Goiás é o estado que mais teve denúncias de violência em Comunidades Terapêuticas (CTs) veiculadas na mídia em 2023. As violações vão desde ausência de planos terapêuticos e alvarás de funcionamento, até trabalho análogo à escravidão, tortura e morte. Os dados são do Observatório de Violências das CTs, lançado pelo grupo Saúde Mental & Militância no Distrito Federal (DF) no começo de março deste ano.
O grupo ligado ao Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília (UnB) identificou um total de 251 matérias jornalísticas com denúncias envolvendo CTs entre janeiro e dezembro de 2023. Em Goiás, foram computados 76 registros. São Paulo vem em segundo lugar, com 63 matérias, seguido de Rio de Janeiro (25), Rio Grande do Sul (19) e Minas Gerais (18).
No DF, a pesquisa encontrou cinco denúncias envolvendo CTs. No entanto, segundo Pedro Costa, professor da UnB e coordenador do Saúde Mental & Militância, muitas das CTs denunciadas em Goiás estão localizadas no Entorno do DF e também recebiam internos deste local. De acordo com o professor, isso também explica porque Goiás lidera o ranking de violência.
“Temos um intercruzamento, até mesmo uma sobreposição entre DF e Goiás”, explicou Costa ao Brasil de Fato DF. “Boa parte das reportagens de denúncias que estão como Goiás são de CTs que estão no Entorno, ou seja, são de Goiás, mas também acabam assistindo pessoas do DF. Então ficam um pouco nessa zona cinzenta”, detalhou.

Um dos exemplos é a comunidade terapêutica Salve a Si – recentemente renomeada como Instituto Eu Sou – que recebia recursos públicos do Governo do DF (GDF) e contava com uma unidade masculina localizada em Cidade Ocidental (GO), no Entorno do DF, e uma feminina em São Sebastião (DF). Entre 2019 e 2022, segundo dados do Portal da Transparência, a Salve a Si recebeu R$ 2,4 milhões do Fundo Antidrogas do Distrito Federal (Funpad), gerido pelo Conselho de Política sobre Drogas do Distrito Federal (Conen-DF).
O repasse foi suspenso pelo Tribunal de Contas do DF (TCDF) em 2023, após uma série de denúncias de violências e irregularidades. Em março de 2024, o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) realizou vistoria na Salve a Si e recomendou o fechamento da CT.
Segundo relatório da visita, foram identificadas diversos indícios de violações de direitos, de ilegalidades e de crimes, como a administração de medicações por profissionais não habilitados e sem prescrição médica, cárcere privado, restrição de contato externo e de acesso a meios de comunicação, apropriação de bens e recursos de pessoas acolhidas, e coação psicológica.
De acordo com Pedro Costa, o número de violações em CTs pode ser ainda maior, já que muitos dos casos não chegam a ser denunciados ou não aparecem na mídia. “As instituições asilares e manicomiais, como é o caso das CTs, são, por sua própria natureza, violentas, porque elas segregam. Geralmente, os casos que aparecem nas reportagens são de denúncias de atos de violência extremada”, destacou o professor.
Duas comunidades terapêuticas localizadas em Goiás estão entre as três com maior número de denúncias veiculadas na mídia em 2023: a Amparo Centro Terapêutico, que foi citada em 30 notícias, e a Clínica de Reabilitação Restituindo Vidas, com 13 citações. Ambas foram fechadas.
Em setembro de 2023, cerca de 100 internos, dentre eles idosos e pessoas com deficiência, foram resgatados de chácaras da Amparo Centro Terapêutico, CT localizada em Anápolis (GO) e administrada por um casal de pastores. Algumas pessoas foram encontradas amarradas à camas. As vítimas relataram à polícia que ocorriam agressões físicas e verbais, além de castigos como banhos gelados e obrigação de ficarem nuas. As famílias dos pacientes pagavam R$ 1,3 mil mensais e a CT não era regularizada.

“Me lembrou do abrigo colônia em Barbacena, que registrou casos que promoveram a reforma manicomial no Brasil. Retiramos da convivência quem não é aceito e simplesmente jogamos fora. É o caso do autista encontrado lá, que foi expulso e trancado como um bicho, simplesmente porque ninguém queria”, relatou o delegado da Polícia Civil de Goiás (PCGO) responsável pela operação, Manoel Vanderic, à época.
Mistura de manicômio, prisão, igreja e senzala
O Observatório de Violências das CTs mostra que em 80,4% das notícias há menção a agressão, maus-tratos e tortura. Em segundo lugar no ranking de violências estão as irregularidades técnicas e sanitárias, identificadas em 80,1% das reportagens. 31,4% das notícias mencionam homicídio ou morte, o que revela a gravidade dos casos.
Outras violações encontradas pela pesquisa foram: sequestro e cárcere privado (61,3%), irregularidades medicamentosas (33,4%), e trabalho análogo à escravidão e outras violências trabalhistas (16,7%). A página do Observatório permite a navegação pelo mapa de violências, bem como disponibiliza as notícias levantadas durante a pesquisa.
O site também elenca as legislações que foram infringidas nas CTs, com trechos de notícias que exemplificam as violações. A ideia é que o levantamento seja realizado anualmente. A pesquisa com dados de 2024 está prevista para ser divulgada no segundo semestre deste ano
O modelo de funcionamento das Comunidades Terapêuticas baseia-se em três pilares: trabalho, disciplina e espiritualidade. Essas características foram identificadas pelo Instituo de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) na nota técnica Perfil das Comunidades Terapêuticas Brasileiras, divulgada em 2017.
Pedro Costa avalia que o termo mais adequado para o terceiro pilar seria violência religiosa. “A maioria, quase a totalidade, dessas instituições é gerida por instituições religiosas. E não sendo suficiente, elas acabam submetendo as pessoas nelas depositadas à compulsoriedade de atividades que professem e comunguem a fé dessa instituição, mesmo que não seja a da pessoa internada”, afirmou.
Segundo o professor, as CTs são instituições de caráter disciplinar e coercitivo, por isso o pilar da disciplina. Já o que deveria ser a laborterapia – isto é, o exercício do trabalho como algo terapêutico –, na verdade, acaba sendo trabalho forçado, não pago e em condições degradantes.
“As CTs são uma síntese de manicômios, prisões, igrejas e senzalas, vide o trabalho análogo à escravidão e o entendendo que o grosso da população que é internada nessas instituições são pessoas pobres e negras”, resumiu Costa.
:: Clique aqui para receber notícias do Brasil de Fato DF no seu Whatsapp ::