O espaço Caminho de Lutas das Mulheres Enid Backes será inaugurado neste sábado (15), às 16 horas, no Instituto Educacional Josué de Castro (IEJC), no Assentamento Filhos de Sepé, em Viamão (RS).
O caminho está situado no Parque Ecológico do IEJC, sendo composto por várias “estações”, como uma escultura em homenagem à luta das mulheres, projetada pelo artista catalão Javier Pérez Quintanilla, cunhado de Enid Backes, uma figueira, um lago com espaço cultural e um fogo de chão.

Estão previstos na programação som de tambores e cantos, recital de textos de autoras latino-americanas e da própria Enid, abordando os quatro elementos da natureza – terra, ar, água e fogo.

A iniciativa da homenagem é do Instituto Koinós, IEJC, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e do Coletivo Feminino Plural, entidade que Enid integrou, e que mantém um acervo especializado em gênero e feminismo que leva seu nome.
“Outras grandes mulheres da história serão lembradas, de forma a manter viva a memória daquelas que deixaram suas marcas nas transformações sociais, econômicas e culturais”, explica Telia Negrão, do Coletivo Feminino Plural e Querela Jornalistas Feministas.
Quem foi Enid Backes
Enid Backes iniciou sua militância política feminista a partir dos anos de 1970 na luta pela democratização do país e pela anistia. Candidata a deputada estadual pelo PT em 1982, atuou nos debates constituintes de 1988 e coordenou o primeiro organismo de políticas para as mulheres de Porto Alegre, a convite do prefeito Tarso Genro.
Participou das Conferências Internacionais de Direitos Humanos de Viena (1993) e da Mulher, de Beijing (1995). Fez parte do processo de criação do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher, coordenou o Fórum Municipal da Mulher de 1996 a 2000. Foi do Conselho Diretor da Rede Nacional Feminista de Saúde Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos e do Coletivo Feminino Plural.
Nesses espaços, Enid Backes é lembrada por suas ideias avançadas quanto aos temas da sexualidade, reprodução, corpo e saúde, e pela igualdade no mundo do trabalho. Também se dedicou às lutas pelo direito à terra e junto ao MST.
O parque paisagístico do IEJC foi implantado por iniciativa do Instituto, com o apoio do Instituto Koinós, tendo sido projetado por Toni Backes e alguns equipamentos pelo Yapó Arquitetura Sustentável.
Memória

Para celebrar a inauguração do Espaço Enid Backes – Caminho de lutas das mulheres reproduzimos a entrevista realizada em 1995, pela jornalista Telia Negrão para o Caderno da Mulher Petroleira – Beijing, você foi lá?
Em 1995, ao trabalhar como jornalista no Sindicato dos Petroleiros do Rio Grande do Sul, Telia Negrão estimulou a criação de uma linha de trabalho para valorizar as mulheres desta categoria profissional, resultando na Comissão da Mulher Petroleira, a primeira do país. Uma das ferramentas de trabalho eram boletins que retratavam a presença minoritária de mulheres num campo do trabalho composto historicamente por homens, e que recentemente havia assimilado uma geração de “operadoras”, uma função estratégica nas refinarias, quebrando um paradigma de que era “trabalho para homens”, enquanto mulheres assumiam funções administrativas não especializadas.
Esta forma de organização levou à criação de novas pautas e reivindicações nas negociações trabalhistas, aumentou a presença de mulheres no sindicato, encorajando ao ativismo.
O Caderno da Mulher Petroleira (3) foi lançado em dezembro de 1995, com a divulgação de uma pesquisa sobre a vida das trabalhadoras no petróleo (Olha a cara da Petroleira!) e um chamado diferente: como estar presente numa conferência mundial de mulheres, a mais importante e última de uma série México (1975), Copenhague (1980), Nairobi (1985), Pequim/Beijing (1995), sem ter estado lá. “Beijing, você foi lá?” foi a manchete do caderno, que trouxe um resumo da plataforma e entrevistas com as mulheres que foram: uma petroleira baiana Nilzete Motta Andrade, as então deputadas Marta Suplicy e Jussara Cony, a jovem vereadora Maria do Rosário e a socióloga Enid Backes, à época coordenadora de políticas para a mulher da prefeitura de Porto Alegre.
Neste mês de março iniciam-se os debates para avaliação do grau de implementação de um dos mais importantes pactos internacionais de Direitos Humanos das Mulheres, a Plataforma de Ação Mundial para a Mulher, aprovada em 1995, na China. A sua importância decorre de seu caráter vinculante, ou seja, a sua base é a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação à Mulher – Cedaw, e todos os países signatários desta Convenção devem passar a implementar a Plataforma de Beijing. Mas há aspectos além dos formais que impregnam este documento de relevância, que é a aplicação da perspectiva de gênero e de direitos humanos na sua elaboração e pelo reconhecimento de que as desigualdades econômicas e sociais impactam mais fortemente mulheres e meninas pela exclusão e violência.
A consigna final desta 4ª Conferência foi “a pobreza tem cara de mulher”, uma ênfase na necessidade de mudanças de caráter estrutural nos processos de desenvolvimento dos países.
Em Beijing+30, que durará todo o ano de 2025, serão analisados os 12 Eixos da Plataforma, cuja implementação contundente nos anos iniciais esbarrou na onda conservadora mundial no âmbito do fundamentalismo religioso e no crescimento da extrema direita.
‘Tudo que é feito para garantia à vida, é trabalho’
Enid Backes, socióloga, 64 anos, coordenadora da Assessoria de Políticas para a Mulher da Prefeitura de Porto Alegre.
Telia Negrão: O que mais te impactou chegando na China, um país tão diferente do nosso e que recebia milhares de mulheres de todo o mundo?
Enid Backes: Foi ver que nós mulheres somos diferentes. A diferença dos costumes, roupas, as caras, rostos. Não dava pra dizer que éramos iguais porque tínhamos seios e vaginas.
Mas eram diferenças só exteriores?
O grande impacto foi nos pequenos grupos, quando víamos que as diferenças acabavam nos exteriores e que em graus maiores ou menores, as mulheres eram discriminadas em todo o mundo.
No caso brasileiro, nós ainda conquistamos uma Constituição, fruto da nossa luta, boa para as mulheres, mas quase nada foi até agora regulamentado. Em termos mundiais a questão do aborto é uma questão que afeta a todas as mulheres, não só as feministas, mas existe o entendimento de que isso é coisa de mulher que não quer ter filhos porque está se importando com outras coisas.
Como o mundo do trabalho foi encarado?
A ONU reconheceu na Declaração, que é a síntese da Plataforma, que apesar dos avanços no trabalho, que há muitas desigualdades e nós mulheres já criamos outro conceito: “a pobreza tem cara de mulher”. Setenta por cento dos mais pobres são mulheres.
O novo conceito é da feminização da pobreza. E isso nós vimos quando começamos a trabalhar com números, tanto na conferência oficial quanto na paralela. A pilha de trabalhos e livros que existem, mostrando que a discriminação pode ser quantificada, provando que a mulher trabalha mais em todos os países do mundo.
Mas isso é em relação ao trabalho fora de casa ou somado ao de casa?
A grande novidade, Telia, é que se conseguiu colocar no papel que realizar as atividades que garantem a vida, é trabalho. Se isso é feito em casa, na empresa, no hospital, pouco importa. Se cuida do doente no hospital, é trabalho, mas se cuida em casa, não é? Se cozinha em casa não é trabalho, mas se cozinha no restaurante, é? As mulheres mostraram que é este trabalho que garante a vida. Isso entrou na Plataforma de Ação, instando os governos a estabelecer metas para quantificar o valor deste trabalho.
Os EUA não tinham interesse nesta quantificação. Por quê?
Isto está ligado a uma questão maior. Se os Estados Unidos já exploram sem reconhecer o trabalho pela vida como trabalho, imagine de reconhecer isto.
E o que significaria este reconhecimento? A remuneração do trabalho doméstico, por exemplo?
Isto é uma polêmica no movimento de mulheres. Há quem defenda a remuneração. Na Alemanha, por exemplo, foi uma proposta oficial há alguns anos atrás. Mas as feministas se ouriçaram e denunciaram o que poderia resultar desta remuneração, porque pode significar o reconhecimento de um papel subalterno.
Mas é uma discussão muito rica e bonita. É preciso reconhecer a situação da mulher cujo trabalho dentro de casa, cuidando de dois ou três doentes, ou de pessoas que precisam dela, a impedem de sair atrás de trabalho. Neste caso há que se pensar que este trabalho deve ser remunerado.
Foram duas conferências na China, uma oficial e outra não oficial. Qual a que definia?
O movimento de mulheres, que não começou hoje, pela primeira vez desde 1975, o Ano Internacional da Mulher, achou importante ocupar espaços públicos, já que o nosso bordão era tornar visível o que a cultura, o patriarcalismo, teimava em manter invisível, não só a violência doméstica, o trabalho, o aborto, questões de mulher, que não fazem parte nem da contabilidade nem das políticas públicas.
Fomos às universidades fazer pesquisas, na antropologia, história, sociologia, jornalismo, fazendo ciência em cima da questão da mulher. Se num primeiro momento tínhamos uma posição sexista, uma guerra dos sexos, hoje nós falamos em gênero, porque é relacional.
Mas por outro lado, o que o movimento de mulheres fez nas paralelas, foi mostrar que estando lá, não estavas sozinha, tens trabalho atrás de ti, não tens o exército, nem és capitão, mas é uma troca de experiências quando se estabelece uma rede, canais de comunicação… E na conferência oficial nenhum representante de país, qualquer que fosse, deixou de se referir à conferência não oficial, dada sua importância como pressão, lobby, em cima de interesses legítimos das mulheres.
O que resultou dos estudos que referistes acima?
Significa que não posso falar em gênero feminino sem falar em gênero masculino.
As organizações não governamentais estavam mais preparadas hoje do que nas conferências anteriores?
A pesquisa não é neutra nunca. Se tu fazes ciência, tu te comprometes. Antes o feminismo era uma militância nas horas vagas. Hoje se faz ciência e ciência custa dinheiro. Este é um impasse que eu vi em Beijing. Hoje as grandes agências financiadoras estão bancando o movimento de mulheres.
O feminismo está ficando muito oficialesco?
Eu não diria oficialesco, eu diria governamental.
Isso poderia levar a uma legitimação da opressão, já que os governos na maioria dos casos, se omitem?
É claro! Então quando gritávamos pela autonomia do movimento de mulheres, era muito verdadeiro. Mas hoje falar em autonomia é questionável. Que autonomia é esta de movimentos que recebem dinheiro de agências internacionais, que é dinheiro público e dinheiro privado? Não estou fazendo juízo de valores, mas precisamos refletir sobre isso…
Daria para globalizar um pouco o conteúdo da discussão?
Tanto a paralela, quanto a oficial, falaram de qualidade de vida, da relação entre individual e coletivo. O grande avanço é de que hoje não se fala de saúde da mulher sem falar de saúde do planeta, e que este planeta pode estourar se não tiver uma ação coletiva no sentido de enfrentar desde a poluição até a lei das patentes que está no Congresso para ser votada e as mulheres nem sabem que é uma lei que afeta gerações.
Alguns aprendizados de Pequim.
Em nome das diferenças tu não tens o direito de discriminar. O fato de eu ser diferente de ti não significa que sou desigual. Os dois conceitos precisam ser trabalhados. Eu às vezes vou em reuniões de velhos e as pessoas reclamam que na velhice não há o que fazer. Eu discordo. Se tu começares a pensar nas palavras, por exemplo, tu podes mudar as palavras. Lembramos então daquelas palavras dos sindicalistas “por que as mulheres não vêm ao sindicato?”. É um jeito de falar. Se eu mudo o enfoque e digo “o que não estamos fazendo para que as mulheres venham ao sindicato?”. Isso é cultura, mexe com comportamento, aprendizagem, educação, mais saberes, noção crítica, consciência de mudanças e fim da discriminação.
E a feminização da pobreza, como se enfrenta?
Temos que cobrar da Dona Ruth (Cardoso, esposa do então presidente Fernando Henrique Cardoso) a aplicação do Paism [Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher] e o combate à pobreza. Nós sabemos que a pobreza não se combate simplesmente distribuindo cestas básicas.
É uma situação contraditória esta da Dona Ruth, não acha?
É… o marido é dos ricos e a mulher é dos pobres (risadas). Mas teremos que cobrar este discurso. Embora o documento seja cheio de boas intenções, e de boas intenções o inferno está cheio, temos agora um instrumento para cobrar.
