“Estou terminando um corte e fiz as contas. Vai sobrar 18 reais para comprar as coisas para casa. Agora me diga: o que você pode fazer com 18 reais?“
O relato é de uma costureira em Caruaru (PE) sobre a organização da vida nos primeiros meses do ano no Polo de Confecções do Agreste, o maior do Nordeste. A realidade descrita atinge grande parte das costureiras da região e está relacionada com o período de baixa na produção, que ocorre entre os meses de janeiro e abril.
Esses quatro meses correspondem ao período de entressafra da costura de confecções e moda do Polo. O período de queda na produção traz desafios para o sustento das trabalhadoras e suas famílias, uma vez que os acordos de trabalho são informais e a remuneração funciona na modalidade de salário por peça (por produção).
O salário por peça é amplamente analisado por estudiosos do trabalho desde a Revolução Industrial, no século XIX. De modo geral, esse modelo de remuneração cria uma falsa sensação de autonomia, já que o pagamento é realizado por tarefa. Também existe a ilusão de controle sobre o tempo. Eu faço o meu tempo, dizem as trabalhadoras da costura.
No entanto, essa modalidade de remuneração causa mais precariedade do que vantagens.
Primeiro, porque o salário pago por peça permite o aumento da produtividade e a intensificação do trabalho sem a garantia de proteção para as trabalhadoras. Não por acaso, os relatos de adoecimento e esgotamento físico e mental são cada vez mais comuns e crescentes na região. Ansiedade, depressão, dores nas articulações, na coluna e infecção urinária fazem parte da rotina de muitas costureiras do Polo.
Segundo, porque é possível aumentar as jornadas de trabalho e converter o tempo de descanso ou de pausa em tempo disponível para o capital. Isso significa que as jornadas de trabalho se estendem para 12h, 14h e até 16h diárias, sem interrupções nos finais de semana ou feriados.
Também merece destaque o poder de subjetivação da modalidade salário por peça. Eu faço o meu salário; eu sou dona do meu tempo; eu sou meu próprio patrão.
A relação de subordinação fica ainda mais mistificada, escondida na retórica empreendedora e neoliberal. O que os dados da realidade revelam é que o salário por peça gera uma precariedade muito acentuada. E é no período de entressafra da produção de confecções, quando os contratantes vão para a praia, e as costureiras ficam paradas, que a precariedade fica mais visível e cruel.
Com as contas acumulando, especialmente a de energia elétrica e alimentação, as trabalhadoras ficam completamente desamparadas.” Ou a gente paga o boleto da energia, para manter as máquinas de costura funcionando quando aparecer serviço, ou a gente come”. O que resta para as costureiras são as políticas de transferência de renda no âmbito da assistência social, como o Bolsa Família. Sem esse benefício, as costureiras estariam entregues à própria sorte, e certamente a situação seria ainda mais grave.
A entressafra da costura é marcada, portanto, pela acentuação da precariedade. E essa acentuação tem sido objeto de denúncia nas vozes das trabalhadoras da costura. Em abril de 2024, as costureiras realizaram uma audiência pública na câmara de vereadores de Caruaru. O objetivo da audiência foi dialogar com a sociedade e o poder público sobre as condições de trabalho e vida das costureiras.
Como saída para o desamparo no período de entressafra, as costureiras elegeram o programa Chapéu de Palha como alternativa para a precariedade mais aguda. Elas buscam chamar a atenção da governadora Raquel Lyra para a necessidade de inserção das costureiras na política pública estadual.
O Chapéu de Palha foi criado pelo governador Miguel Arraes em 1988, com foco nos trabalhadores da cana-de-açúcar. Em 2007, a política foi reeditada e convertida em Lei estadual na gestão do governador Eduardo Campos, com o objetivo de amparar os trabalhadores no período de entressafra da cana-de-açúcar. Em 2009, a política estadual incorporou os trabalhadores rurais da fruticultura irrigada. E em 2012 foi a vez dos trabalhadores da pesca artesanal. Assim, o programa assiste os trabalhadores da palha da cana, da fruticultura irrigada e os pescadores artesanais, com o pagamento de uma bolsa no valor de R$ 373,08 durante cinco meses.
A Secretaria Estadual de Políticas para as Mulheres, desde o início da reedição da política estadual, em 2007, inaugurou o Chapéu de Palha Mulher. Para além das bolsas, a secretaria realizava cursos de formação política e de qualificação profissional. Atualmente, os cursos estão desativados, mas o pagamento das bolsas continua sendo realizado normalmente.
Dessa forma, a política estadual Chapéu de Palha assegura por lei – e isso significa dizer que a realização da política independe do governo ou partido que esteja à frente da administração do Estado – a assistência social aos trabalhadores e trabalhadoras da palha da cana, da fruticultura irrigada e aos pescadores e pescadoras artesanais a atravessar o período de entressafra.
É exatamente esse suporte que as costureiras desejam acessar. Para uma costureira de Caruaru, o programa Chapéu de Palha seria “uma grande ajuda, porque o rendimento atual não é suficiente para pagar as contas”. A costureira, com quem conversei, explica que “precisa escolher qual a conta mais urgente para pagar, mesmo com a água cortada, ainda há a taxa. Também tem o gás e a alimentação”.
“Hoje faz 21 dias que fui à feira com cinquenta reais. Comprei vinte e cinco reais de carne, cinco reais de passagem, e os outro vinte reais eu fiz milagre. Eu vivo com dificuldades, fazendo milagre”, conclui a trabalhadora.
A FASE (Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional) realiza ações no Polo por meio do Projeto “Costurando Moda com Direitos” e compõe o GT (Grupo de Trabalho) “Direitos das Costureiras”. O GT é formado por organizações da sociedade civil e pelos mandatos das deputadas estaduais Rosa Amorim (PT), João Paulo (PT) e Dani Portela (Psol), do deputado federal Carlos Veras (PT) e da senadora Teresa Leitão (PT). O GT busca aprovar a PL (projeto de lei) n.º 001882/2024 que objetiva instituir a política estadual de fortalecimento das costureiras em confecção de Pernambuco.
Para a FASE, a luta das costureiras pela incorporação ao programa Chapéu de Palha representa a luta por sustento. Essas mulheres, de janeiro a maio, teriam esse valor da bolsa para contribuir no seu sustento até o aquecimento do seu trabalho, explica Rosimere Nery, educadora da FASE Pernambuco.
As costureiras do Polo estão organizando o desconforto, unindo forças em torno de pautas que contribuam para a sustentabilidade da vida na região. Elas estão mostrando que o modelo predatório do Polo de Confecções precisa ser substituído por um modelo mais sustentável, onde os direitos e a dignidade assumam importância na dinâmica econômica e social da região Agreste.
As trabalhadoras estão clamando por visibilidade e atenção. E esperam da governadora Raquel Lyra uma resposta para as suas demandas, especialmente da inserção na política estadual do Chapéu de Palha. Elas afirmam que as costureiras são gente! e esclarecem que são elas quem sustentam a produção de riquezas no Agreste do estado de Pernambuco.
*Raquel Oliveira Lindôso é socióloga do trabalho e do gênero. Graduada em ciências econômicas, especialista em Gênero, Desenvolvimento e Política Pública. Mestra em serviço social e doutoranda em Ciências Sociais. Atualmente realiza pesquisa de doutorado sobre as condições de vida e trabalho das costureiras no Polo de Confecções do agreste de Pernambuco.
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.