O mundo viveu, na década de 2010, um período com uma lista extensa de revoltas e levantes. Os atos da praça Tahrir, no Egito, e a Primavera Árabe que se espalhou pelo Oriente Médio, as Jornadas de Junho de 2013 no Brasil e a revolta EuroMaidan, na Ucrânia, marcaram um período de extrema agitação política global.
Mas, segundo o jornalista estadunidense Vincent Bevins, há um ponto em comum em todas essas revoltas: nenhuma delas conseguiu seu objetivo inicial. Ou, ainda pior, seus manifestantes viram suas reivindicações iniciais capturadas por interesses ligados a setores de direita e extrema direita.
Esse é o tema do novo livro de Bevins, A Década da Revolução Perdida, lançado no Brasil pela editora Boitempo. Para o jornalista, dois elementos são cruciais para entender as revoltas da década de 2010: a crise financeira de 2008 e a ascensão das redes sociais.
“A crise global de 2008 foi uma resposta brutalmente neoliberal à crise gerada pelo sistema financeiro e, de alguma forma, a rejeição desse modelo de neoliberalismo estava presente nas reivindicações expressadas pelas ruas. E o outro elemento presente foi a presença da mídia social. Foi o momento histórico global no qual a mobilização virou uma coisa muito fácil”, explica.
Bevins é o convidado desta semana no BdF Entrevista. Na conversa, o jornalista explica as relações entre essas revoltas globais e também explora a crise social dos Estados Unidos pós eleição de Donald Trump.
Segundo o jornalista, os atos do Black Lives Matter e do movimento feminista Me Too mostram um cansaço instalado na sociedade estadunidense, que não viu seus esforços refletidos em mudanças políticas. Bevins, no entanto, acredita que ainda é possível que revoltas tentem dificultar os avanços ultraconservadores de Trump.
“Eu acho possível. A questão é: o que seria o gatilho para esse tipo de manifestação? Que grupo, organizado ou não organizado, estaria presente dar uma ideologia coerente a esse movimento? É inevitável que o Trump vá cometer um erro sério, que gere uma reação entre a população. Qual vai ser o erro que gera essa essa reação e quem que vai ser o grupo que chamará essa manifestação? Essa é uma coisa que é bem menos clara para mim”, aponta.
Confira abaixo alguns trechos da entrevista (no vídeo acima, você pode acompanhar a entrevista na íntegra):
Brasil de Fato: Você está lançando um livro novo, A Década da Revolução Perdida, onde você faz um resgate de algumas revoluções e levantes da década passada, e conta como eles terminaram, para onde eles foram. Qual a motivação para resgatar esses acontecimentos históricos?
Vincent Bevins: Primeiramente, eu queria entender o que aconteceu aqui no Brasil. Eu estava morando aqui em São Paulo, trabalhando como correspondente em 2013, durante o que aconteceu em junho daquele ano, as revoltas, as manifestações de rua, iniciadas pela esquerda autonomista que terminaram com uma vitória da direita e, de alguma forma, talvez tenha gerado condições para o golpe parlamentar em 2016 e a eleição de [Jair] Bolsonaro.
Eu e muitas pessoas que cobrimos essa revolta ficamos bastante confusos. Eu não consegui tirar essa experiência da minha cabeça. Depois de uns anos aqui no Brasil, eu fui para a Indonésia, onde uma coisa parecida estava acontecendo. E depois de 2013, eu assistia, acho que como todo mundo, uma série de manifestações de rua que às vezes pareciam com as chamadas Jornadas de Junho aqui no Brasil.
Ao fim da década, ficou claro que nos anos 2010 a 2020, houve uma mudança global gerada por uma onda de manifestações, começando na Tunísia, em 2010, e que nessa década mais e mais pessoas participaram de manifestações de rua do que em qualquer outro momento da história. O último recorde teria sido os anos 1960, mas o saldo global dessas manifestações é bastante variado.
Na maioria dos casos, ao meu ver, depois de momentos eufóricos, depois de momentos de muita esperança, essas revoltas têm guinadas à direita, cooptação ou intervenção estrangeira. Portanto, eu achei que valia a pena tentar construir a história global dessa onda de manifestações, começando em 2010 e terminando em 2020.
Você citou 1960 e eu queria te perguntar sobre esse período, porque tivemos uma onda gigantesca de atos relevantes, mas eles não eram estritamente políticos, eles misturavam uma luta de costumes também. No caso da década de 2010, é possível identificar de onde eles partiram?
Eu acho que tem algumas coisas em comum. Em todos os casos da última década, de 2010 a 2020, dois elementos estão presentes em todas as revoltas, em todas as manifestações que eu decidi contar, que são manifestações que cresceram tanto que ou derrubaram governos, ou fundamentalmente abalaram as estruturas políticas de uma sociedade. E para isso acontecer, sempre tem que haver mais de uma causa.
Mas eu acho que tem duas coisas presentes em todos os casos: a primeira seria a reação à crise global de 2008. Ou seja, uma resposta brutalmente neoliberal à crise global gerada pelo sistema financeiro. De alguma forma, a rejeição desse modelo de neoliberalismo estava presente nas reivindicações expressadas pelas ruas.
E o outro elemento presente foi a presença da mídia social, que não gera insatisfação, mas faz com que a mobilização ficasse mais fácil, enquanto a organização enfrentava um momento muito difícil. Ou seja, na década passada, eu acho que foi o momento histórico global no qual a mobilização virou uma coisa muito fácil. Todo mundo pode ver um post às 11h da manhã, e estar nas ruas às 15h da tarde. Isso não era possível nos anos 1960, quando se precisava de anos para coordenar e organizar uma manifestação.
Mesmo antes dos anos 2010, se a mídia local não fizesse ampla cobertura de um ato ou um levante, a tendência é que ele ficasse sempre reduzido a um pequeno grupo de pessoas…
Sim, exatamente. Isso é uma coisa que foi tentada em alguns países árabes, com a mídia simplesmente ignorando uma revolta, coisa que funcionava no passado. Mas havia esperança de que a mídia social iria gerar mais transparência e democracia no mundo. E a gente sabe que, hoje em dia, o que ela gerou foi uma oligarquia no meu estado, Califórnia.
E o livro tem essa premissa central que você estava falando, que é questionar como esses protestos massivos conduziram a situações políticas totalmente contrárias ao que eles pretendiam. Há uma razão para isso? Por que eles perderam?
Tem uma resposta curta e uma resposta mais longa. A resposta curta é que o tipo de revolta, o tipo de resistência, o tipo de manifestação que virou hegemônica na década gera oportunidades, mas a revolta não consegue aproveitar a oportunidade. Em todos os casos, outro ator aproveita, ou seja, forças reacionárias nacionais, forças imperialistas estrangeiras.
Para o livro, eu entrevistei o Fernando Haddad e membros do Movimento Passe Livre, o grupo que organizou nacionalmente as manifestações em 2013. Nos dois casos, o MPL e o Fernando Haddad falaram de um vácuo na política, ou seja, a manifestação consegue desestabilizar a sociedade, mas esse vácuo não fica vazio por muito tempo, alguém vai entrar.
Em muitos países, por exemplo, no Líbano, foi a Otan [Organização do Tratado do Atlântico Norte] que entrou, basicamente, lançando um programa de mudança de regime e derrubando o presidente. No Bahrein foi a Arábia Saudita, com apoio dos Estados Unidos, que invadiu o país. Ou seja, esse vácuo político gera oportunidades.
Agora, a gente também pode discutir, quem é capaz de aproveitar essa oportunidade? Por que foi, geralmente, a direita ou forças imperialistas que conseguiram aproveitar. E a gente pode também discutir qual forma de manifestação, de resistência e de revolta virou hegemônica na década.
Um outro levante que aconteceu mais ou menos nessa mesma época foi a Euromaidan, na Ucrânia. De alguma maneira, é um levante que tem consequências até hoje. São diversos os relatos da época que davam conta, por exemplo, da influência dos Estados Unidos, tanto no financiamento dos levantes, quanto na presença de alguns políticos. Isso alimentou o sentimento que move, por exemplo, [o presidente russo Vladimir] Putin na guerra que assistimos agora, certo?
É uma consequência direta. Bolsonaro pode ser consequência indireta de 2013, mas a guerra horrível e trágica que ainda está acontecendo é consequência direta da revolta na praça Maidan em 2013. Tudo que você falou é correto. Assim como o MBL [Movimento Brasil Livre], um grupo de jovens liberais com financiamento externo se aproveitou da revolta das ruas em 2013, no caso do da Ucrânia, as pessoas que chamaram a revolta trabalhavam geralmente para ONG’s financiadas no exterior, ONG’s liberais, esse foi o começo do movimento da Maidan.
E a ideia era derrubar o Viktor Yanukovich, presidente ucraniano que era pró-Rússia, não é?
A pauta inicial foi pelo pacto de associação com a União Europeia, que o presidente ucraniano na época terminou não assinando. Mas, no começo, esse grupo de pessoas não tinha muito apoio na sociedade, assim como esse pacto de associação também não tinha apoio da maioria dos ucranianos.
E no começo não aconteceu muita coisa. Havia um grupo de ONG’s liberais, organizando manifestações, e poucas pessoas foram. Mas assim como aqui, a repressão policial viraliza e choca, de alguma forma, a sociedade em geral. Aqui, a repressão policial atinge jornalistas da Folha, da Carta Capital. No caso da Ucrânia essa violência atinge estudantes e choca a sociedade. Com isso, essas manifestações, inicialmente pequenas, sem muito apoio da sociedade, recebem muitas pessoas novas e com pautas novas também.
Eram muitas pessoas entrando na praça que não se importavam muito com o pacto de associação com a União Europeia, mas apresentavam outras reivindicações, como melhoras na economia, contra a corrupção, etc. E essas pessoas deram números ao movimento, que estava na praça durante meses. Chegou um momento em que se perguntaram: “o que fazer com essa energia na rua?”.
O presidente, na época, foi eleito democraticamente. Não era uma democracia perfeita, muito longe disso. Pouco a pouco, grupos armados, que geralmente eram de integrantes de torcidas organizadas dos times de futebol do país, que tinham viés fascista, ou uma linhagem muito radical do nacionalismo ucraniano, começam uma onda de violência e de mortes na praça. O presidente foge e acontece o que eu acho legítimo chamar de golpe parlamentar.
Na campanha presidencial de 2016, nos Estados Unidos, surgiu a figura do Bernie Sanders, o senador democrata por Vermont. Ele trouxe, durante toda a campanha, o debate do socialismo e de temas progressistas novamente aos Estados Unidos. Isso gerou uma onda de progressismo, de jovens que tomaram contato com ideias mais progressistas e gerou a eleição, por exemplo de Alexandra Ocasio Cortez, entre outras parlamentares. A eleição do Trump soterra o progressismo nos Estados Unidos?
Acredito que não. Mas sim, o fenômeno que você descreveu, aconteceu. E também tem um desgaste entre essa geração, que é a minha – eu não fiz parte desse processo de aprender da política por causa do Bernie Sanders, mas os chamados millennials dos Estados Unidos, viveram isso.
A Hillary Clinton cometeu um erro em 2015, na verdade. Ela queria ser a única pessoa a se candidatar pelo partido Democrata para a presidência. E aí aparece uma figura, quase esquecida pela pela política norte-americana, que fazia parte dessa geração anterior, que acreditava que entendia socialismo. Ele aparece na televisão ao lado da Hillary Clinton falando de socialismo e inspira muitas pessoas, que não sabiam que isso existia: “espera aí, em outros países do mundo desenvolvido, há saúde pública?”.
Isso gerou um movimento de socialistas, chamados Socialistas Democráticos, que são importantes de 2016 até agora. Mas, não, a eleição do Trump não encerra o movimento. Tem um momento de cansaço, eu acho. A esquerda nos Estados Unidos está tentando entender o que fazer frente à nova ameaça do Trump. É um momento de cansaço e desgaste político, mas isso não significa desaparecer da história.
As ofensivas contra Trump, até o momento, são tímidas. Há algum grupo que seja capaz de pressionar, nas ruas, esse governo?
Eu acho possível. A questão é: o que seria o gatilho para esse tipo de manifestação? Que grupo, organizado ou não organizado, estaria presente dar uma ideologia coerente a esse movimento? É inevitável que o Trump vá cometer um erro sério, que gere uma reação entre a população. Qual vai ser o erro que gera essa essa reação e quem que vai ser o grupo que chamará essa manifestação? Essa é uma coisa que é bem menos clara para mim.