Na manhã desta segunda-feira (10), moradores da rua Aderbal Rocha de Fraga, no bairro Sarandi, em Porto Alegre, realizaram uma vigília em defesa das 57 famílias que terão que ser removidas do local próximo ao dique. A ação foi organizada pelo Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), pela Associação do bairro e pela Comissão Fiscaliza Sarandi. O bairro foi um dos mais afetados pela enchente de maio do ano passado.
Com uma população de 91.366 habitantes, representando 6,48% da população da Capital, o Sarandi possui um área de 28,76 km², 6,48% do total da cidade, e com densidade demográfica de 3.176,84 habitantes por km². Na enchente de maio, mais de 26 mil pessoas do bairro foram afetadas.
A prefeitura afirma que a remoção é indispensável para que o município possa executar obras de restauração do sistema de defesa contra enchentes, que não operou de maneira eficaz durante o desastre climático de 2024. Durante a enchente de maio o dique de contenção do bairro Sarandi extravasou.
O prazo inicial para a desocupação era 28 de fevereiro, porém foi prorrogado devido à dificuldade das famílias em encontrar novas moradias. Nesta segunda-feira (10) encerrou o prazo estabelecido pela Prefeitura para que as famílias assinassem o termo que autoriza a demolição das residências.

Conforme informa o Departamento Municipal de Habitação (Demhab), até o momento, 45 famílias tiveram seus registros aprovados pela Caixa Econômica Federal para a aquisição de novas moradias através do programa Compra Assistida. Desses, 20 assinaram o termo concordando com a saída e autorizando a demolição dos imóveis. Apenas 21 encaminharam o pedido de imóvel para a Caixa Econômica Federal. O Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae) garante que nenhuma máquina iniciará o trabalho de derrubada enquanto houver moradores ocupando as casas.
De acordo com os organizadores, a vigília tem como objetivo denunciar as precárias condições oferecidas aos atingidos e garantir habitações dignas. Segundo informam, o Poder Público oferece um Auxílio-aluguel de R$ 1.000, valor considerado insuficiente pelas famílias. Foi realizado ainda nesta manhã uma reunião com a comunidade.
Garantia de moradia digna
“A nossa ideia é ficar aqui, porque hoje é o último dia do prazo para a Prefeitura remover o pessoal. Vamos permanecer, dando apoio para os moradores juridicamente. Desde o começo fizemos várias reuniões com a Prefeitura e não evoluiu nada. Vamos ficar até o fim. E esperamos que o prefeito tenha o consenso de que o morador saindo daqui não vai resolver o alagamento”, afirma o integrante da Comissão Fiscaliza Sarandi, Edgar Fernandes.
Para ele, a Prefeitura poderia dar mais prazo para a saída das famílias, com a chave das novas moradias nas mãos e não para aluguel. “O sentimento é chave por chave, os moradores não acreditam no aluguel social.”
Conforme aponta o presidente da Associação dos Atingidos pela enchente do Sarandi, Mauricio Lorenzato, a vigília é uma mostra de solidariedade àquelas pessoas que hoje estão sendo acuadas pela Prefeitura. “No sentido de ser imposto um cronograma de retirada de suas casas que não está conectado com o trabalho que a Prefeitura vinha fazendo até aqui, de cadastramento, de resolução dos cadastros, dessas 58 moradias. Para garantir que quando as pessoas saiam, elas saiam com o direito à moradia assegurada. E hoje isso não está colocado de forma plena.”

Lorenzato reforça que é preciso manter a mobilização da comunidade, uma vez que há um longo processo de reassentamento pela frente. “E o reassentamento vai exigir que a comunidade se mantenha unida.”
Integrante da direção do MAB, Maria Aparecida Luge, a Cida, explica que os mesmos problemas enfrentados pelas famílias são os enfrentados por atingidos pela enchente de outras localidades, como nas Ilhas. Ela cita, como exemplo, a dificuldade em relação ao programa Compra Assistida. “A gente precisa se organizar e tentar, nessas primeiras 58 famílias, que elas saiam com seus direitos garantidos, respeitados e dignamente. Porque esse aqui é o começo da obra, não é o fim. Tem mais gente ainda pra sair.”
Conforme enfatiza Cida, ninguém é contrário às obras, e de que a mesma é necessária. Contudo, o processo precisa ser feito de forma que respeite as pessoas. “Temos que conscientizar o povo do Sarandi. (…) Muitas pessoas que são das outras ruas, que não estão aqui na beira do dique, elas têm medo das próximas enchentes. Mas a gente tem que dizer pra elas que essas pessoas aqui também têm que sair de forma humana, com seus direitos garantidos”, finalizou.
Chave por chave
“Não foi avisado a ninguém que ia haver uma obra. As máquinas, pesadas, simplesmente começaram a passar atrás das nossas casas. O que acabou afetando a estrutura de casas que não tinham sido afetadas pela enchente. A gente sentiu tremor muito grande”, relata Mariane Friedrich, morada do bairro há 20 anos.
“Chave por chave é o que nós queremos. Quero sair daqui direto para minha casa”, afirma Solange Avelhaneda, moradora do bairro há 40 anos. Casada, ela mora em uma residência de dois andares, sendo o primeiro ocupado pela sua mãe, Eloa Avelhaneda, que reside no Sarandi desde 1974, sua irmã e o marido de Eloa, que é cadeirante. Tanto mãe quanto filha recusam o aluguel solidário repassado pela Prefeitura.
“Tive meus filhos aqui, agora meus netos. (…) Não posso ficar me mudando toda hora. Por isso não aceitei o aluguel, como é que eu vou sair daqui com meu marido daquele jeito? Mudo para o lugar, daqui a pouco estou lá no outro lugar. Faz um mês que eu mandei a documentação para a Caixa e até agora não houve nenhuma resposta”, expõe Eloa.

Assim como Eloa, Mariane também reclama da lentidão do processo da Compra Assistida. “Eu estou há 40 dias com a documentação assinada pela imobiliária. Existem algumas regras dentro da Caixa, que é por onde a gente vai ganhar a Compra Assistida, que é no valor de R$ 200 mil.”
Contudo, conforme expõe a moradora são regras minuciosas, sem flexibilização nenhuma. “Enquanto isso, me mandam procurar casa para alugar, mas não existe com R$ 1 mil. A gente precisa ter caução e de onde que vai tirar dinheiro se a gente perdeu a nossa casa? Eu tenho uma filha que vai começar a estudar dia 10 na escola, que é próxima daqui. E também tem um problema que a minha sogra, que mora na parte de baixo de nossa casa, sofre de diabetes e depende de nossa assistência. Só que ela ainda não se encontra na lista da Caixa”, expõe.
Direito à escolha
Ao Brasil de Fato RS, o advogado e integrante da Rede Nacional de Advogados Populares (Renap-RS) Ernani Rossetto enfatiza que os moradores não se opõem à desocupação do local para a construção do dique. Contudo, exigem um processo de negociação transparente e responsável, onde suas principais demandas sejam discutidas. Entre elas, destacam-se a agilidade na aquisição das novas unidades habitacionais e a garantia de que a Prefeitura custeará o aluguel até que possam escolher uma nova moradia.
“Nós não queremos ir para o aluguel ou estadia solidária, queremos sair daqui direto para a nossa casa. Eles só fornecem apartamentos, e não queremos. A gente não está se recusando a sair, mas queremos ter o direito de escolha! Então, quero sair dessa casa para ir para uma outra casa. Vamos fazer aquela troca justa: uma chave pela outra chave”, ressalta a moradora Carmen de Goes.
De acordo com Rossetto, os cadastros foram enviados pela Prefeitura ao Governo Federal em 28 de dezembro, deixando menos de dois meses para a desocupação sem qualquer garantia concreta de realocação. “Além disso, algumas famílias assinaram documentos concordando com a saída sem entender plenamente os termos ou saber se há outras alternativas”, relata.
Na reunião de hoje, ficou decidido que os moradores só sairão mediante um acordo justo que respeite suas necessidades e direitos.

Interlocução
“Esse é um momento difícil para as famílias, de deixar suas casas, para ver uma obra acontecer no lugar de onde construíram a sua vida. Para nós é importante estar aqui. Primeiro para garantir que seja assegurado os direitos de todas as famílias, para auxiliar no processo de que elas acessem uma moradia digna. Segundo para lutar para que as próximas famílias não sofram o mesmo que essas estão sofrendo agora, porque vai ter uma continuidade da obra”, pontua a vereadora Juliana de Souza (PT).
De acordo com a parlamentar, o seu mandato, juntamente com a deputada estadual Laura Sito (PT), vem acompanhando e auxiliando a comunidade desde o início da enchente. Ela também destaca que a única alternativa de moradia que está sendo destinada à região vem do programa Reconstrução, do Governo Federal.
“A Prefeitura não colocou nenhum recurso extraordinário na reconstrução da cidade. Isso é importante ser apontado, porque as famílias aqui falam muito sobre as dificuldades que estão tendo. Porque só tem uma alternativa de moradia, que é essa que o Governo Federal disponibilizou. A Prefeitura não fez nada para garantir que não acontecesse a enchente na dimensão que aconteceu e nem que essas pessoas pudessem acessar moradia. Não tem nenhum programa habitacional para quem foi atingido pela enchente por parte da Prefeitura”, destaca Juliana.
Conforme aponta a vereadora, a única coisa feita pelo Executivo municipal é o cadastro das famílias feito pelo Demhab. “Isso é parte do problema que nós temos aqui. O departamento demorou muito para fazer o cadastro dessas famílias que estão sendo as primeiras a terem que sair. Então, se você tinha um cronograma de obra, que a obra ia começar por aqui, por que que essas não foram as primeiras famílias a serem cadastradas?”.
Ainda, de acordo com a parlamentar, o seu mandato, juntamente com a deputada Laura Sito, vem auxiliando e se mobilizando na interlocução com a Caixa Econômica Federal e com o Ministério das Cidades. “Nós estamos fazendo várias movimentações, articulações. Fizemos audiência na Câmara também com as famílias aqui da Aderbal para que possamos construir saídas. Além disso, desde o início desse processo, estamos lutando para que o tempo da política seja o tempo da urgência das pessoas e não o tempo de quem está dormindo tranquilo na sua casa.”
O que diz a Prefeitura
Ao Brasil de Fato RS, a Prefeitura afirma que ninguém será retirado à força e de que o Demhab está conversando com as famílias. Em nota enviada à redação o Executivo municipal ressalta que a Prefeitura de Porto Alegre mantém permanente diálogo com os moradores que vivem próximo ao dique do Sarandi e que precisam sair da área para que sejam feitas as melhorias necessárias na estrutura para qualificar a proteção contra enchentes.
“Desde junho de 2024, equipes do Demhab conversam com as 57 famílias para encaminhar soluções habitacionais imediatas. Todos os cadastros já foram enviados ao Governo Federal para receberem o benefício do Compra Assistida, a maioria já aprovados pelo programa. Antecipadamente, os moradores receberam a opção do Estadia Solidária, que consiste no pagamento de R$ 1 mil no prazo de 12 meses ou até o atendimento habitacional definitivo pelo Governo Federal.”
* Comunicação do MAB. Com informações do GZH.
