Reparar, segundo o livro Esperança Feminista, de Débora Diniz e Ivone Gebara, “é um mandato verbal para o agora. Reparar é também um verbo que remete à caixa de costura: fazer reparos em meias furadas, nas roupas esgarçadas, nas bainhas. É um verbo imperativo sobre o instante e que oferece detalhes a respeito do que precisa para um futuro diferente”.
Reparar, aqui no Nordeste também tem a ver com prestar atenção. A gente diz: “repara mesmo, quem tá passando por alí” – que é o mesmo que alertar que precisamos parar tudo para prestar atenção em algo.
Nos últimos dias, durante o Carnaval, pensei bastante tempo reparando, porque às vezes a gente percebe, mas não “repara bem”. Percebemos a presença das pessoas com deficiência durante o Carnaval, mas não reparamos na morfologia dos espaços urbanos que destacam o não-pertencimento destas pessoas às ruas, uma vez que estas são sistematicamente organizadas para a exclusão daquelas pessoas.
A gente até percebe a alegria carnavalesca das pessoas com deficiência ao romperem as sistemáticas das ruas não acessíveis, mas não reparamos a profundidade capacitista compactuada ao longo dos tempos que determina as relações sociais, costumes e comportamentos, nos quais estão presentes em frases constantemente ditas no meio da festa: “você é uma inspiração para mim” ou “você me dá forças para continuar”. Forma violenta, porém, romantizada de “não-reparar” as pessoas com deficiência como sujeitos de direitos.
Entretanto, mesmo diante das práticas alienadas pela capacidade compulsória do corpo, as quais limitam estes sujeitos ao pertencimento frevista e pernambucano de ser e viver o Carnaval, a fissura ocasionada pela presença de carnavalescos com deficiência nas ruas provoca um rompimento subversivo a uma ordem violenta.
É nesse sentido que acredito na radicalidade do Carnaval que desafia as ruas. Ao meu ver, ele encoraja as pessoas a encararem o medo coletivo de existir e sentir alegria. Os espaços antes tomados por carros e pressa, passam a ser ocupados por gente, música e entrega.
Tomar as ruas é uma fratura coletiva no sistema, nos aproximando das linhas de costura para a reparação dos inúmeros furos opressores causados pela normalidade compulsória. É fazer revelar no instante o que foi massacrado pela normalidade imposta na sociedade capitalista.
Assim, reparar tem a ver com prestar atenção em quem está nas ruas, mas sobretudo, em quem não está. É um costura anti-capacitista que não romantiza a violência e não institui como caridade o sujeito de direito. Reparar tem a ver com o profundo, com rever o vivido.
Se este ato de vontade alegre que é o carnaval e como ele diversifica as ruas pudesse ser visto como um comprometimento coletivo de transformação, poderíamos “reparar bem” no que nos coloniza desde dentro, a fim de reinventar o corpo, reaprender o vivido, reinventar as imagens, falas e experiências de existir e tornar essa fissura de ocupação das ruas em uma luta interseccional constante por justiça, fraturando o isolamento, rumo a um futuro diferente.
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