“Queremos que Belo Horizonte seja um farol para o Brasil.” Essa é a expectativa da vereadora da capital mineira Iza Lourença (Psol), autora do Projeto de Lei (PL) 60/2025, que propõe a implementação da tarifa zero no serviço de transporte público coletivo do município.
O projeto, que ficou popularmente conhecido como “PL do busão 0800”, conseguiu as assinaturas de 22 dos 41 vereadores para tramitar na Câmara Municipal de Belo Horizonte (CMBH) e está agora na comissão de Legislação e Justiça (CCJ), que define a constitucionalidade da proposta.
Em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato MG, Iza Lourença debate a importância da gratuidade nos ônibus e a viabilidade da proposta.
Confira a entrevista completa:
Brasil de Fato MG – Ao menos 150 cidades no mundo já implementaram a tarifa zero no sistema de ônibus. No Brasil, um exemplo importante é Maricá, no Rio de Janeiro. Sobre o que trata exatamente o PL protocolado na CMBH e qual é a sua importância?
Iza Lourença – Eu acredito que a principal pauta hoje nas cidades é a justiça socioambiental, e o transporte tem tudo a ver com isso. Hoje, o transporte público é muito ruim e muito caro, o que faz com que as pessoas não andem de ônibus e nem de metrô aqui em Belo Horizonte. Isso gera um excesso de carros nas ruas e, consequentemente, muito trânsito e muita poluição.
O debate de transporte tem tudo a ver com o debate ambiental e com o debate social. Quem tem o direito de transitar pela cidade? Muitas vezes é quem tem dinheiro para pagar um Uber ou uma passagem, que está muito cara. Transitar pela cidade significa ter acesso, não só à cultura e à arte, como poder visitar um familiar, ir a uma consulta médica, estudar em uma escola mais distante da sua casa, etc. Esse é um grande debate que precisamos fazer nas cidades brasileiras.
Quando trazemos o debate da tarifa zero, que podemos chamar também de ônibus de graça ou de busão 0800, é porque nós achamos que do jeito que está o transporte público não dá para ficar.
Nós precisamos ter uma alternativa e existe alternativa. Tentam convencer o nosso povo de que não é possível fazer diferente, de que temos que nos contentar com o que está aí e, no máximo, reclamar. Nós queremos ir além de reclamar e fazer uma proposta para Belo Horizonte.
Já temos hoje, no Brasil, mais de 120 cidades que têm ônibus de graça para a população. São cidades bem menores que Belo Horizonte, a maior delas tem 400 mil habitantes, enquanto BH tem 2 milhões. Mas podemos ser a primeira capital de grande porte a ter a tarifa zero.
Junto com os movimentos sociais, apresentamos um PL na Câmara Municipal que, para nossa surpresa, contou com a assinatura de 22 vereadores. Isso é muito importante, porque significa que já temos a maioria de vereadores favoráveis ao projeto.
Embora a proposta seja bastante atrativa aos ouvidos do público geral, ainda existem muitas dúvidas sobre como seria viabilizada. Você pode explicar como a tarifa zero é possível e de que forma ela pode contribuir para a economia e a população de Belo Horizonte?
Belo Horizonte é uma das poucas cidades do Brasil que já tem um fundo municipal para qualidade do transporte público. Nossa proposta envolve alimentar esse fundo e, a partir dele, fazer o repasse para a circulação dos ônibus na cidade.
Da forma como é hoje, três agentes pagam pela tarifa do transporte público. O cidadão paga, via passagem, e não tem nenhum controle sobre a qualidade daquele ônibus; a prefeitura paga, a partir de subsídio, e não tem controle, porque quem controla o dinheiro são as próprias empresas de ônibus; e as empresas da cidade, quando pagam o vale-transporte, mas também não têm controle sobre a qualidade dos ônibus.
Como alimentar esse fundo? Por meio de grandes empresas, com mais de 10 funcionários, que vão pagar uma taxa por funcionário. Essa taxa, que é menor que o vale transporte pago hoje, pode alimentar esse fundo.
Veja bem, não estou falando da padaria, do açougue, da farmácia de bairro ou dos pequenos comerciantes, mas das grandes empresas com mais de dez funcionários. Se elas pagarem uma taxa de cerca de R$ 170 por funcionário por mês, o que é menos que o vale transporte, nós teremos um fundo de R$ 2 bilhões.
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Esse valor é suficiente para custear o transporte, sem que o cidadão tenha que pagar tarifa e sem que o governo tenha que pagar subsídios. Isso vai beneficiar os pequenos comerciantes, que não terão que pagar a passagem dos seus funcionários. O lucro dos comerciantes aumenta e o salário do trabalhador também, já que não terá aqueles 6% descontados para a passagem.
Além disso, as empresas que têm dez funcionários pagariam a taxa para um funcionário apenas. A empresa que tem 11 pagaria para dois. E assim por diante. Chegamos à conclusão de que esse projeto beneficia a todos que circulam pela cidade.
A prefeitura também se beneficia, ao deixar de gastar milhões de reais com as empresas de ônibus, como é feito hoje, tirando do imposto, do dinheiro da saúde e da educação, sem nenhum controle sobre o que as empresas fazem com esse dinheiro.
Quais são os exemplos de aplicação da tarifa zero no transporte público no Brasil? Esse modelo se sustenta a longo prazo?
Nós temos exemplos de cidades como Maricá, que já tem um modelo em aplicação há mais de 10 anos, portanto, funcionando há muito tempo. Temos o exemplo de Caucaia, no Ceará, que é a maior cidade com o programa, com 400 mil habitantes, onde também tem funcionado muito bem o modelo.
Aqui, na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), temos o exemplo de Caeté, onde o ônibus melhorou muito a partir da tarifa zero. São João Del Rei também acabou de implementar a medida.
São mais de 120 cidades brasileiras em que está funcionando a gratuidade dos ônibus. Obviamente, tem cidades que enfrentam problemas de sucateamento do transporte, mas há outras onde o transporte melhorou muito.
Podemos reproduzir os melhores modelos em Belo Horizonte. Queremos que Belo Horizonte também seja um farol para o Brasil. Nós sabemos que é um desafio, uma cidade de grande porte ter essa medida. Nessas outras cidades, a tarifa zero funciona com o governo pagando tudo, o que em Belo Horizonte é inviável, uma vez que o custo é mais alto e seria preciso tirar muito dinheiro dos cofres públicos.
Se conseguirmos fazer justiça social, diminuindo um pouquinho do lucro de empresas que já têm bilhões, para garantir o transporte público para todo mundo, inclusive para os seus funcionários, filhos, amigos e os próprios empresários, podemos ser um exemplo pro Brasil inteiro de um modelo que dá certo, numa cidade com milhões de habitantes, como é Belo Horizonte.
O apoio de 22 vereadores, incluindo parlamentares não alinhados ao campo progressista, foi uma surpresa. Como é possível seguir pautando as causas importantes para a classe trabalhadora em uma legislação com ampla maioria de direita, sem que a intenção dos projetos se disvirtue e evitando a cooptação do discurso?
Na Câmara de Vereadores de Belo Horizonte, quem assinou o projeto não foram os vereadores de extrema direita, foram vereadores de centro-direita. Acho isso uma localização importante, porque é um setor que a gente precisa dialogar no parlamento hoje.
Infelizmente, nós, da esquerda, somos muito minoritários dentro desses espaços. Então, eu busco dialogar com os vereadores de centro-direita, debatendo os problemas reais do nosso povo, como transporte público.
Eu percebo que, no Brasil inteiro, vários prefeitos adotaram a tarifa zero, porque perceberam que é uma pauta que gera apoio popular, e vários vereadores começaram a entender isso. Eu busquei mostrar para os vereadores que sim, tem apoio popular, porque o povo quer saber de soluções reais para os seus problemas.
Infelizmente, no parlamento brasileiro hoje, debatemos contra a extrema direita pautados por projetos que não têm nada a ver com a vida do povo. Eles apresentam projetos de perseguição às pessoas travestis e transexuais, de perseguição a uma festa popular importantíssima do nosso país, que é o Carnaval, de perseguição à Parada LGBT, etc. Estão muito preocupados com a identidade de gênero e com a sexualidade alheia e pouco preocupados com os problemas reais da vida do povo.
Pensando nisso, a estratégia que eu adoto hoje no parlamento é fazer a defesa dos meus sempre, mas buscar projetos que tenham a ver com o interesse popular. Então, sempre que tem um projeto transfóbico, LGBTfóbico, machista ou racista, eu estou lá fazendo os enfrentamentos, que são importantes para defender a nossa população. Mas também trazendo os projetos que interessam ao povo, como ter ônibus de graça e melhor, assistência social, educação de qualidade para as pessoas e uma educação inclusiva, que hoje nós não temos.
Eu busco sempre tratar de problemas reais e conversar com os vereadores de centro-direita para tentar sensibilizá-los de que o que o parlamento brasileiro precisa aprovar são soluções para os problemas da sociedade e não criar mais problema com perseguição à vida de outras pessoas.
O projeto tem potencial de desagradar um lobby bastante forte em Belo Horizonte, o das empresas de ônibus. Como tem se dado o diálogo com essas empresas ?
Olhando para o projeto de lei, ele não tem o objetivo de gerar nenhum prejuízo para as empresas de ônibus. Ele dá conta de que o transporte custa tanto e o fundo vai pagar o tanto que ele custa às empresas.
Só que os empresários de ônibus já estão se movimentando contra o projeto, porque eles sabem que a partir do PL vai haver um controle e uma fiscalização sobre o serviço que eles prestam, e isso eles não querem.
Hoje, eles controlam o quanto recebem, o quanto gastam, e fazem disso o que quiserem. Já tivemos uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Câmara Municipal que demonstrou que até uma nota fiscal de casamento da filha de um empresário de ônibus foi incluída como gasto do transporte público em Belo Horizonte. É uma verdadeira farra da máfia do busão.
Parece que não querem falar de forma transparente sobre o valor do serviço que prestam, para inflacionar, dizer que estão gastando mais do que estão gastando realmente. Nesse sentido, se estão preocupados em garantir a corrupção, sim, eles vão ter prejuízo.
E eles tentam convencer as pessoas de diversas formas. Falam que se tiver tarifa zero qualquer um vai poder entrar no ônibus e o ônibus vai ficar inseguro. Como assim? Qualquer um pode andar na rua, qualquer um tem que poder entrar no transporte público. Você não pode limitar o acesso das pessoas ao ônibus com um argumento de segurança pública.
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A insegurança se resolve com uma política de segurança pública. Realmente, nós vamos ter que debater a segurança pública, assim como a gente já tem que debater segurança pública nas ruas. Mas a pessoa que entra no ônibus mal intencionada entra com ou sem o valor da tarifa. Não é a tarifa que faz a pessoa entrar bem intencionada ou não.
Aliás, com a isenção da tarifa, as pessoas bem intencionadas é que vão andar mais. Porque, muitas vezes, é aquela pessoa, por exemplo, que tem muita vontade de visitar a mãe, mas não tem condição de ir de Venda Nova para o Barreiro pagando a passagem.
Eu fiz uma entrevista esses dias dias na rua com um estudante e perguntei “Se tivesse ônibus de graça, você iria para onde?”. Ele respondeu: “Eu iria para qualquer lugar”. Isso é muito importante, porque, muitas vezes, aquele menino acha que não pode ir numa peça de teatro, por não ter dinheiro para nem para pagar o ônibus. Não adianta você fazer uma peça de teatro de graça, uma sala de cinema de graça, se a pessoa não conseguir chegar.
Nós temos que combater esse tipo de argumento das empresas de ônibus, que já estão se mobilizando contra o projeto, porque elas sabem que vai ter mais fiscalização e vão ser obrigadas a ter mais transparência nos dados, o que vai impedir a corrupção na prestação de serviço.
Quais são os próximos trâmites para que o projeto seja aprovado e implementado? Para quando é possível esperar a tarifa zero em BH?
Como conseguimos 22 assinaturas, a maioria dos membros da Câmara, muita gente teve a sensação de que seria rápido, mas não funciona assim. Para aprovar um projeto desse porte, você precisa de muita articulação política.
A primeira etapa do projeto é passar na comissão de Legislação e Justiça, que tem o poder de deixar seguir ou de arquivar. Estamos nessa etapa agora, conversando com os membros da comissão para que o projeto continue tramitando. Uma vez tramitando, ele ainda vai passar por mais três comissões: de Transporte, de Orçamento e de Administração. Passando por vários relatores, que precisam ser pessoas que não assinaram o projeto.
Ainda não sabemos quando o PL chegará à votação em primeiro turno no plenário, mas não acho que vai ser rápido. Na votação em primeiro turno, nós vamos precisar de 28 votos, por ser um projeto que exige maioria qualificada, ou seja, dois terços da CMBH. Depois de aprovado no primeiro turno, ele volta, passa em todas as comissões de novo e vai para votação no segundo turno, quando a gente precisará novamente dos 28 votos.
É um processo demorado e acredito que vamos ficar este ano todo lutando por ele. Depois, ele ainda vai para sanção ou veto do prefeito, que é mais uma articulação que temos que fazer.
Se sancionado, lutamos para regulamentar, em quatro anos de implementação, ou seja, com uma gradação até chegar na tarifa zero. Se a prefeitura vetar, o projeto ainda volta para a Câmara, e temos que derrubar o veto, para então ele ser regulamentado. O projeto de lei é um instrumento para que a gente faça uma luta política por transporte de qualidade em Belo Horizonte.
Como tem sido a recepção popular do projeto de lei? De que forma a população pode apoiar a proposta?
Eu não acredito que um projeto como esse pode ser aprovado sem ter um engajamento popular, sem ter uma maioria defendendo, cobrando dos seus vereadores para que votem a favor desse projeto.
Por isso, eu tenho ido muito para a rua. Muitas vezes, quando eu falo sobre o projeto, as pessoas não acreditam que seja possível, e eu fico explicando que não é só um sonho, que é possível a gente realizar.
Nós temos hoje nas redes sociais dado missões para as pessoas ajudarem. A primeira missão foi coletar a assinatura para o projeto, ou seja, conversar com o seu vereador para que ele assine o projeto. A segunda missão, agora que o projeto está na CLJ, foi mandar um e-mail para os vereadores da comissão para que eles deixem o projeto tramitar. E por aí vai.
A próxima ideia é lançar um abaixo-assinado, para que as pessoas possam pressionar os vereadores com um número expressivo de pessoas assinando. Estamos utilizando as redes sociais, que hoje é um dos mecanismos mais efetivos para construir maioria social e demonstrar a opinião pública.
Quais problemas no transporte a tarifa zero não será capaz de solucionar e quais medidas precisam ser (ou já estão sendo) tomadas?
O transporte público é uma luta desde sempre, que as pessoas antes de nós fizeram, por exemplo, para que tivesse quadro de horário nos ônibus. O que eu fico muito empolgada quanto ao projeto do busão 0800 é que, além de tirar a tarifa, vai aumentar o controle popular, para não ter mais esses atrasos monstruosos das empresas, não ter mais ônibus caindo aos pedaços. Para isso, precisa ter controle de qualidade.
Isso é um avanço e é mais um passo nessa luta. Sendo um direito público, a verdade é que o transporte deveria ser público, fornecido por uma empresa pública ou pela própria secretaria do estado, assim como é a saúde e a educação. Um direito público não deveria estar na mão de uma empresa privada.
Se tirarmos o lucro dessa história, diminui muito o valor que vai ser necessário gastar. Com uma empresa sem fins lucrativos, teríamos o dinheiro, que vai para o bolso de alguém hoje, sendo investido em qualidade do ônibus. Isso faria completamente a diferença.
Eu luto para que o transporte público seja de fato estatal, com o Estado fornecendo esse serviço com mais investimento, e que o dinheiro não vá para o bolso de alguém. Quando envolve o lucro na jogada, a gente sabe que, infelizmente, no capitalismo, o lucro está acima da vida das pessoas. Então, a gente precisaria tirar essa lógica do lucro do transporte público.
Mas eu acredito que isso só é possível a partir de um sistema nacional de transporte público. Assim como tem o Sistema Único de Saúde (SUS), criando um sistema único para o transporte, que nacionalmente tivesse os repasses para as para as cidades.
É limitado fazer as coisas em uma cidade só. Podemos ter um avanço em Belo Horizonte, mas temos ainda a dificuldade com a região metropolitana, em que as pessoas circulam, muitas vezes trabalham em Belo Horizonte, mas moram em alguma cidade vizinha, como Contagem ou Santa Luzia. Se vencermos essa etapa, avançar em Belo Horizonte, eu vou continuar lutando para que a gente avance em uma política em Minas Gerais e uma política no Brasil.