No dia 15 de fevereiro aconteceu na Fiocruz Brasília a abertura oficinal do Curso de Agentes Populares de Saúde das Juventudes (AgPopSUS). A versão local do Programa Nacional que busca a formação e a mobilização, em parceria com movimentos sociais e populares, de uma rede de Agentes Educadores em defesa do Sistema Único de Saúde (SUS), reuniu 14 coletivos periféricos no Distrito Federal (DF) para conduzirem esse processo de educação popular e trabalho de base. A Família Hip Hop representa um desses movimentos e, por aqui, escolhemos o dia 8 de março para darmos o ponta pé inicial dessa formação que durará, oficialmente, quatro meses.
E por que queremos falar sobre isso? Por ser mais uma oportunidade de convidarmos a militância para refletir o papel e a importância das ações de base no enfrentamento à mercantilização de tudo e ao desmonte de direitos duramente conquistados.
A saúde é uma prioridade das pessoas. É unanimidade das demandas populares, assim como tem sido unanimidade das reclamações e insatisfações do povo do DF como um todo e, de forma particular, aqui em Santa Maria, região administrativa. Com uma cobertura ainda deficitária e funcionando de maneira precária e desvirtuada, a atenção básica acaba criando um fluxo de demandas para os Hospitais, o que aqui significa direcionar a busca por atendimento ao Instituto de Gestão Estratégica em Saúde (Iges-DF), a grande máquina de escândalos, corrupção e incompetência da gestão Ibaneis Rocha (MDB-DF), e que hoje é responsável pelo imenso Hospital Regional de Santa Maria.
As crises na saúde mudam de roupagem segundo a sazonalidade, porém é uma crise contínua, criada intencionalmente pela sucessão de governos neoliberais comprometidos com os interesses do mercado.
Sucatear para privatizar. Esse é um jargão já batido entre os ditos meios progressistas. Contudo, é preciso nos questionarmos: a grande massa popular tem essa compreensão? Qual a leitura que se tem quanto aos problemas da saúde? Ora, para que possamos efetivamente defender o SUS como política pública universal, para que possamos demandar aquilo que verdadeiramente mudaria a qualidade da nossa saúde, precisamos, primeiramente, compreender o que seja a saúde da população, e isso é trabalho de base.
Saúde é direito humano prioritário e imprescindível
Se questionarmos qual seria o grande problema da saúde pública no DF, não temos dúvida de que a maioria das pessoas responderia a falta de profissionais médicos e a dificuldade de atendimento nos hospitais. O problema se resumiria ao acesso. Vemos essa demanda se repetir em diversos espaços: nas reuniões das redes intersetoriais, em assembleias e grupos de pacientes, em rodas informais de conversa e reclamação. Essa é uma simplificação que tira a complexidade do que seja a experiência da boa saúde e, portanto, do papel do Estado e do governo no que se refere à garantia deste direito humano prioritário e imprescindível.
Saúde da população engloba cultura, educação, segurança, alimentação, lazer, trabalho, conhecimento científico, saberes populares e o encontro de tudo isso na amalgama do bem viver. Ou seja, gira em torno de diversas outras políticas e tem relação com a produção de alimentos, com o mercado farmacológico, com qualidade de vida nos centros urbanos, com violência, com a disputa de interesses políticos e de mercado. Quando a demanda por saúde se resume à atendimentos emergenciais de problemas específicos e pontuais, não estamos tratando da saúde, mas tão somente de agravos muitas vezes decorrentes da ausência de ações preventivas, de fortalecimento popular e da falta de acesso a tantos outros direitos sociais e de cidadania.
Defender o SUS é defender uma agenda política, uma perspectiva ideológica, um modelo de atenção, uma forma de se construir a saúde pública.
A falta de problematização sobre como o sistema produz adoecimentos e organiza a gestão da saúde com vistas ao lucro e à mercantilização de nossas dores leva as pessoas, que embora saibam exatamente o que querem (gozar de boa saúde e bem-estar), a não saberem como chegar a isso, de forma que privatizações, terceirizações e soluções individualizantes de cobertura sejam vistas como saídas plausíveis e aceitáveis. Por isso, não há resistência popular à entrada e ao avanço do Iges-DF. Por isso não há resistência popular aos acordos com Comunidades Terapêuticas apesar das tantas denúncias. Por isso não há crítica às barganhas envolvendo planos de saúde. Por isso não há crítica quanto ao tratamento ofertado que gira em torno da hipermedicalização. Por isso, contratações precárias de profissionais sem concurso são entendidas como tentativas reais de sanar os problemas da saúde pública no Brasil e no DF.
Sabemos que a estrutura já existente associada a uma gestão comprometida com o modelo de atenção preconizado pelo SUS representaria uma mudança radical na vida do povo.
Isso porque os maiores problemas enfrentados pelo SUS hoje são de ordem política e cultural. Mas tal mudança precisa ser construída, pois SUS é construção coletiva e cotidiana e abarca muito além da ação governamental e dos agentes públicos. A proposta de formação de uma Rede de Educadores Populares em defesa do SUS pode representar um lindo caminho para tal construção. Mas não pode ficar presa às amarras governamentais e servir de propaganda e romantização do sistema.
Educação popular
O AgPopSUS precisa estar articulado de forma profunda, integrada e irrevogável às entranhas dos movimentos populares que assumiram o papel de base educadora e das comunidades a que se vinculam, para ir muito além do ABC técnico de como funciona e é organizada as políticas de saúde. Precisa se imbricar para além, inclusive, desses movimentos. A educação popular freiriana, a única que conhecemos e defendemos, busca a leitura política do mundo, é rigorosa, de visão ampla e com intenção transformadora e revolucionária.
Se não se isolar em si mesmo e lançar sementes em todo território ao qual cada núcleo se vincula, é um projeto com possibilidade real de mobilização popular da juventude.
Aqui estão os desafios do trabalho de base:
- articular uma concepção de saúde que não é nova, que é sentida e desejada pelas pessoas, que é parte da nossa cultura e modos de viver, mas da qual nos alienamos nos processos colonizadores individualistas próprios do avanço capitalista;
- descolonizar as compreensões trazendo complexidade às leituras de mundo;
- resgatar o espírito rebelde, a justa ira, dessa juventude e trazê-la para a experiência da saúde;
- fazer cair a ficha do sentido de coletividade, tanto no que se refere ao agir político quanto à essência do que seja a saúde e, portanto, qual modelo nos serve e reivindicamos;
- abrir o leque de compreensões que mostram a saúde como termômetro de como a população vive todos os seus direitos.
Por isso, mobilizar a juventude para defender o SUS é formar uma juventude capaz de defendê-lo em articulação com todos os demais direitos de cidadania cuja materialização na vida do povo prescinde da construção de um projeto de país compartilhado por meio da afetação que só a educação popular e o trabalho de base podem proporcionar. Que essa ação se repita em todos os âmbitos, porque sabemos que o resultado será colhido a longo prazo e quanto mais nos voltarmos às comunidades, em atividades e trocas afetivas, mais tocaremos na sensibilidade das pessoas para a transformação radical que almejamos.
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*Paula Juliana Foltran e Alex Martins Silva são membros do Coletivo Família Hip Hop
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.