A cartilha A água é a terra: onde tudo que se planta nasce foi lançada pelo Centro de Justiça Climática, em parceria com o Observatório do Jequitinhonha e com a rede Climax Now, no último mês. O estudo apresenta dados alarmantes sobre as dificuldades enfrentadas por comunidades negras rurais do Vale do Jequitinhonha, região de Minas Gerais, para acessar água potável e segura.
O levantamento também aborda sobre as baixas produções agrícolas das comunidades, constantemente afetadas pelos longos períodos de secas e pelas altas temperaturas.
A pesquisa aponta que apenas 32% das residências rurais negras do Brasil contam com abastecimento seguro de água e que, portanto, a maioria das comunidades dependem de poços e nascentes, que, muitas vezes, estão contaminados.
Além disso, somente 25% das moradias possuem tratamento adequado de esgoto e saneamento básico.
Em entrevista ao Brasil de Fato MG, o Observatório de Clima e Cultura do Vale do Jequitinhonha destacou que a crise climática é um dos agravantes para a consolidação desses dados.
“A crise climática agrava a vulnerabilidade das comunidades rurais, negras, indígenas, quilombolas e tradicionais do Vale do Jequitinhonha, que historicamente são afetadas por estiagens prolongadas. Dessa forma, intensifica as secas e aumenta a temperatura cada vez mais, acelerando a indisponibilidade hídrica e a degradação ambiental”, afirmou a entidade.
No entanto, a crise climática não é o único fator que explica o cenário enfrentado pelas populações. A expansão da monocultura de eucalipto e a mineração de lítio na região, que consomem grandes volumes de água, colaboram para a escassez hídrica nas comunidades.
“Além da negligência estrutural que impede o acesso equitativo à água, há uma exploração predatória dos territórios tradicionais, com a mineração e a monocultura ocupando áreas antes essenciais para a subsistência das comunidades. O uso excessivo e a contaminação da água por esses setores agravam ainda mais a escassez hídrica, tornando a vida nessas regiões cada vez mais difícil”, diz o observatório.
Como sobrevivem as comunidades?
Diante dos impactos, as comunidades quilombolas e indígenas do Vale do Jequitinhonha adotam estratégias de saberes ancestrais para resistir. Muitas utilizam, por exemplo, métodos tradicionais para o armazenamento da água, como potes de barros e cabaças, que mantêm o líquido fresco por mais tempo.
Na comunidade de Piauí Poço Dantas, área afetada pela mineração, os moradores dependem de caminhões-pipa para o abastecimento. Nesse caso, por receberem apenas 16 mil litros de água para o uso doméstico a cada 8 meses, ou seja, 2 mil litros por família por mês, as famílias precisam racionar cada litro de água disponível.
A situação gera revolta aos moradores, tendo em vista que a mineradora Sigma Lithium recebeu autorização da Agência Nacional de Águas (ANA) para bombear 108 milhões de litros por mês do rio Jequitinhonha.
“O que a Sigma consome em um mês daria para abastecer aproximadamente 54 mil famílias. É um impacto absurdo”, explica o observatório.
Organizações comunitárias também se articulam para denunciar e resistir ao avanço da mineração e da monocultura de eucalipto nos territórios, por meio de campanhas, protestos e ações judiciais contra projetos que ameaçam a natureza e os modos de vida tradicionais. Dessa forma, a resistência não se restringe à adaptação climática, mas envolve também a defesa de direitos.
Racismo ambiental e injustiça climática
O conceito de racismo ambiental começa a ser utilizado em 1980 e se aplica quando populações racializadas, como comunidades negras e indígenas, são afetadas pela degradação ambiental e pela crise climática, enquanto grupos privilegiados mantêm um maior acesso aos recursos naturais e às políticas de mitigação de crises climáticas.
Segundo o Observatório de Clima e Cultura do Vale do Jequitinhonha, essa realidade se manifesta de forma evidente na região.
“Enquanto a mineração e a monocultura avançam sem consulta prévia, desestruturando modos de vida ancestrais, as comunidades tradicionais enfrentam uma luta constante pela água, pela terra e pela própria sobrevivência. O racismo ambiental aqui não é apenas um efeito colateral da exploração econômica, mas é um mecanismo estrutural que mantém essas populações em condições de vulnerabilidade histórica”, analisa.
Segundo dados do Censo de 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no Brasil, cerca de 83,5% das pessoas brancas têm acesso a saneamento básico e abastecimento de água adequado em casa, enquanto apenas 29,9% da população indígena tem acesso a esse direito fundamental.
Outro conceito que se relaciona com o racismo ambiental e que também se observa na região é a chamada injustiça climática, que se dá a partir do momento em que populações que poluem menos são afetadas pelos efeitos das que poluem mais.
“Enquanto grandes potências industriais e o agronegócio são os principais responsáveis pelas emissões de gases que provocam o efeito estufa, comunidades negras, indígenas e rurais — que pouco contribuíram para essa crise — estão entre as mais afetadas”, continua a entidade.
Ecossistemas
O Vale do Jequitinhonha possui três biomas diferentes, o Cerrado, a Mata Atlântica e a Caatinga, sendo lar de diversas espécies da fauna e da flora mineira. Portanto, espécies não humanas também dependem da distribuição justa da água na região para sua sobrevivência.
“A degradação dos mananciais impacta diretamente espécies não humanas e compromete a biodiversidade do Vale do Jequitinhonha, agravando o colapso ambiental e ameaçando a resiliência ecológica da região. A destruição de nascentes e aquíferos não afeta apenas o presente, mas compromete o futuro”, declara o observatório.
Com a expansão da mineração do lítio e o aumento das áreas da monocultura do eucalipto, o Vale do Jequitinhonha se tornou um símbolo do agravamento das mudanças climáticas no Brasil, sendo o lugar que mais esquentou nos últimos anos. A cidade de Araçuaí, em 2023, registrou recorde nacional de calor, com 44,8°C. Das 20 cidades que mais esquentaram no Brasil em 2023, cerca de 18 eram do Vale.
Medidas
Em setembro de 2024, o governador Romeu Zema (Novo) promulgou o decreto 48.893, que interfere na exigência da Consulta Prévia, Livre e Informada (CPLI) aos povos indígenas e comunidades afetadas por empreendimentos que causam impactos ambientais em seus territórios. A CPLI é prevista pela Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
O decreto de Zema define Povos Indígenas apenas aqueles reconhecidos pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). Com isso, a consulta de licenciamentos ambientais ficaria restrita apenas a esses grupos.
Em janeiro deste ano, Zema revogou o decreto estadual após a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) ingressar no Supremo Tribunal Federal (STF) com uma ação que denunciava a inconstitucionalidade da proposta.
Segundo especialistas, para que haja uma justiça hídrica na região do Vale do Jequitinhonha é necessário que a água seja reconhecida como um sujeito de direitos e parte essencial do equilíbrio ecossistêmico, e não como uma mercadoria submetida a interesses privados.
“O Estado deve garantir o acesso equitativo à água, priorizando comunidades indígenas, quilombolas e rurais por meio de investimentos em infraestrutura sustentável. Medidas como a construção de cisternas, a proteção de nascentes e a recuperação de áreas degradadas são fundamentais para fortalecer a segurança hídrica da região”, finaliza o observatório.
O outro lado
O Brasil de Fato MG pediu o posicionamento do governo de Minas Gerais sobre o cenário enfrentado pelas comunidades. Caso haja um posicionamento, a reportagem será atualizada.