6 de março é uma data muito especial para a literatura latino-americana. Talvez mundial. Nessa data nasceu Gabriel García Márquez, o Gabo, mago da escrita, do realismo mágico e de tantas outras formas de literatura. Nascido em Aracataca, na Colômbia, consagrou tanto obras, quanto formas de interpretar o mundo, mas, principalmente. a realidade do nosso continente latino-americano.
Além dos 98 anos de nascimento desse grande escritor, que nos deixou em 2014, completam-se em 2025 os 50 anos do lançamento da obra Outono do Patriarca, que conta a história de um general fictício, autoritário, em um país também imaginário da América Latina. Foi a primeira obra de García Márquez depois de Cem Anos de Solidão.
“Para mim, é um retrato dessa maluquice que é o nosso continente ao longo dos tempos. É verdade, se passa num passado distante, camarada de 100 anos e tal, mas podia ser semana passada”, destaca o escritor, jornalista, tradutor e amigo de Gabriel García Márquez, Eric Nepumuceno, em entrevista ao Conversa Bem Viver, para quem o livro segue atual.
Nepomuceno já traduziu diversas obras de grandes escritores latinos, como o próprio Gabriel García Márquez, e também é autor do livro O Massacre: Eldorado de Carajás – uma história de impunidade.
Para ele, García Márquez pinta, no livro, um pouco do passado da América Latina. “Não vamos esquecer que no discurso dele do Prêmio Nobel, quando recebeu o Prêmio Nobel em 1982, ele diz que: na América Latina, para você escrever ficção, é preciso apelar muito pouco para a imaginação”, afirma.
E destaca o que considera ser o essencial na literatura: “Acho que isso que é a função da literatura: mudar sua maneira de ver a vida, o mundo, e te revelar segredos que você nunca teve e nunca vai ter acesso. Cada um é dono do seu segredo. Por isso, no caso de Cem Anos de Solidão, eu concordo inteiramente com ele. Cada um é dono do seu personagem”, afirma.
Na entrevista, Nepomuceno ainda faz uma revelação: não assistiu e não pretende ver a série da Netflix baseada no livro Cem Anos de Solidão. “Ele foi determinante. Ele jamais permitiu [adaptar o livro]. Então, eu não vi e não vou ver”, disse.
Confira a entrevista.
Gabriel García Márquez trata de uma maneira muito irônica essa história, embora seja um retrato de uma pessoa extremamente opressora, de um general autoritário que comanda o país há mais de 100 anos, é de uma maneira muito graciosa que ele conta essa história. Esse livro que retrata esse autoritarismo latino-americano segue sendo atual, 50 anos após a publicação?
Eu acho que sim, eu acho que sim. O García Márquez tinha uma maneira de ver, não só América Latina, uma maneira de ver a vida e o mundo, que permanecem, permanecem para sempre. Se você pensar o que o Brasil viveu agora, há muito pouco tempo, os quatro anos do ultra-direitista desequilibrado Jair Bolsonaro, a diferença entre ele e o general do autônomo do Outono do Patriarca é que o general era inteligente. Essa é a principal diferença.
Eu acho que nesse livro, o que o García Márquez pinta é um pouco do passado da América Latina. Não vamos esquecer que no discurso dele do Prêmio Nobel, quando recebeu o Prêmio Nobel em 1982, ele diz que: na América Latina, para você escrever ficção, é preciso apelar muito pouco para a imaginação. E ele lembra de um general que foi presidente de El Salvador, que perdeu uma perna numa batalha e mandou enterrar a perna com honras militares. Esse mesmo general mandava cobrir com papel vermelho todas as lâmpadas, à noite, para espantar a morte.
Isso poderia ser perfeitamente um personagem de García Márquez. Mas era a vida real. E o Outono do Patriarca, para mim, é um retrato dessa maluquice que é o nosso continente ao longo dos tempos. É verdade, se passa num passado distante, camarada de 100 anos e tal, mas podia ser semana passada.
O livro é de 1975, depois do Ato Institucional nº5 (AI-5) aqui no Brasil. A gente pode dizer que tem inspiração da ditadura militar brasileira nesse livro?
Eu acho que não, que não é um problema do Brasil. É um problema dos regimes militares de toda a América Latina.Não vamos esquecer o seguinte, o Gabriel García Márquez demorava muito para escrever. E quando ele terminava de escrever, ele demorava muito para revisar. Então, eu não sei quando é que ele começou a escrever esse livro. O fato do livro ter sido publicado depois do AI-5, eu acho que não tem nada a ver.
O Outono do Patriarca poderia ser uma síntese crônica, triste, engraçada de Jair Bolsonaro, com algumas exceções, mas também não fica muito distante de comparar a Donald Trump, não é?
Eu prefiro o ditador do livro, é muito menos perigoso.
E essa obra do Gabriel García Márquez, talvez tenha alguma inspiração também em alguns aliados do próprio Gabo, como no caso de Fidel Castro, que eles foram muito próximos…
Eu acho que de jeito nenhum. Tem nada a ver. Tem nada a ver um com o outro. O García Márquez foi, sim, muito próximo do Fidel. Aliás, de uma proximidade impressionante. Agora, que eu me lembre, posso estar enganado, e ele pode ter mentido para mim, que eu me lembre, eles nunca falaram de política. Eles falavam de livros, falavam de comida, falavam de Cuba, das ruas de Havana. Agora, ele pode ter mentido pra mim, vai saber.
Esse livro foi o primeiro após a publicação de Cem Anos de Solidão. Como que foi esse período da publicação de Outono do Patriarca? Qual era a expectativa que se tinha? Tu achas que o Gabriel García Márquez tinha até um receio de escrever a próxima obra dele, depois de todo o impacto que foi Cem Anos de Solidão?
Eu acho que receio não, eu acho que ele se recolheu… Não vamos esquecer que a editora que publicou Cem Anos de Solidão na Argentina imaginou que o livro seria um grande sucesso. Tanto que a primeira edição foram dois mil exemplares. Ele nunca tinha vendido mais de mil e cem, mais de mil e duzentos livros, exemplares. Primeira edição de dois mil para ele foi um susto.
Tem aquela famosa história que, de verdade, ele não tinha grana para mandar o livro pelo correio. Então a Mercedes [Barcha, viúva de Gabo] empenhou as joias e mandou metade, só deu metade. E, por engano, foi a segunda metade do livro. Aí ela empenhou tudo que tinha em casa, torradeira, secador de cabelo, mala, panela de pressão, empenhou tudo. E aí mandou a primeira metade.
E a editora sul-americana imprimiu seis mil exemplares. O que é um absurdo, ele não tinha vendido isso somando todos os livros, ele não tinha vendido isso na vida. E a editora mandou um cheque para ele de quinhentos dólares da época, que era um dinheirão. E disse que esperava vender aquele seis mil exemplares no prazo de oito meses, dez meses, talvez um ano. Vendeu em dez dias e aí desandou e nunca mais parou.
A última conta que ele me contou, isso foi em 1991, 1992, em castelhano, esse livro tinha vendido trinta milhões de exemplares. Em castelhano perdia pro livro do [escritor espanhol Miguel] Cervantes, o dos Moinhos [Dom Quixote de la Mancha] e o resto, tchau. E perdia também pra Bíblia. Então é um fenômeno, uma loucura.
Eu não sei quanto vendeu o Outono do Patriarca, mas não foi um grande sucesso. Claro que vendeu toneladas e toneladas, mas não foi uma bomba. E depois ele ficou mais um bom tempo sem publicar nada.
Embora Cem Anos de Solidão seja uma aula de história exemplar da formação do nosso continente latino-americano, fazendo denúncias de todo o processo de violação, de colonização. Outono do Patriarca, por mais que ele faça várias metáforas e faça cenários inventivos, ficcionais, um general que não tem nome, de um país que não se sabe qual que é, fica mais evidente do que nunca o retrato desse autoritarismo que vem da Europa, que vem desse colonialismo que ainda persiste. A gente pode falar que o Outono do Patriarca aproveita para escancarar e colocar todos os dedos na ferida, que ele ainda tinha um pouquinho de cuidado, de cautela, em Cem Anos de Solidão?
Eu acho que sim, porque o Cem Anos de Solidão, veja como é que eu considero, é uma grande metáfora sobre a vida. E, de passagem, sobre a América Latina, mas basicamente sobre a vida. O Outono Patriarca tem o foco na América Latina, é diferente. Eu acho que sim, foi uma sequência com um foco, focalizada.
E tu já viu a série que está rodando faz alguns meses, da Netflix, sobre Cem Anos de Solidão?
Não vi e não vou ver. Porque ele negou a vida inteira adaptar isso para cinema. Ele não queria que os personagens tivessem cara. Cada um tem a cara do leitor. Eu imagino um Aureliano Buendía, você imagina outro e esse era o plano dele. E eu entendo, os meninos terem vendido, tudo bem. Divulga a obra, além de ter entrado uma pequena fortuna lá. Pequena, não, uma fortuna. Eu entendo. De repente, se eu fosse filho, faria a mesma coisa.
Mas ele até o fim se negou. E tem uma coisa curiosa: o livro póstumo, Em Agosto Nos Vemos, ele também não queria publicar. Ele já tinha alzheimer avançado, sabia disso, tinha momento de lucidez. É um livro imperfeito, tem repetições, tem frases construídas, faltou uma revisão final. Ele disse que não queria publicar. Eu, se fosse o filho dele, não teria publicado, teria jogado fora o livro. Então ficou uma porta aberta.
No caso do filme e da série de Cem Anos de Solidão, não. Ele foi determinante. Ele jamais permitiu. Então, eu não vi e não vou ver. O meu coronel Aureliano Buendía é um, o do filme é outro.
Você tem uma amizade com Rodrigo García, o filho do Gabriel García Márquez, que tem bastante dessa responsabilidade de seguir com o legado dele, não necessariamente com novas obras, mas de administrar tudo isso. Vocês chegaram a conversar sobre essa história da série, você chegou a ter um papo com ele, pensou em falar com ele?
Não, não, eu e o Rodrigo tínhamos um contato cordial, amistoso. Há mais de vinte anos, era um contato assim: aniversário do Gabo, aniversário da Mercedes, eventualmente, Natal.
Com o Gonzalo [García, o outro filho de Gabo] não, eu tinha muito contato, o Gonzalo dividia a vida dele entre Paris e a Cidade do México, e era muito, muito comum o Gabo me levar pra almoçar na casa dele sábado e o Gonzalo volta e meia, quando estava na cidade do México, aparecia. Então com ele, sim, eu tinha um contato bem mais estreito.
Quando saiu a série, eu parei de falar com os dois. Nunca mais escrevi nem para um, nem para o outro. Mas isso não quer dizer nada, não rompi de jeito nenhum. É que eu fiquei me perguntando: Que que eu vou escrever para eles? Como é vocês autorizaram isso? O que eu vou perguntar para eles? Eu estou deixando passar um tempo, passar essa onda da série, para um dia escrever qualquer coisa: “Como é que vai? Dá notícia, não some”, para o Gonzalo.
Ainda falando um pouco sobre isso, é interessante porque o Gabriel García Márquez sempre teve uma grande inspiração para o cinema, inclusive ele e o Rodrigo chegaram a compor uns roteiros juntos. Mas por que, no caso específico de Cem Anos de Solidão, ele não tinha essa intenção de cinematografar o filme?
Por isso que eu te falei. Ele queria que cada personagem fosse na tua cabeça uma, na minha cabeça outra, na cabeça do meu filho um terceiro. Cada um tem o seu personagem. Como era Úrsula? Para mim, é uma, para você, é outra. Como era Remédios, a bela, aquela que sai voando, que, aliás, é uma história incrível isso, ela sai voando para virar freira porque tinha perdido a virgindade sendo solteira. Como ela era? Era linda, era só bonitinha? Na minha cabeça, era uma, na sua, outra. O corpo dela era legal, era normal, era uma tentação ambulante? Para mim, um, para você, outro. É isso que ele queria.
E ele mexeu muito com o cinema. Não vamos esquecer que ele morava nos Estados Unidos e era correspondente da agência Prensa Latina, que é a agência oficial de notícias do governo de Cuba. E aí teve um problema e ele acabou demitido. Ele e todo mundo que era o escritório da Prensa Latina na ONU. Ele e a Mercedes, grávida, com o Rodrigo, pegaram um ônibus para ir para o México. É uma aventura e tanto. E ali que veio o Cem Anos, começou ali Cem Anos de Solidão.
Um tempo depois, ele foi trabalhar direto como roteirista de cinema. Quem era o parceiro dele? [o escritor mexicano] Carlos Fuentes. Qual foi o primeiro filme que eles adaptaram? Pedro Páramo, do Juan Rulfo. Para mim a maior obra da literatura do continente latino-americano. Então, por um começo desses: você chegar num país desconhecido, sem um tostão do bolso, e trabalhar com Carlos Fuentes, adaptando o Juan Rulfo, o que mais você quer da vida? Só queria que o Fluminense fosse tricampeão, porque mais do que isso é impossível.
E aí foi ficando e ele trabalhou durante muito tempo no México. Mas muito, muito tempo. Eu conheci a casa onde eles moravam. Era uma casa muito boa, num bairro de ricos, muito ricos, na Cidade do México. E dessa casa ele saiu um dia, para ir para Acapulco. E quando começou a pegar a estrada, descer a serra pra Acapulco, pumba, veio a frase: “Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía haveria de se lembrar do dia em que seu pai o levou pra conhecer o gelo”. Aí acabou. Aí acabou, mudou a vida dele, mudou a literatura.
Eu não acho que um livro mude a tua vida. Eu não acredito nisso. Mas, sim, acredito, eu sou prova disso, que um livro pode mudar a tua maneira de ver o mundo. Isso aconteceu comigo, desde que eu era menino. Eu li [o escritor estadunidense] Mark Twain. Eu posso te contar como é que é o rio Mississippi, como é que é o cheiro da água, a temperatura da água, sem nunca ter estado lá. Eu mergulhava com Mark Twain quando eu tinha dez anos de idade, onze anos de idade.
Acho que isso que é a função da literatura: mudar sua maneira de ver a vida, o mundo, e te revelar segredos que você nunca teve e nunca vai ter acesso. Cada um é dono do seu segredo. Por isso, no caso de Cem Anos de Solidão, eu concordo inteiramente com ele. Cada um é dono do seu personagem.