Assinada recentemente pelo presidente da Câmara dos Deputados, Hugo Motta (Republicanos-PB), a medida que proíbe o uso de cartazes em determinados ambientes da instituição divide especialistas que acompanham os debates no âmbito do Poder Legislativo. A norma veta também o porte de “banners, panfletos e afins” e se aplica ao Plenário Ulysses Guimarães, recinto principal da Casa e local onde costumam se reunir os 513 parlamentares durante as sessões de votação, e ainda aos plenários das comissões legislativas.
Citando trechos do regimento interno e do Código de Ética e Decoro Parlamentar, o documento de Motta fixa que “as manifestações parlamentares em sessões e reuniões da Câmara dos Deputados devem se limitar à utilização da palavra”. “Quando necessário, o Departamento de Polícia Legislativa (Depol) poderá ser acionado para garantir que a determinação da presidência seja cumprida”, acrescenta o texto. Para o cientista político Danilo Morais, mestre em Poder Legislativo e doutorando da Universidade de Brasília (UnB), a medida responde à necessidade de organização dos trabalhos em consonância com as tradicionais normas da Casa.
“O decoro parlamentar é fundamental para amparar a legitimidade e a autoridade do parlamento. Ao reforçar a liturgia dos ritos da legislatura e coibir espalhafatos impróprios, o presidente Motta avança em boa hora, buscando mitigar os efeitos nocivos da polarização e da comunicação do espetáculo na arena parlamentar, reivindicando a sobriedade requerida pelo contexto de uma instituição da mais alta relevância para a democracia, como é o caso do Congresso Nacional”, avalia.

A norma que veta o uso de cartazes foi publicada no final de fevereiro e formatada em conjunto com um outro ato em que o presidente fixa que “somente serão permitidas [nos plenários] a permanência e a circulação de pessoas que estejam adequadamente trajadas”. A dobradinha veio após a escalada das tensões entre membros da extrema direita e parlamentares do campo da esquerda, que costumam protagonizar os embates mais efervescentes durante as votações da Câmara.
No primeiro documento, Motta argumenta que o uso de cartazes e afins tem causado prejuízos ao “bom andamento dos trabalhos legislativos” e gerado nas tribunas “discussões muitas vezes infrutíferas e ofensivas”. No texto que trata da vestimenta aceita nos plenários, o presidente sublinha que o eventual descumprimento da norma implica violação ao Código de Ética da Câmara. O mandatário lembra que, segundo o documento, os deputados devem “respeitar e cumprir a Constituição Federal, as leis e as normas internas da Casa e do Congresso Nacional; exercer o mandato com dignidade e respeito à coisa pública e à vontade popular, agindo com boa-fé, zelo e probidade; e respeitar as decisões legítimas dos órgãos da Casa”.
“A Câmara dos Deputados é instituição fundamental para a democracia brasileira, sendo espaço de debate dos mais relevantes temas para o país. Seu funcionamento deve, portanto, refletir a solenidade e a importância dos trabalhos nela conduzidos. O respeito às normas não é mera formalidade, mas medida essencial para assegurar que o ambiente legislativo esteja em conformidade com o decoro exigido pelo exercício da atividade legislativa, de forma a se manter o respeito mútuo e a ordem nos debates”, argumenta o presidente, no mesmo texto.
Contexto
As disputas que antecederam a assinatura dos dois atos normativos envolveram os protestos pró-anistia para os envolvidos no 8 de janeiro, evocados por apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) por meio do uso de cartazes dentro do plenário principal da Casa; o uso, no mesmo recinto, de materiais do tipo por parte de parlamentares de esquerda pedindo a prisão do ex-capitão; e ainda uma guerra de bonés travada entre bolsonaristas e governistas com mensagens de apoio ou de ataque à atual gestão petista. O uso de acessórios do gênero fere as regras do Congresso Nacional, onde é exigido dos parlamentares homens o traje de terno e gravata, sendo este último um item que recentemente vinha sendo negligenciado por parte de alguns deputados.

Poucos dias antes da edição dos documentos, no último dia 19, Motta fez um duro discurso em que reagiu ao fato de membros da ala bolsonarista terem desacatado ordens da deputada Delegada Katarina (PSD-SE) quando ela presidia a sessão plenária em seu nome. Na ocasião, parlamentares da oposição interromperam seguidas vezes uma fala do líder do PT, Lindbergh Farias (PT-RJ), quando este discursava no púlpito. O conflito em questão tinha como pano de fundo a denúncia criminal feita pela Procuradoria-Geral da República (PGR) contra Bolsonaro no Supremo Tribunal Federal (STF). Ao pedir respeito à fala do colega, a deputada do PSD foi ignorada pela extrema direita, que na ocasião portava cartazes com pedido de anistia para o grupo que invadiu os prédios dos três Poderes em janeiro de 2023.
“Se Vossas Excelências estão confundindo este presidente com uma pessoa paciente, uma pessoa serena, como um presidente frouxo, vocês ainda não me conhecem. Ou este plenário se dignifica de estar aqui representando o povo brasileiro ou nós não merecemos estar aqui. Aqui não é o jardim da infância nem muito menos um lugar para espetacularização que denigra [sic] a imagem desta Casa. Eu não aceitarei esse tipo de comportamento”, reagiu Motta, ao retornar ao plenário e sob aplausos da bancada feminina. O grupo havia se queixado do agravo da ala bolsonarista diante dos pedidos feitos pela parlamentar que presidia a sessão.

Análise
A bronca de Motta foi a antessala da edição dos atos normativos. Um dos trechos do documento relativo aos cartazes afirma que a medida não se restringe a parlamentares, alcançando também “servidores, terceirizados e qualquer outra pessoa que esteja nos recintos dos plenários”. O uso de objetos do tipo é comum por parte de integrantes da sociedade civil em ocasiões de protesto dentro e fora dos plenários, especialmente nos corredores e outros espaços de uso comum da Casa, os quais não são atingidos pela norma assinada pelo presidente. Questionado se o veto ao uso de cartazes durante as sessões e audiências públicas pode interferir no direito à liberdade de expressão por parte de atores sociais, Danilo Morais não vê esse risco.

“O foco da medida parece ser precipuamente a atuação dos parlamentares e, nesse sentido, não vislumbro qualquer restrição indevida na livre expressão destes, mas, ao contrário, um certo esforço de normalização do processo legislativo. No entanto, qualquer medida que mire a sociedade civil, por outro lado, reclamaria uma apreciação mais cautelosa, sendo certo, porém, que a liberdade de protesto não alcança o interior dos prédios públicos na medida em que a própria Constituição Federal o confina às áreas públicas de uso comum do povo. Tanto é assim que o próprio regimento interno da Câmara já veda qualquer tipo de manifestação de populares no recinto da Casa, de modo que a permanência dos cidadãos nesse ambiente solene é limitada a uma observação silenciosa”, frisa
O cientista político menciona o artigo 272 do regimento, que prevê o direito de ingresso da população nos edifícios principais da Casa. O trecho ressalta que “espectadores ou visitantes que se comportarem de forma inconveniente, a juízo do presidente da Câmara ou e de comissão, bem como qualquer pessoa que perturbar a ordem em recinto da Casa serão compelidos a saírem imediatamente”. Morais cita ainda o artigo 5o da Constituição, segundo o qual “todos podem se reunir pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente”.
“Se tanto os servidores quanto a sociedade civil já são proibidos hoje de fazerem essas manifestações [dentro dos plenários], não vejo aqui nenhuma grande inovação [no ato de Hugo Motta] no sentido de limitar a livre expressão da sociedade. Eu vejo que o enfoque da medida é precipuamente sobre os parlamentares, na medida em que é nesse campo especificamente que se inova. E a eventual tolerância [da Câmara] em circunstâncias pontuais não pode ser interpretada como uma franquia generalizada para que o público se porte da maneira que bem entender”, acrescenta Morais.
Ressonância
A iniciativa do presidente da Câmara surge após uma sequência de anos nos quais o acirramento tomou conta dos debates no Congresso Nacional, especialmente na Câmara, porta de entrada da maior parte das propostas legislativas. O cenário vem acompanhado de uma escalada nos índices de violência política registrados dentro e fora do ambiente do parlamento, conforme o Brasil de Fato mostrou em diferentes reportagens ao longo de 2024.
O professor Thiago Trindade, do Instituto de Ciência Política (Ipol) da UnB, lembra episódios como os que foram protagonizados pelo então deputado federal Jair Bolsonaro (à época no PSC) nas vésperas do impeachment de Dilma Rousseff (PT), ocorrido em 2016. Em abril daquele ano, quando o rito de afastamento da petista era votado na Câmara, o ex-capitão defendeu a deposição de Dilma citando o coronel do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra, torturador e chefe do órgão de repressão política da ditadura militar (1964-1985), o DOI-Codi.
A postura de Bolsonaro serviu de referência para diversos outros parlamentares que se elegeram em 2018, no rastro da chegada do ex-capitão ao posto de presidente da República. De lá para cá, foram muitas as manifestações de bolsonaristas na Câmara em apoio à lógica repressiva adotada pela ditadura. Ao longo dos últimos anos, os presidentes Rodrigo Maia (DEM-RJ) e Arthur Lira (PP-AL), que se sucederam no comando da Casa entre julho de 2016 e janeiro de 2025, não impuseram freios aos arroubos autoritários do segmento.
“A gente tem atualmente [no Legislativo] um contexto mais conturbado por conta da radicalização da direita no Brasil, da emergência dessa extrema direita na cena pública e nas arenas institucionais, como é o caso do próprio Congresso Nacional. Há um processo de extremização cada vez maior desse grupo. Então, entendo que o ato de Hugo Motta não é uma coisa relacionada a um episódio específico. Ele vem na esteira de uma série de coisas dos últimos anos que deram ao atual presidente da Câmara um argumento de necessidade de um ato como esse”, interpreta Trindade.
Perfil
De olho no mesmo cenário, a pesquisadora do Observatório do Legislativo Brasileiro (OLB) Maiane Bittencourt ressalta que a iniciativa de Motta precisa ser analisada à luz do perfil do parlamentar. “É um político jovem muito ambicioso e que assumiu a presidência da Câmara erguendo [nas mãos] a Constituição Federal e falando o nome de Ulysses Guimarães. Ele vem numa toada de querer assentar as disputas polarizadas no parlamento. Ele quer ser um político do centrão mais negociador, mais apaziguador, acabando com essa polarização, que afeta o ganho do próprio centrão”, analisa a especialista, atualmente doutoranda em Ciência Política na Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Por outro lado, Maiane observa que o ato normativo pode também ter um caráter politicamente derrapante. “Por mais que a justificativa sejam as brigas entre parlamentares, [o uso de cartazes nos plenários] é um instrumento de participação da sociedade civil, em especial em votações nas quais ocorre o chamado ‘tratoraço’”, lembra, ao mencionar o jargão utilizado no Legislativo para designar votações feitas de forma acelerada e sem debates com setores sociais. “Essa dinâmica da participação política, às vezes interrompendo, às vezes tumultuando [os trabalhos], é uma estratégia de embate, de enfrentamento que pode estar sendo minada [com a norma assinada por Motta], e isso pode ser ruim para a democracia”, emenda.
Para a pesquisadora, o documento baixado pelo presidente pode atiçar ainda mais a indocilidade habitual de membros do Depol diante de protestos populares. “Não que o enfrentamento precise chegar ao nível extremo. É que a pressão civil é importante porque é um processo até educativo. Por um lado, é educativo para o político, que percebe que o mandato é seu, mas não é um poder somente seu, já que ele está ali para representar uma camada da população, para representar a sociedade. Ao mesmo tempo, é educativo também por conta da construção de ativistas políticos que vivem esse processo. Então, entendo que isso pode interferir na democracia”, avalia a pesquisadora.
Thiago Trindade, que atualmente coordena o Observatório das Metrópoles em Brasília (DF), faz ponderação semelhante. Ele projeta que o documento pode vir a ser usado por parlamentares de forma a enquadrar especificamente manifestantes de perfil ideológico alinhado à esquerda. Em virtude do cenário de avanço conservador experimentado pelo país entre 2016 e 2022, tornaram-se comuns na Câmara as interdições a protestos civis dentro da Casa. No último dia 25, por exemplo, um manifestante chegou a ser detido e arrastado por agentes do Depol após protestar durante o anúncio da eleição para a presidência da bancada evangélica. Na ocasião, o militante empunhava um cartaz em defesa da proposta que acaba com a escala de trabalho 6×1. Ele foi capturado pelo Depol após ingressar no plenário gritando e pedindo que os membros da bancada evangélica apoiassem a pauta.
“Obviamente, o presidente da Câmara tem um argumento convincente, que seria blindar o ambiente parlamentar de manifestações mais extremistas. Mas a grande questão é que, se essa normativa alcança episódios como aquele em que o deputado Nikolas Ferreira (PL-MG) usou uma peruca para fazer um ataque transfóbico à deputada Erika Hilton (Psol-SP), por outro lado, existe uma seletividade institucional, um histórico que nos mostra a existência de um viés nessas instituições no sentido de se punirem pessoas que são do campo da esquerda e não se punirem da mesma forma parlamentares ou outras pessoas do campo da direita ou da extrema direita”, pontua Thiago Trindade.
“Independentemente do fato de haver uma suposta neutralidade [na norma], a gente sabe que as instituições costumam punir principalmente pessoas que usam seus mandatos para fortalecerem lutas populares. A questão é se o critério agora vai ser o mesmo para todo mundo. Se isso coibir as manifestações extremistas da direita, como apologias a ditadores e ataques transfóbicos, homofóbicos, racistas, etc., acho que vai ser um ganho. Mas isso só o tempo dirá. Do jeito que as coisas caminham, acredito que em breve saberemos o real efeito desse ato”, finaliza Trindade.