante de governos antipovo. Mas não basta um homem se dizer de esquerda se reproduz a lógica patriarcal da concentração de poder – até nos dias mais simbólicos como o 8M – e ainda acha que pode nos homenagear.

Faltam dois dias para minha amiga assumir, e o vereador ainda não respondeu se ela estará lá no dia de luta das mulheres. Mas se o carnaval não permitiu a alegria espontânea das ruas em Porto Alegre, segue em alta o desejo entre nós de viver tudo que for possível no tempo que se tem. Porque somos mulheres, somos mães de luta. As fantasias nos constituem. E também são nosso melhor combate, até mesmo na política!

Ver a deputada federal Erika Hilton (Psol-SP) empossada com a faixa de Presidente do Brasil pela Paraíso do Tuiuti na maior avenida do carnaval nos lembra o poder das fantasias para voos altos. Porque não era só fantasia. Era concreto, palpável, visível, estético, em alto e bom som, colorido, musical, político. Uma travesti no topo do poder da maior festa popular brasileira! Erika pulsa vida em potência máxima. E não vem só. Vem com dignidade para todas as vidas, com a luta pelo fim da escala de trabalho 6X1. Corpos matáveis em pleno carnaval televisionados no topo do poder alegre. É isso que queremos! Sem anistia para os golpistas!

Esperança se faz no combate. E ele se dá, inspirada também na escritora moçambicana Paulina Chiziane, Prêmio Camões 2023, na dança – na dança que eu quero dançar! Viemos cobrar! Mas também viemos entregar uma dança com ousadia para ocuparmos os lugares que nos são por direito! Vamos juntas porque este sonho que também é nosso, amiga! Transgressão para sobrevivermos e para estarmos nos palcos da vida – que presta e muito – e nós não podemos esperar o prêmio!

* Aline Kerber é socióloga, presidenta do Conselho Municipal de Educação de Porto Alegre e presidenta de Honra da Associação Mães e Pais pela Democracia.

** Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.

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