Vida Além do Trabalho. Minha Casa, Minha Vida. Vidas negras importam. Pela vida das mulheres. Sobrevivência à emergência climática e ambiental. Não há pauta mais urgente hoje que a vida, sobrevivência num mundo em colapso, condições mínimas de vida digna, saúde, saúde mental, tempo livre. O século XXI parece ter chegado ao ponto de inflexão existencial de nossa história, seja ele o ponto de não retorno da mudança climática, seja a impossibilidade política de sobrevida social no sistema atual.
A ameaça existencial é sentida por todos, em maior ou menor grau – grau inversamente proporcional ao lugar de cada um na escala social. Quanto mais alto, menor ou quase nenhuma a urgência, de modo que qualquer ação pode, por isso, ser adiada por gerações; quanto mais baixo, maior a urgência, tudo é para ontem. Essa relação alternativa no tempo – para depois ou para ontem – é erroneamente replicada no tema – o mundo todo ou meu dia a dia, minha família, talvez minha comunidade. O erro não está em privilegiar a sobrevivência pessoal e familiar, jamais! O que chamo de erro é julgar que são pautas excludentes ou, pior, alternativas.
Os coletes amarelos, na França de 2023, davam o tom de sua urgência respondendo ao governo: “vocês falam em ‘fim do mundo’, mas nós estamos preocupados com o ‘fim do mês’”. A adversativa “mas” reforça a sensação de uma alternativa, porém a raiz do problema é a mesma. A vida como pauta urgente e universal responde às angústias geradas pela economia liberal, que alcançam um grau extremo nessa década do século XXI.
Aqui quero tratar da relação entre trabalho e vida no Brasil de hoje, deixando a temática da sobrevida num clima adverso para outra oportunidade. No que diz respeito à vida cotidiana, a angústia que chegou ao limite revela precisamente as consequências do liberalismo e, além disso, explica a força da extrema direita. Curiosa composição: deriva do liberalismo e o fortalece ao mesmo tempo, abrindo espaço para a radicalização de uma política anti-Estado e anti-direitos, isto é, antidemocrática.
Vejam, democracia aqui é a possibilidade de divergências, disputa. Se dermos o nome de “democracia liberal” para o modo como essa disputa se organiza em instituições públicas, então será preciso supor que o qualificativo “liberal” tem um sentido político oposto ao sentido econômico. Este seria a primazia da concorrência e individualismo (ações não pautadas pelo coletivo ou bem público), enquanto aquele, político, seria a defesa da igualdade e da liberdade. Acontece que a igualdade saiu dos discursos liberais – tema que deixarei também de lado, para não alongar – enquanto a liberdade virou a chave para qualquer negócio. É a ideia de liberdade que vincula os trabalhadores ao modelo radicalizado de liberalismo econômico.
O trabalho excessivo é causa direta da exaustão física, mental e social. Acontece que a resposta ao trabalho focado em produtividade e concorrência, que implica cada vez mais uma aposta em performances individuais, é apresentada como a saída para uma angústia mais profunda com o trabalho formal. As relações de trabalho chegam ao limite como realização pessoal na medida em que chega ao limite a disposição para uma humilhação constante, para o assédio que permeia a maioria das relações trabalhistas. Ainda mais quando uma reforma trabalhista (governo Temer) diminui ainda mais a capacidade do Estado em regular as relações de trabalho via direitos. Com isso, os direitos trabalhistas já não servem para o mínimo que serviam, já não amenizam a humilhação diária encarnada como “patrão”. Assimilado ao patrão, está o Estado, veículo de direitos que pouco protegem, já que as políticas de regulação não alcançam a moralidade das relações.
Ninguém quer ter patrão. Muitos já não querem Estado. Não porque as pessoas recusem relações de trabalho formais e relativamente estáveis, mas porque a subordinação moral é insuportável. Não porque as pessoas recusem direitos, mas porque os diretos não asseguram dignidade. Suportar o assédio comum nas relações de trabalho costumava ser condição de sobrevivência, de sobrevida, de alguma vida. Quando a exaustão é socialmente compartilhada, a necessidade de um ponto de inflexão encontra apenas a resposta liberal. A ideia de liberdade é vendida como escape, como alternativa ao patrão e, portanto, ao assédio. Alternativa ao Estado. É a ideia de que se pode prosperar não apenas sem o Estado, acusado justamente de origem de desamparo, mas recusando o Estado – os direitos – como vilão.
O liberalismo vende a sensação de liberdade como solução para as angústias (mais do que legítimas) do trabalhador, convertido não apenas em empreendedor, mas em parceiro, colaborador e afins. Aliás, é aqui nessa conta que entra também o desinteresse crescente pela formação universitária, afinal, o empreendedor não é apenas o uber ou o ambulante (que já foi chamado “autônomo”). É também o influencer, é também o investidor. Ou seja, qualquer título que distancie a pessoa do assédio e da humilhação e, com isso, daquilo que, supostamente, é a origem de todos os males: o Estado, a regulação, os diretos. Com eles, vai-se a promessa, sempre adiada, de um futuro melhor. Há pressa. A submissão sem retorno, da qual nós – no mínimo, progressistas – não demos conta, encontrou no lema da “liberdade” uma nova promessa.
Mas, de que liberdade estamos falando? Vê-se que, aos poucos, a liberdade tornou-se a única alternativa ao assédio patronal e ao desamparo quanto à ideia de futuro. Muitos vestiram então a única roupa disponível no mercado, a fantasia liberal que ensina que o vilão é um monstrengo inchado chamado Estado, cujas garras reguladoras prendem cada um e cada uma a um lugar indigno de humilhação diária. E sem compensação, já que a vida que esse trabalho promete está (estava) no final, na sorte de uma aposentadoria (“agora vou descansar, viajar, viver”). A estabilidade foi vivida por anos como amarra. Vende-se agora um futuro para hoje, uma vida para já, para ontem. O trabalho livre, dizem, não amarra; basta dedicação, não é preciso a mão invisível do Estado nem suportar o olhar altivo de um chefe.
A contradição aqui é que o trabalho livre de patrão ou ressignificado como colaborador exige horas e mais horas e mais horas. Para o empreendedor, para o influencer, para o investidor (pequeno), uma dedicação arriscada, a aposta que coloca a vida e o tempo em jogo, sem rede de proteção. Para o colaborador ou funcionário, escala 6 x 1, ou mais, e a vida é roubada dia a dia.
De todo modo, para todos, o que se requer é vida. Não é a liberdade de viver o que o liberalismo tem a oferecer. Confio que é a ideia de vida que pode oferecer um horizonte para recolocar o sentido do trabalho no mundo de hoje. O trabalhador 6 x 1 é o empreendedor de amanhã, que radicaliza a recusa do assédio de um patrão e do controle rígido de seu tempo. Esses tipos sociais parecem etapas de um processo liberal que vai da máxima exploração regulada ao convite para que cada um tente, se esforce para ser efetivamente um liberal. No plano político, essa radicalização paulatina de uma economia cruel é a radicalização de um discurso pela liberdade absoluta, essa que seria a inimiga legítima do Estado. Quer dizer, a extrema direita é a herdeira política da materialidade liberal.
A nós, resta recolocar os pingos nos is e disputar politicamente o sentido da liberdade desejada. O primeiro passo parece ser aquele que age na etapa inicial do processo de radicalização e desmembramento social: não é possível que o trabalho impeça a vida. “Fim da escala 6 x 1, para que eu veja mais meu filho do que meu chefe”, diz o cartaz. Se for para suportar o assédio ao qual o capitalismo não dá opção, que pelo menos seja um trabalho para realmente viver, um trabalho para a vida. Se pudermos refletir políticas para impedir o assédio, ainda melhor – ações de políticas afirmativas, de combate ao racismo, políticas feministas e outras são, portanto, tudo menos secundárias, pois elas atuam no modo concreto das relações de trabalho, não na sua simples regulação.
Que a gestão do Estado e, portanto, o direito, possa ser efetivamente um elemento que ultrapasse a dimensão material e atinja o campo simbólico de nossas relações sociais. Designar ações políticas como “pauta de costumes”, secundária em relação à disputa econômica, é abrir mão de disputar o que angustia as pessoas diariamente. Não é por acaso que é precisamente nesse plano que a extrema direita joga suas fichas, oferecendo um campo simbólico ao liberalismo mais radicalizado.
Não podemos combater a extrema direita sem vinculá-la ao liberalismo. Por isso, acredito, é preciso ter cuidado em distinguir demais o liberalismo econômico do que se poderia chamar de “liberalismo político”. Não precisamos do adjetivo “liberal” par qualificar a democracia. Defender as instituições democráticas não tem nada de liberal, no sentido forjado no século XXI (poderíamos discutir se foi mesmo outro ao longo do século XX, mas não vem ao caso aqui). A democracia que defendemos, acredito, é essa que permite divergências e disputas, sobretudo na dimensão moral (política) da sociedade. Aliás, efetivamente, não há como negar que as tentativas de opção ao liberalismo, desde a social-democracia de ontem até os progressistas de hoje, preocupou-se principalmente com a forma trabalho, não tanto com a qualidade, por assim dizer, das relações trabalhistas. Insistir que “é a economia, estúpido”, nada mais é do que isolar a dimensão simbólica e moral das relações sociais, tornando a economia política mais economia que política.
A liberdade que se quer defender com a noção de democracia pouco ou nada tem a ver com a recusa de quaisquer regulações para a vida compartilhada. A liberdade democrática não é liberal. Assim, ao invés de “democracia liberal”, melhor seria, talvez, qualificar a defesa de direitos e, com isso, do Estado, pelo seu sentido público, compartilhado, coletivo e solidário. Quem sabe assim a face mais radical do liberalismo, a extrema-direita, fique visível em sua forma mais enraizada na vida social, explicando a força de seu discurso entre tantos exaustos.
*Monica Stival é professora de filosofia na UFSCar. Autora, entre outros livros, de Que sujeito somos nós? Poder, racionalidade (neo)liberal e democracia (Edufscar).
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato