O Supremo Tribunal Federal (STF) está prestes a redefinir os direitos indígenas no país. O anteprojeto de lei apresentado pelo gabinete do ministro Gilmar Mendes na comissão de conciliação sobre o marco temporal (criada por ele próprio) é referido por organizações indígenas e indigenistas como um dos piores ataques desde a redemocratização e uma tentativa de reescrever o “capítulo dos índios” da Constituição Federal.
Passado o Carnaval, se intensificam as conversas de corredor e o lobby em Brasília para alinhar os artigos do documento, que será apreciado pela comissão de conciliação em 26 de março, com o prazo de 2 de abril para a aprovação do texto final. Em seguida, o anteprojeto – que visa substituir a Lei do Marco Temporal – passa para o plenário do STF. Caso aprovado, segue para o Legislativo.
Na minuta apresentada pelo ministro Gilmar Mendes, a proposta é extinguir o marco temporal, tese ruralista atualmente em vigor – apesar de ter sido considerada inconstitucional pelo próprio Supremo – e segundo a qual só podem ser demarcadas terras indígenas (TIs) ocupadas por seus povos originários até 1988. Em troca, no entanto, o texto prevê mineração em TIs, entraves no processo demarcatório, indenização a fazendeiros pelo valor da terra nua, realocação de comunidades indígenas e uso da Polícia Militar em despejos de retomadas.
“Efetivamente é uma tentativa de reescrever os direitos previstos na Constituição”, sintetiza Luis Ventura, secretário executivo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). “E também de atravessar a determinação do próprio Supremo”, complementa. Ventura se refere à decisão tomada pelo STF em setembro de 2023, quando considerou o marco temporal inconstitucional. Em afronta ao Judiciário, naquele mesmo mês o Congresso Nacional aprovou a lei 14.701 que o instituiu. Em seguida, a Corte recebeu ações opostas para definir sobre a validade da lei.
Relator das ações, o ministro Gilmar Mendes optou por, em vez de respaldar a decisão de inconstitucionalidade já tomada em plenário, criar um grupo para rediscutir o tema. Ao longo de mais de sete meses, as reuniões tiveram o improvável objetivo de “conciliar” donos de terra e povos originários espoliados desde 1500. Em agosto de 2024, logo no início dos trabalhos, o movimento indígena se retirou do espaço, denunciado como uma “farsa” onde se busca “negociar o inegociável”.
Acontece que, mesmo sem o movimento indígena, a última reunião da comissão de conciliação, em 14 de fevereiro, pouco conciliou. Composto por 23 integrantes – entre os quais parlamentares ruralistas indicados pelas presidências da Câmara e do Senado, representantes governamentais e cinco nomeados pelo Ministério dos Povos Indígenas (MPI) – o grupo contestou 83 dos 94 artigos da minuta de Gilmar Mendes.
Acatando pedido da Advocacia-Geral da União (AGU), o ministro estendeu o prazo até o fim de março para que os integrantes da comissão analisem melhor o documento – mas “sem a formulação de novas propostas paralelas ou alternativas”.
Um PL feito pelo Supremo
A produção de um projeto de lei (PL) por um ministro do Judiciário tem sido questionada publicamente por juristas, tais como a advogada, ex-procuradora-geral da República e membra da Associação Brasileira de Juízes para a Democracia (ABJD), Deborah Duprat.
“Eu nunca vi o Supremo encaminhar uma proposta de PL para o Legislativo”, atesta Duprat, citando uma exceção referente a vencimentos e vantagens da própria magistratura.
“É um fato bastante inusual, incomum. Mas toda a mesa de conciliação está atravessada por problemas muito sérios”, ressalta Deborah Duprat, ao lembrar que “o Supremo é uma Corte constitucional com uma característica contra-majoritária. Ou seja, existe exatamente para firmar direitos contra maiorias ocasionais”.
Um dos problemas, aponta a jurista, é que a decisão da comissão de conciliação se dá por maioria. “Estamos aqui diante de direitos fundamentais – como é o caso de direitos territoriais indígenas – sendo decididos por voto de maioria”, alerta.
Para o secretário do Cimi, o decano do STF está se propondo a “reformular a lei 14.701 e o artigo 231 da Constituição” e, portanto, assumindo um papel “legislador e reformador que somente cabe ao Poder Legislativo. Assim, renuncia ao que efetivamente corresponde ao Supremo, que é zelar pela Constituição”.
“A comissão já nasce de forma equivocada e ilegítima. E tenta fazer o impossível e o inaceitável: negociar direitos fundamentais. Uma vez que o movimento indígena se retira e os trabalhos seguem, há mais uma ilegitimidade. Os povos indígenas manifestaram o não consentimento à mesa de negociação. O Estado brasileiro é obrigado a atender este não consentimento”, defende Luis Ventura.
“O que deu para perceber muito claramente é que não houve, ao longo dessas 16 reuniões, nenhum sinal de possibilidade de acordo. E não houve porque não podia haver. Era impossível”, avalia o missionário.
Além de não suspender a vigência da Lei do Marco Temporal durante o andamento da comissão, a reação do ministro Gilmar Mendes depois que a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) se retirou do espaço fomentou um racha dentro do movimento. Buscando dar a legitimidade à mesa de conciliação esvaziada de indígenas, o ministro determinou que o MPI indicasse lideranças para compô-la.
A pasta, liderada por Sonia Guajajara, cumpriu a decisão sem recorrer. Manifestando o sentimento de parte do movimento, o Conselho Indígena de Roraima (CIR) soltou uma nota afirmando que, dessa forma, o MPI se alinhava “com fazendeiros, garimpeiros, agronegócio, revivendo práticas coloniais de tutela e contra os direitos dos povos indígenas”.
Agora, entidades como Apib, Comissão Guarani Yvyrupa (CGY), Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), Cimi e Instituto Socioambiental (ISA) buscam reforçar a ilegitimidade do que quer que saia da comissão de conciliação no início de abril, bem como detalhar os perigos na minuta apresentada. Entenda os pontos mais polêmicos.
Realocar indígenas em “terras equivalentes”
O texto elaborado pelo gabinete do ministro Gilmar Mendes prevê que, em casos em que a demarcação for “contrária ao interesse público” e que for “demonstrada” a sua “absoluta impossibilidade”, o Ministério da Justiça poderá fazer uma “compensação às comunidades indígenas”, “concedendo-lhes terras equivalentes às tradicionalmente ocupadas”.
A proposta não especifica o que se entende por “interesse público” e nem o que demonstraria a inviabilidade da demarcação. “Aqui há uma incapacidade do Estado brasileiro de entender que não existe terra equivalente. O vínculo singular e de pertença que os povos indígenas constroem com o seu território não pode dar-se em nenhum outro”, salienta Luis Ventura.
Mineração
Boa parte da minuta é dedicada a um passo a passo para a abertura de Terras Indígenas à exploração de minerais estratégicos, entre os quais ouro, cobre, potássio, urânio e ferro. Um dos entusiastas da proposta está, justamente, na comissão – apesar de, segundo o MPI, o tema sequer ter sido discutido nas reuniões. Advogado do Partido Progressista (PP), Luís Inácio Lucena Adams atua também para a mineradora canadense Potássio do Brasil.
A minuta estabelece que mesmo que a comunidade indígena responda negativamente à consulta prévia sobre a mineração dentro de seu território, o presidente da República pode decidir seguir com a autorização. Desde que, mais uma vez sem explicar o que seria isso, fundamentado em razões de “interesse público”.
Ao Brasil de Fato, o gabinete do ministro Gilmar Mendes afirmou que “a mineração em terras indígenas é expressamente autorizada pela Constituição (art. 231, § 3º) e objeto de ADO [Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão] também vinculada à Comissão Especial”.
Indenização
Outro capítulo da minuta determina que fazendeiros e grileiros que estejam em TIs que venham a ser demarcadas só precisam sair depois de receber do governo federal uma indenização que inclui o valor da terra nua. Até recentemente, indenizações eram calculadas apenas levando em conta as chamadas melhorias feitas de boa-fé, como por exemplo o investimento feito em estrutura e construções dentro da área.
A porteira para indenizações que incluem o valor do imóvel segundo o Imposto Territorial Rural (ITR) começou a ser aberta na votação do STF que decidiu pela inconstitucionalidade do marco temporal. E foi posta em prática em uma inédita mediação feita pelo próprio gabinete de Gilmar Mendes em setembro de 2024, no caso da TI Nhanderu Marangatu, no Mato Grosso do Sul.
O acordo de R$ 146 milhões à família de Roseli Ruiz, proprietária da fazenda onde ao menos dois indígenas foram executados com tiros na cabeça, aconteceu em momento em que a escalada de violência deu ao caso repercussão nacional e internacional.
Agora, avalia Luis Ventura, a minuta amplia o previsto na Lei do Marco Temporal. “Vai ter situação em que o ocupante não indígena vai ter direito à posse – ou seja, não precisa sair do território até que chegue a um acordo e se sinta satisfeito com a indenização proposta pelo Estado. Isto, além de criar um ônus financeiro econômico impressionante para o Estado, pode levar ao paradoxo de ter um território indígena demarcado e homologado, reconhecido como Terra Indígena, mas onde a comunidade indígena não tem a posse efetiva”, explica.
Obstáculos no processo demarcação
O procedimento administrativo de demarcação também ganha novos aspectos. “O texto pretende que setores contrários à demarcação, além de terem acesso a todas as informações, possam participar desde o início do procedimento administrativo, já desde a constituição do Grupo de Trabalho. Inclusive indicando peritos. Aqui estamos falando de municípios, de estados, estamos falando de associações ruralistas, de fazendeiros, de madeireiros”, ilustra o secretário do Cimi.
A possibilidade destes novos atores de incidir, influenciar ou mesmo contestar o processo, avalia Ventura, pode significar, na prática, “a inviabilização do procedimento administrativo de demarcação”.
Criminalização de retomadas e uso da PM
Em caso de ocupações de terra feitas depois de 23 de abril de 2024, o anteprojeto de lei estabelece que a Polícia Federal ou a Força Nacional, em conjunto com a Polícia Militar, “deve proceder à retirada imediata dos invasores, independentemente de se tratar de terras indígenas, territórios públicos ou privados, envolvendo qualquer pessoa que tenha ingressado de forma desautorizada”.
“O aparato estatal deve agir prontamente para evitar o esbulho possessório ou a manutenção ilegal da posse, independentemente de a invasão ter sido realizada por indígena ou não indígena”, segue o texto.
“O que está por trás do ‘protocolo humanizado da reintegração de posse’ é o aval para as forças de segurança pública, incluindo a Polícia Militar, para retirar à força em menos de um mês comunidades que tenha iniciado a retomada de seus territórios. E normalmente a retomada acontece diante da inércia do Estado”, pontua Luis Ventura.
Próximos passos
Caso haja, em 2 de abril, algum acordo da comissão de conciliação, a proposta será submetida ao plenário do Supremo. Dali, pode ser encaminhada ao Congresso Nacional – o mesmo que aprovou, em reação relâmpago encabeçada pela Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) ao Judiciário, o próprio marco temporal.
Paralelamente, no entanto, organizações indígenas e indigenistas pressionam o presidente do STF, ministro Luís Roberto Barroso, para que coloque em pauta os embargos declaratórios do julgamento do marco temporal. Tratam-se dos recursos apresentados no julgamento que, em setembro de 2023, considerou a tese inconstitucional.
Para que este julgamento, sob relatoria do ministro Edson Fachin, seja concluído efetivamente, é preciso que os recursos sejam apreciados. A aposta é que a conclusão deste julgamento reforce a inconstitucionalidade da Lei do Marco Temporal, sem que a sua derrubada seja feita em troca da retirada de direitos.