Com personagens escravizando ‘cópias internas’ de si mesmos em escritório, a série de ficção científica Ruptura, da Apple TV, conquista público quebrando convenções narrativas. Em um dos melhores episódios da segunda temporada, Irving B. (de longe meu personagem favorito, numa esplêndida atuação de John Turturro) vai jantar na casa de Burt, agora ex-funcionário da Lumon.
O companheiro de Burt também está com eles, numa atmosfera de triângulo amoroso ambígua, desconfortável e atraente, unindo medo e desejo. Burt e Irving se apaixonaram dentro do escritório e seus externos, por assim dizer, estão agora investigando a questão.
É o companheiro de Burt quem traz a fala que mais interessa aqui: o pastor da igreja que frequentam comentou anos atrás que os internos, a consciência autônoma das personagens cuja vida fica restrita ao trabalho, tinham sua própria alma. Deste modo, enquanto o externo, o indivíduo primário e original, poderia ir direto para o inferno, o interno, de bom coração, poderia encontrar a salvação.
Esse parece ser o objetivo de Burt, e de muitos de nós: buscar algum tipo de redenção vendendo seus maiores talentos e precioso tempo de vida a uma megacorporação tecnológica cujos atos e consequências não são transparentes.
Quem é você?
O que chamamos de consciência ou subjetividade é esse fio narrativo estruturado que articula nossas memórias e sonhos futuros. Dividindo esse núcleo de memória em dois – memórias do trabalho ficam restritas ao espaço de trabalho e memórias da vida comum ficam restritas à vida – temos dois seres distintos, que se desconhecem, habitando em tempos distintos o espaço do mesmo corpo.
O “eu” é definido pelo modo particular como nos lembramos de nós mesmos. Sem memória, não há nada.
Quando Helly R desperta sobre a mesa do escritório da Lumon, a primeira frase que escuta é: ‘Quem é você?’. A voz misteriosa a deixa completamente desorientada. Ela agride violentamente Mark, o chefe do setor, embaralhado com formulários padrão, e tenta várias vezes escapar.
Quando constata que foi colocada ali por sua externa (ela mesma, da vida lá fora) para trabalhar no refinamento de macrodados, sem qualquer escolha, Helly tenta inclusive se matar. Parece ser a única saída para se livrar dessa tediosa vida de servidão perpétua, sem memórias de sonhos e descanso, aprisionada para sempre no seu elegante cubículo decorado com tecnologia retrô.
Tudo é muito cool, protocolar e cotidiano, mas insuportável. No caso de Helly R, o doppelgänger, o duplo sombrio, parece ser a Helly externa, a original, e não a cópia.
Tempo perdido
A direção de fotografia de Ruptura promove um efeito curioso. Ao construir planos banais – uma saída do carro, ou uma caminhada pelo pátio – com uma estetização de grande intensidade (simetrias, linhas angulares, coloração em tons sempre elegantes), cria-se uma espécie de ruptura entre o que está se passando na tela e o que modo que está filmado.
Uma espécie de estetização excessiva daquilo que não merece interesse. Essa sensação de desperdício de tempo também ganha um contorno absurdo nos rituais corporativos, na série e fora dela, que dão um excesso de estética a obviedades, como os quadros do fundador da empresa, aos manuais, as tenebrosas dinâmicas, gamificação do bom desempenho, reuniões sem propósito, comemorações. Sem esse excesso de design, tentando atribuir importância a formas e conteúdos sem substância, não restaria pedra sobre pedra aos vazios rituais corporativos.
Os longos planos em longos corredores brancos sem fim, sempre idênticos, acompanhados por uma angustiante melodia em tom de sala de espera, reforçam essa sensação de lentidão, exigindo do telespectador o trabalho de prestar atenção. Esse com certeza é um dos grandes méritos da Ruptura, que não se deixa levar pelas convenções audiovisuais, pela lógica dos conteúdos gerados pelos algoritmos, e suas “trends”, outro nome para modismos, que só desejam bajular o público.
Ruptura é uma série que rompe com a obviedade e por isso mesmo tem conquistado cada vez mais fãs, tanto por seus temas, como por seu jeito visual muito próprio de contar uma história.
Sentidos do trabalho
Aqueles que estão acostumados ao ritmo frenético de The Bear, por exemplo, outra ótima série que tem o trabalho como centro da trama, podem sentir falta de um pouco de ação.
Se na cozinha de The Bear a questão é como o espaço do trabalho e as relações afetivas entre trabalhadores constroem nossas vidas, de maneira integrada à vida pessoal. Em Ruptura é o oposto: como numa fábula cyberpunk, grandes corporações que parecem muito cool e legais, estão literalmente roubando nosso tempo vida. E a vida no nosso planeta. Em The Bear sobram cenas de limpeza, manuseio de comida, montagem artesanal de pratos. Coisas reais, concretas. Afetivas. Ruptura apresenta seus macrodados, números abstratos, sob os quais os colaboradores sequer sabem do que se trata. E a natureza do mal que estão causando.
Em A conspiração consumista, um documentário recente da Netflix que conta com depoimento de ex-funcionários da Amazon, ficamos sabendo como o que há de mais moderno no campo da comunicação digital, UX, UX Writer, Designer de Produto, Inteligência Artificial e algoritmos é usado para aumentar os gráficos de produtividade e consumo, manipulando os interesses e desejos dos usuários contra eles mesmos.
Essa busca constante por crescimento do lucro, que aumenta as metas das empresas ao infinito, é uma dos fatores que está inviabilizando a vida no planeta Terra.
Não é só a perfuratriz de petróleo na Amazônia que vai destruir nossas vidas.
Quem já está avançando na trama de Ruptura sabe que, mesmo nesse cárcere aparentemente sem saída, ainda há faíscas de resistência, solidariedade, esperança e amor. Afinal, o poder que nos oprime não só nos aliena, mas também nos constitui. E sempre pode ser sabotado, ressignificado, destruído. Virado do avesso.
*Marcos Vinícius Almeida é escritor, jornalista e redator. Mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP, colaborou com a Ilustríssima da Folha de S. Paulo e O Globo. É autor do romance Pesadelo Tropical (Aboio, 2023).
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.