Por Bruna Barenco*
O Rio de Janeiro vive intensamente o Carnaval, assim como o futebol. As duas entidades da cultura carioca coexistem, mas não interagem com frequência no Sambódromo. Diferente de São Paulo, onde escolas de samba e torcidas organizadas se misturaram, principalmente a partir dos anos 80, o Rio de Janeiro viu clubes de futebol e escolas de samba nascerem por outras origens, mas eventualmente convergirem em um mesmo lugar: a identidade negra.
Enquanto os clubes de futebol cariocas foram criados ainda na primeira década do século XX, apenas a partir dos anos 1920 surgiram os primeiros esboços das escolas de samba, acompanhando não só o crescimento do estilo musical, mas a gentrificação do Carnaval: de um lado, a elite e seus bailes de máscara; do outro, a classe popular, majoritariamente negra, pós-abolição e suas festas e cortejos de rua. Nesse período, a cidade do Rio passou pela reforma urbana Pereira Passos, que mudou completamente a dinâmica da cidade – e quem ocupava cada espaço. Os negros e pobres foram expulsos de seus cortiços, e bairros de subúrbio e favelas começaram a ser criados.
No bairro Estácio de Sá, sambistas se reuniram e criaram a Deixa Falar, primeira escola de samba da cidade, inaugurando uma nova forma de pular carnaval. Parte da ação das escolas de samba foi também recuperar a territorialidade do Carnaval para as classes populares cariocas. Ao mesmo tempo, o samba se consolidava como um gênero musical com identidade própria, e provou ser a trilha sonora ideal para os cortejos – e posteriormente, para as escolas de samba. O esforço dos sambistas era tornar o samba respeitado, e afastá-lo das características de marginalidade associadas a população preta na época. O próprio conceito dos desfiles, regras estritas e tempo controlado, demonstram essa preocupação, desde a primeira vez que um concurso entre escolas de samba foi organizado oficialmente pelo Jornal Mundo Sportivo em 1932.
Enquanto o samba buscava legitimação, o futebol carioca travava lutas para obter o profissionalismo da categoria de jogadores de futebol. A disputa ficou marcada pelo embate de amadores e profissionais, com os times amadores sendo ligados às elites cariocas, e os times de origem mais humilde defendendo o profissionalismo. Era a luta de classes escancarada no futebol, que só foi resolvida com a conquista do profissionalismo e a unificação das ligas cariocas em 1937. Dessa forma, a década de 1930 foi de suma importância para o Carnaval e o futebol no Rio de Janeiro.
Como apontado pelo historiador Luis Antônio Simas, o samba e o futebol são fatores no processo de formação de identidade brasileira, e acima de tudo, da identidade carioca. Engana-se quem pensa que, na avenida, futebol e carnaval não se encontram. Embora pela história de suas criações os clubes de futebol e as escolas de samba cariocas não tenham fortes interseções, como é o caso do carnaval paulista, marcado pelas escolas de samba ligadas a torcidas organizadas dos clubes da cidade, existem algumas exceções, como é o caso da Mocidade Independente de Padre Miguel, que surgiu do clube amador Independente, e a União da Ilha, ligada ao clube União.
Ainda que não seja tão vivido nas quadras, o futebol já foi tema de diversos sambas-enredo. A Vila Isabel já cantou Nilton Santos em 2002, com o enredo “O Glorioso Nilton Santos: Sua Bola, Sua Vida, Nossa Vila”; a Unidos da Tijuca homenageou o Vasco da Gama no centenário do clube, em 1998, com o samba “De Gama a Vasco, a Epopeia da Tijuca”; e, em 1995, a Estácio de Sá homenageou o Flamengo, que fazia 100 anos naquela data, com o samba “Uma Vez Flamengo”. Os dois últimos são notáveis porque saíram do Sambódromo para as arquibancadas, sendo até hoje músicas entoadas pelas torcidas do rubro negro e do cruzmaltino.
É mais nessa interseção que futebol e Carnaval se encontram: nas arquibancadas cariocas. Sambas-enredo e canções famosas do gênero viraram hits das torcidas, como Vou festejar, composta pelo rubro negro Jorge Aragão e eternizada pela botafoguense Beth Carvalho. Assistir a um jogo de futebol no Rio de Janeiro é experienciar uma musicalidade que se manifesta muitas vezes em forma de samba.
Nos últimos anos, o fenômeno das escolas de samba de torcidas organizadas desembarcou no Rio. 2025 marcou a primeira vez que uma escola ligada a uma torcida desfilou pela Série Ouro, a Botafogo Samba Clube. Na Série Prata, a terceira divisão do carnaval carioca, há também a Fla-Manguaça e a Força Jovem. Na Série Bronze, ainda existe a Guerreiros Tricolores, ligada a torcida do Fluminense.
Ainda é cedo para dizer se as escolas de samba de torcidas organizadas vão se estabelecer na cultura carnavalesca carioca, mas é fato que a identidade do Rio de Janeiro não pode ser dissociada dessas duas instâncias: Carnaval e futebol.
*Bruna Ferraz Barenco é formada em História, com Mestrado e Doutorado em andamento na mesma área pela Universidade Federal Fluminense. Ela está associada ao Observatório do Lazer e do Esporte (OLÉ) e ao Laboratório de História Oral e Imagem (LABHOI).
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.